(Publicado no Estadão de 03/01/2015
"Dilma Rousseff inicia o segundo
governo com um leque imenso de dificuldades. A primeira, perene, é o seu
próprio temperamento, irascível e imperioso, a dificultar o diálogo e a
harmonia. A segunda está em seu entourage, composto por pessoas sem peso e sem autoridade
perante a classe política e perante a própria presidente, que, aliás, segundo
consta, prefere súcubos submissos. A terceira decorre do marco zero de nossa
economia, com crescimento nulo, inflação no teto da margem, déficit fiscal e
desemprego começando a ameaçar.
Como se não bastassem tais entraves,
pouco animadores para começo de mandato, há no horizonte a crise moral e
política, pois nunca antes neste país houve, como no petrolão, corrupção de
tamanha grandeza a comprometer fortemente a maior empresa estatal e a confiança
nos administradores e no próprio governo. Esta rede de corrupção engloba
diversas vertentes, não só empreiteiras, diretores e gerentes da Petrobrás, mas
os últimos destinatários do alcance, ou seja, senadores, deputados, ministros
recebedores do dinheiro desviado.
A base governista será logo
aquinhoada com uma investigação que retirará de suas lideranças condições de
comando.
A única notícia boa, contudo, para
Dilma é que todas as ilegalidades praticadas na Petrobrás ocorreram no Brasil,
cuja sociedade não nasceu dotada do sentimento de indignação diante do desmando
e do abuso de poder, reconhecendo a plena normalidade no jeitinho para driblar
os limites da lei.
Com efeito, Lula em plena crise do
mensalão foi reeleito, Dilma em meio ao petrolão foi reeleita. Na primeira
pesquisa após as eleições, quando vieram à tona mais revelações sobre os
alcances na Petrobrás, a maneira como a presidente governa o País foi aprovada
por 52% e desaprovada por 41%. Já a parcela da população que afirma confiar na
presidente foi de 51%, ante 44% que não confiam, segundo o Ibope de 17 último.
Como se justifica tal complacência de
nossa gente com os desvios graves de conduta dos seus governantes?
A explicar tal comportamento há
preocupante pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, publicada no
Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014, sobre a visão dos brasileiros
acerca da lei e das instituições judiciais. A pesquisa ouviu mais de 7 mil
pessoas em oito Estados e as respostas indicaram que 81% delas concordam ser
fácil desobedecer à lei, preferindo-se o jeitinho em vez da obediência ao
Direito, mesmo porque há poucas razões para o respeitar.
Prevalece o senso comum de ficarem as
leis apenas no papel, em vias do que se reconhece como generalizada a percepção
de ser fácil driblá-las, tendo-se por consequência o sentimento de que o engano
à lei não é moral nem socialmente reprovável.
Outro dado relevante consiste na
posição de nossas elites, pois quanto maior a renda e o nível cultural, maior a
convicção da vantagem de ignorar a ordem legal, a ser facilmente burlada; 85%
das pessoas com renda acima de oito salários mínimos concordam ser fácil burlar
a lei, posição compartilhada por apenas 71% dos assalariados com renda não
superior a um salário mínimo. As elites dão o mau exemplo. O dono de grande
rede comercial de objetos para casa assegura ser melhor vender para pobre do
que para rico, este sendo muitas vezes despreocupadamente inadimplente. A
classe secularmente explorada rege-se mais pela correção.
Instaura-se, portanto, na sociedade,
a ideia de ser desimportante o respeito à lei, sendo, assim, logicamente não
reprovável o seu desrespeito. Ao desonesto, quando muito, a indiferença. Muitos
candidatos sabidamente corruptos, mas ainda ficha-limpa por estarem os
processos em curso, mereceram o voto popular.
Instala-se a cultura da esperteza
como um valor positivo, parecendo que no fundo das consciências há grande e
silenciosa conspiração em favor da conhecida frase de Stanislaw Ponte Preta:
"Ou restaure-se a moralidade, ou nos locupletemos todos".
Como a grande maioria entende ser
normal locupletar-se, não vendo vantagem em ser honesto, pois não rende
respeito, nem há, de outro lado, punição por ser desonesto, vale a pena, então,
apostar na impunidade e tirar proveito. Assim, parte-se do princípio de que, se
muita gente tem lá culpa no cartório, uma mão lavará a outra, sendo mais cômodo
deixar a restauração da moralidade para a outra encarnação.
A imposição de uma pena ao crime não
deixa de ter um papel pedagógico, à espera de que venha a reforçar na
consciência da comunidade a positividade do valor afrontado com o delito. No
caso da corrupção ou da fraude à licitação, os valores da probidade
administrativa e do zelo com o dinheiro público deveriam ser reafirmados com a
instauração de processos e mais ainda com condenações. Esse efeito colateral do
processo criminal e da imposição de sanções, todavia, não tem tido,
isoladamente, no Brasil a consequência de gerar comportamentos corretos e leais
na administração pública, havendo "mensalinhos" espalhados em
prefeituras deste nosso país. Descoberto o mensalão, partiu-se para o petrolão.
Vive-se a contradição da aprovação de
Dilma num cenário absolutamente adverso, com a responsabilização pelos
"malfeitos" batendo à porta do Planalto. Mas será que agora, com o
seguimento das investigações, pelos volumes desviados e com a indicação do nome
dos políticos envolvidos surgindo em fevereiro, haverá mudança na mentalidade
do brasileiro no tocante à importância de respeitar a lei? Ou será que
continuará em 2015 a vicejar a expectativa de poder se locupletar antes que se
instaure a moralidade?
O Brasil virá às ruas em favor da
honestidade para demonstrar que a malandragem esperta merece, além de sanções
penais, a reprovação da sociedade?
Muitos caminhos deverão ser
percorridos para se disseminar a cultura do respeito à lei, em lenta evolução
moral. Em todo caso, feliz 2015."
MIGUEL REALE JÚNIOR É ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR
APOSENTADO DA FACULDADE
DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA
PAULISTA DE LETRAS. FOI MINISTRO DA JUSTIÇA.