quinta-feira, 19 de março de 2015

Energias renováveis e interesse econômico (publicado na Veja eletrônica)


"Para o francês Christian Stoffaës, membro do Ministério de Economia da França e professor de economia internacional na Universidade de Paris, o desenvolvimento da indústria de energia renovável e o consequente barateamento dos recursos sustentáveis serão pontos essenciais para que os países cumpram as metas de diminuição de emissões de gases de efeito estufa a serem estabelecidas na Cúpula do Clima de Paris, que acontece em dezembro deste ano. A expectativa é que, no fim da conferência, os 195 países da ONU assinem um acordo que vai substituir o defasado Procotolo de Quioto, de 1997, até hoje base para a implementação de leis sustentáveis.

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Na última Cúpula do Clima, que aconteceu em Lima, no Peru, no fim do ano passado, surgiram críticas que apontaram a lentidão das negociações entre governos. O que podemos esperar de Paris? 

Até dezembro, os diplomatas continuarão negociando para encontrar um consenso mínimo sobre o acordo. Nos últimos quinze anos (que seguiram o Protocolo de Quioto) esse processo foi prejudicado pelo fato de os Estados Unidos não terem ratificado o documento e por países participantes, como o Canadá e a Austrália, terem desistido de suas metas no meio do caminho. É importante lembrar que nessa COP as vozes a serem ouvidas não são só a dos diplomatas, mas também a de representantes da sociedade civil, da indústria e de ONGs. A expectativa é que haja 45 000 pessoas em Paris, e só o fato de tanta gente se encontrar para debater essas questões já é algo importante. Gera mais pressão para que se apresente um resultado satisfatório, o que certamente irá acontecer, mas nós ainda não sabemos como esse documento será. Se as conversas relativas a corte de emissões não evoluírem, é importante achar outras vias de negociação.

Quais seriam essas outras vias? 

Acho que um bom exemplo é a COP-15, que aconteceu em Copenhague em 2009. No evento, a posição defensiva dos Estados Unidos impediu qualquer possibilidade de avanço nas negociações de redução de emissões, então foi preciso encontrar outra forma de ajudar os países em desenvolvimento a lidar com as mudanças climáticas. O resultado foi a criação do Fundo Verde do Clima, que é basicamente o comprometimento dos países desenvolvidos em transferir 100 bilhões de dólares por ano às nações em desenvolvimento, mais vulneráveis economicamente, para lidar com as mudanças climáticas. Mesmo hoje, um dos focos da negociação ainda é esse, porque 100 bilhões de dólares não é uma quantia fácil de encontrar. Alguns países já se comprometeram, mas ainda é difícil. A negociação para um novo Protocolo de Quioto não será fácil, mas temos que construir esse consenso.


Quais serão os maiores obstáculos para se chegar ao consenso? 

Existe uma coalizão entre os países desenvolvidos e, do lado oposto, outra entre as nações em desenvolvimento. O Protocolo de Quioto estabeleceu que apenas os primeiros deveriam se comprometer com reduções absolutas de emissões. A posição dos países desenvolvidos é de que a concentração de dióxido de carbono na atmosfera não é de responsabilidade exclusiva deles e que, portanto, eles não merecem ser prejudicados, por também terem direito a investirem no próprio desenvolvimento, o que pode ocasionar no aumento das emissões de CO2. É um argumento forte, mas se quisermos um acordo, é preciso que os países se comprometam. De qualquer forma, apesar desses acordos exigirem que os países estabeleçam metas, não há nenhuma penalidade caso eles não as cumpram. Em resumo, o grande obstáculo a ser superado é o da conciliação entre o grupo dos desenvolvidos com o dos em desenvolvimento.

Esse é um embate presente nas conferências há algum tempo, e a impressão que ficou de Lima é que nenhum dos dois lados está disposto a ceder. Há solução? 

Esse é o trabalho dos diplomatas. As negociações são sigilosas, eu não sei exatamente o que está acontecendo, mas tenho certeza que estão trabalhando duro nisso. Quanto ao embate entre os dois lados, o papel das Nações Unidas é defender a unanimidade, ou seja, um acordo só passa se for aprovado por todos. Se a regra fosse da maioria, seria mais simples: os países em desenvolvimento, que representam cerca de dois terços do total da ONU, seriam beneficiados; mas isso negaria todo o processo diplomático da ONU.

Há risco de que, depois de tanta negociação, o acordo de Paris caia na irrelevância ao não ser ratificado pelos países mais poluidores, como aconteceu com Quioto? 

Eu estava presente na COP-97, onde foi assinado o Protocolo. Al Gore veio à conferência com um mandato do presidente Bill Clinton. O vice-presidente assinou o documento, mas quando voltou para os EUA o senado o bloqueou. Poucas pessoas sabem disso, mas naquela época o senado americano votou uma resolução chamada Byrd-Hagel, que diz que os EUA nunca vão assinar um acordo de políticas climáticas em que não haja um comprometimento dos países em desenvolvimento equivalentes àqueles assumidos pelos desenvolvidos. Essa questão ainda não foi resolvida, porém, é preciso ser otimista. Temos que lembrar que muita coisa mudou desde 1997. O maior exemplo talvez seja o surgimento da indústria de energia renovável, que teve um desenvolvimento espetacular nos últimos dez anos, em consequência das negociações climáticas.

É certo deduzir que as energias renováveis só se popularizarão quando forem mais vantajosas economicamente do que as fontes fósseis? 

Sim, mas hoje as renováveis não estão tão longe da competitividade econômica. É impressionante ver como o preço dos painéis solares caiu muito em pouco tempo, e isso é mais um resultado das negociações climáticas. Acordos como o de China e EUA (que se comprometeram a cortar significativamente as emissões de CO2 até 2030) só foram firmados porque hoje existem fontes alternativas viáveis, que permitem que os países assumam compromissos mais ambiciosos. Além disso, é preciso lembrar que o petróleo e o gás são finitos. A indústria finalmente percebeu a necessidade de encontrar substitutos para eles, e agora a competição está entre as renováveis e a energia nuclear.

O preço baixo do petróleo pode prejudicar a popularização das renováveis ou mesmo as negociações climáticas? 

O preço do petróleo tem muita influência, claro. Nos últimos meses, o preço caiu espetacularmente, pela metade. Nós veremos os efeitos disso em Paris, e ainda não há como prever com precisão os resultados. Mas é importante ressaltar que o consumo de carvão também aumentou na última década, apesar das negociações. E como o carvão ainda é a fonte de energia mais barata, geralmente é a melhor solução para os países em desenvolvimento que têm dificuldade em responder à demanda energética interna sem ter de apelar aos poluentes.

Se a energia renovável se tornar mais econômica, podemos admitir que mais pessoas optarão por elas. Mas isso não faria com que o preço dos combustíveis fósseis também caíssem, como efeito da lei de oferta e procura? 

Uma das opções é o uso de subsídios. A expansão das renováveis nas últimas duas décadas foi intensamente subsidiada, especialmente pela Tarifa Prêmio (Feed-in, em inglês), um mecanismo de promoção eficiente. Essa tarifa, desenvolvida pela Alemanha, estabelece que produtores de energia renovável possam vender a energia produzida para agências elétricas por um preço fixo, o que é vantajoso. Outra estratégia seria a taxação global dos combustíveis fósseis. As negociações devem avançar nesse sentido também.

Você citou o acordo bilateral entre China e Estados Unidos, apresentado em setembro do ano passado. Será que esses acordos menores não são mais eficientes em fazer com que países estabeleçam metas do que as negociações globais? 

De fato é mais fácil ter comprometimentos individuais em acordos bilaterais ou regionais do que em negociações globais, mas isso é uma negação do processo diplomático da ONU, que é multilateral e precisa ser assinado por todos. Além disso, são essas negociações globais que impulsionam os países a estabelecer esses acordos menores.

Há hoje condições financeiras e sociais para que os países estabeleçam planos que consigam limitar o aquecimento global à meta de dois graus de elevação até o fim do século, o ideal para evitar cenários de contornos catastróficos? 


Esse ponto é um problema. O último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, órgão da ONU) dá estimativas dos esforços que seriam necessários para atingir tal objetivo, e não estamos próximos de cumpri-los. Mas não vamos ser pessimistas, porque as coisas estão progredindo. Uma indústria poderosa de renováveis está sendo construída, e isso é importante porque no começo não havia nenhum interesse econômico nas negociações. Como os Estados Unidos estão de olho na indústria renovável, os seus diplomatas devem aceitar termos com os quais eles não concordariam no passado”.

O PT: achacadores de empresas públicas e privadas

"O empresário Cristiano Kok, presidente do conselho de administração da empreiteira Engevix, admite que pagou cerca de R$ 10 milhões em propina para o doleiro Alberto Youssef e diz ter feito isso para receber pelas obras que fazia para a Petrobras". Segue abaixo a entrevista publicada na FSP em 19 de março de 2015.


"Folha - Ao todo, quanto vocês pagaram de propina nos contratos da Petrobras?

Cristiano Kok - Foram R$ 6 milhões a R$ 7 milhões num contrato de R$ 700 milhões da refinaria Abreu e Lima, e mais uns R$ 3 milhões na refinaria de Cubatão. Pagamos em prestações mensais para três empresas do Alberto Youssef, como se fosse prestação de serviços. Quando começou a Lava Jato, ficamos sem dinheiro e paramos tudo. Só que Youssef tinha duplicatas assinadas por nós e as descontou no banco. O banco veio atrás e tivemos que pagar para não ficar com o nome sujo.

Para quem ia o dinheiro?

Não sei. José Janene [ex-deputado do PP] indicou o Youssef e ele dizia: 'Paga isso aqui, paga aquilo ali'. Não sei para onde o dinheiro ia e só soube que as empresas eram do Youssef muito depois.

O sr. não desconfiava que o dinheiro era para políticos?

Como a indicação do Youssef foi política, evidentemente ele falava em nome do partido [PP]. Mas para quem ele mandou dinheiro eu não sei.

A propina era para ganhar contratos na Petrobras?

Era para não ser prejudicado nos pagamentos de aditivos [aos contratos] e das medições da obra. Os contratos a gente ganhou por licitação. Mas, para receber em dia, e ter as medições aprovadas, tem que pagar comissão, taxa de facilitação, propina, chame do que você quiser. Você começa a obra, monta equipe, se instala, sua um pouquinho e aí começam a aparecer as dificuldades para receber. Era chantagem mesmo. Extorsão.

E as outras empresas, pagavam para ganhar obras?

Não sei dizer a razão delas. Cada caso é um caso.

O sr. tem um sócio na cadeia há mais de 120 dias, está com o nome sujo e precisa vender quase tudo para pagar dívidas. O que passa pela sua cabeça?

Minha resposta imediata seria dizer que foi tudo um absurdo, não devia ter participado. Mas era fazer isso ou ficar sem serviço. As empresas cometeram erros e estão pagando um preço altíssimo por um processo de extorsão.
Agora, será que alguma empresa poderia ter denunciado que estava sendo extorquida pelo Paulo Roberto [Costa, ex-diretor da Petrobras]? No mundo real não dá para fazer isso. Você sai do mercado, seu contrato é cancelado, vão comer teu fígado.

O governo diz que a Petrobras foi vítima de...

Foi vítima de má gestão. Os políticos aparelharam essa máquina com gestores incompetentes, para obter vantagens pessoais ou para seus partidos. A versão que tem sido divulgada é que a Petrobras foi assaltada por um bando de empreiteiras. A verdade é que os políticos aparelharam a Petrobras para arrancar dinheiro das empreiteiras.

O Ministério Público afirma que as doações de campanha também são pagamento de propina, só que disfarçado.

Nunca pagamos doação de campanha para ganhar contratos ou fazer obras. Na última semana de campanha, por exemplo, o tesoureiro da Dilma [Edinho Silva] saiu pedindo dinheiro para todos, e contribuímos com R$ 3 milhões. Tudo registrado. Agora, evidentemente, quando você apoia um partido ou um candidato, no futuro eles vão procurar ajudá-lo de alguma forma, não tenha dúvida. É política de boa vizinhança.

Segundo as investigações, as empreiteiras superfaturavam os preços das obras.

Não houve superfaturamento. Não dá para dizer isso sem uma perícia.

O TCU (Tribunal de Contas da União) fez perícia e constatou superfaturamento na refinaria Abreu e Lima.

Os critérios do TCU estão errados. Pegam os preços de uma pavimentação de asfalto e aplicam na pista do aeroporto. São coisas diferentes.

Mas os preços de Abreu e Lima e de outras obras explodiram.

A Petrobras lançava as obras sem projeto e depois ia acrescentando coisas que encareciam tudo. Pediu granito no banheiro, no refeitório, um revestimento caríssimo nos 53 prédios da refinaria. Em Abreu e Lima, nosso contrato era de R$ 700 milhões, mas acabamos gastando R$ 1,1 bilhão por causa das exigências extras da Petrobras. Nos devem R$ 400 milhões. Em Macaé (RJ), fizemos um contrato de R$ 300 milhões e a obra ficou em R$ 450 milhões. Mais prejuízo. Estamos cobrando a Petrobras por isso. Mas eu devo ser muito burro, porque paguei comissão e perdi dinheiro.

Mas fazer obras sem projeto não era conveniente para as empreiteiras? 
Vocês podiam pendurar lá o que quisessem.

Você entra achando que já que o projeto é mal feito vai poder cobrar mais para fazer direito, só que na hora de cobrar eles não te pagam.

Vocês combinavam a divisão das obras entre as empresas?

Eu não participei disso. Mas havia, digamos assim, uma certa organização para que uma empresa que já estava trabalhando numa determinada refinaria continuasse lá, porque não tem sentido trocar por outra. A Petrobras poderia fazer isso, mas deixava para o mercado.

Isso não é cartel?

Num cartel, um grupo de empresas se organiza para combinar os preços do mercado. No caso da Petrobras, ela é a única compradora, ela estabelece preço e ela escolhe quem participa. Não há a menor chance de entrar numa obra se ela não quiser.

O contrato da Engevix com o ex-ministro José Dirceu também era para pagar propina?

Nunca foi propina. Dirceu foi contratado pelo relacionamento que tinha no Peru, em Cuba e na África. Tínhamos interesse nesses mercados, mas não houve resultados. O contrato era em torno de R$ 1 milhão, não sei exatamente. Fizemos outro contrato com o Paulo Roberto Costa depois que ele saiu da Petrobras. Eram R$ 30 mil por mês, para consultoria.

Quem é Milton Pascowitch, que seu sócio Gerson Almada citou em depoimento como uma ponte com o PT?

Milton atua conosco há mais de 15 anos. Tem um relacionamento forte com o PT e disse para o Gerson que podia ajudar no relacionamento com o partido. Foram feitos contratos com ele para fazer esse relacionamento. Era uma relação de lobby, nunca para pagamento de propina.

O envolvimento no escândalo afetou sua vida pessoal?

Na família tem gente que olha assim meio enviesado, mas até agora não vi ninguém na rua apontando para mim ou coisa parecida. As pessoas que conhecem o setor parecem solidárias, mas ao mesmo tempo estão em busca de oportunidades e vão para cima de você. Nossas empresas perderam valor e tem gente de olho nisso.

O que mudou na sua rotina?

Fiquei mais místico. Eu não era voltado para a espiritualidade, agora medito, passei a rezar. Peço ao poder superior uma ajuda. Até agora tive duas sortes que atribuo à proteção divina: não fui preso e não sou réu em processo.

A Engevix vai quebrar?

Espero que não. Vendemos nossa empresa de energia e colocamos à venda nossas participações nos aeroportos de Brasília e Natal, e o estaleiro no Sul. Devemos mais de R$ 1,5 bilhão a bancos e fornecedores. Se tudo der certo, vamos encolher, mas continuar vivos. O faturamento do ano passado, que foi de R$ 3 bilhões, cai para R$ 1 bilhão.

Como está a negociação do acordo de leniência com a Controladoria-Geral da União?

Assinamos a minuta de um acordo para começar a discussão, mas parou nisso.

Conseguirá pagar os R$ 538 milhões cobrados na Justiça?


De jeito nenhum. Se tem alguém que precisa pagar é a Petrobras, que nos deve mais de R$ 500 milhões". 

"A corrupção é uma senhora idosa" (Dilma Rousseff)

A polícia conseguiu identificar a tal senhora. Não foi difícil. Segundo a senadora Gleisi Hoffman (em bate boca com a senadora Marta Suplicy), dona Dilma não vai mudar suas práticas. "É uma mulher de 67 anos, tem uma história. Não vai mudar". As madames se conhecem e se entendem. Coisa de brancas.



terça-feira, 17 de março de 2015

Michel Temer Presidente


Dilma, a humilde

Em recente e momentosa entrevista (concedida com o propósito de refutar a gigantesca massa de gente que se levantou pelo Brasil afora contra ela, o PT e seu governo), dona Dilma envelopou sua iracunda catadura com o adocicado véu da humildade. No entanto, ainda pouco afeita aos gestos que marcam os primeiros passos para se chegar à sabedoria, a velha senhora, recém-convertida à humildade, tropeçou algumas vezes nas palavras. Compreensível. Neófitos em artes que lhes são por completo estranhas, quando tentam se exercitar gaguejam, tropeçam, contradizem-se com alguma frequência. 

Dona Dilma, doravante a mais humilde entre os dirigentes pátrios, se outorgou o admirável título, numa imitação barata de Stálin, através de um ucasse definitivo e irrevogável, ao estilo do Gosplan. A patacoada soaria como delírio inconsequente se não lembrasse as trapalhadas do Chaves, não o facinoroso venezuelano, mas o encantador personagem mexicano vivido por Roberto Bolaños.

Em um dos episódios da comédia infantil, o professor Girafales conversa com um lacrimejante Chaves num canto do pátio onde se desenrolam suas aventuras. O histriônico professor tenta consolar o Chaves (que se lamentava por um erro qualquer que havia cometido), coisa banal e sem maior importância, dizendo-lhe que todos erram alguma vez na vida. Chaves retruca perguntado então se ele – o sábio mestre – também já havia cometido algum erro. O professor Girafales, ao estilo premonitório de dona Dilma, foi definitivo: “sim, Chaves, eu também já errei; errei pensando que tinha errado”. 

Dona Dilma, a humilde, ao que parece, inspirou-se no burlesco professor Girafales para definir o novo papel que pretende desempenhar. Provavelmente a madame só se lembrou dele, muito popular desde os anos 70 do século passado. Outras referências não deveriam estar disponíveis para escolha, certamente por absoluto desconhecimento e impossibilidade histórica. Afinal, ela não teve muitas oportunidades de conviver com gente que não fosse arrogante, autoritária, totalitária e pernóstica. 

Se na juventude ela aprendeu a dialogar portando uma metralhadora, a compulsão à repetição (conforme alertava Freud), só poderia conduzi-la pelo trilho que construiu ao caminhar, distribuindo pontapés e pescoções a torto e a direito. Agora, dona Dilma proclama que está livre de repetir o hábito perverso: tornou-se humilde e ai dos que discordarem. Na referida entrevista, ponderou que ela talvez tenha se equivocado em alguma decisão de governo. Não no mérito, frisou, porém na dose e na extensão, como se fora uma homeopata distraída que se esqueceu de diluir suas beberagens, e apresentou ao doente o veneno em sua forma pura.

A história apresenta a dona Dilma uma surpreendente oportunidade de exercitar a força de sua humildade. Poderá renunciar, como Collor. Não precisa ir ao limite de uma solução ao estilo Vargas. O povo brasileiro é bom e generoso.

À beira do abismo (Mario Vargas Llosa)


Quando o Governo venezuelano de Nicolás Maduro autorizou sua guarda pretoriana a usar armas de fogo contra as manifestações de rua dos estudantes sabia muito bem o que fazia: seis jovens já foram assassinados nas últimas semanas pela polícia ao tentar calar os protestos de uma sociedade cada vez mais enfurecida com os atropelos desenfreados da ditadura chavista, a corrupção generalizada do regime, o desabastecimento, o colapso da legalidade e a situação crescente de caos que se estendem por todo o país.
Esse contexto explica a escalada repressora do regime nos últimos dias: a detenção do prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, um dos mais destacados líderes da oposição, quando se completava um ano da prisão de Leopoldo López, outro dos grandes resistentes, e meses depois de haver privado de modo abusivo da condição de parlamentar –e ter submetido a um assédio judicial sistemático– María Corina Machado, figura relevante entre os adversários do chavismo. O regime se sente encurralado pela crítica situação econômica à qual sua demagogia e inépcia conduziu o país, sabe que sua popularidade está caindo e que, ao menos que dizime e intimide a oposição, sua derrota nas próximas eleições será cataclísmica (as pesquisas mostram que tem apenas 20% de popularidade).
Por isso desatou o terror de maneira descarada e cínica, dando a desculpa habitual: uma conspiração internacional dirigida pelos Estados Unidos, da qual os opositores democráticos do chavismo seriam cúmplices. Conseguirá calar os protestos mediante os crimes, torturas e batidas policiais maciços? Há um ano conseguiu, quando, encabeçados pelos estudantes universitários, milhares de venezuelanos se lançaram às ruas em toda a Venezuela pedindo liberdade (eu estive lá e vi com os próprios olhos a formidável mobilização libertária dos jovens de todas as condições sociais contra o regime ditatorial). Para isso foi necessário o assassinato de 43 manifestantes, muitas centenas de feridos e de torturados nos presídios políticos e milhares de detidos. Mas no ano que transcorreu a oposição ao regime se multiplicou e a situação de desmando, desabastecimento, opróbrio e violência só serviu para encolerizar cada vez mais as massas venezuelanas. Para tolher e submeter esse povo desesperado e heroico será preciso uma repressão infinitamente mais sanguinária do que a do ano passado.
Maduro, o pobre homem que sucedeu Chávez na cabeça do regime, demonstrou que sua mão não treme na hora de fazer correr o sangue dos compatriotas que lutam pela volta da democracia à Venezuela. Quantos mortos mais e quantas prisões repletas de presos políticos serão necessários para que a OEA e os Governos democráticos da América Latina abandonem seu silêncio e ajam, exigindo que o Governo chavista renuncie à sua política repressora contra a liberdade de expressão e a seus crimes políticos, e facilitem uma transição política da Venezuela a um regime de legalidade democrática?
No excelente artigo Um estentóreo silêncio, como costumam ser os que escreve, Julio María Sanguinetti (EL PAÍS, 25 de fevereiro de 2015) censurava severamente esses Governos latino-americanos que, com a tépida exceção da Colômbia – cujo presidente se ofereceu para mediar entre o Governo de Maduro e a oposição –, observam impassíveis os horrores que o povo venezuelano padece sob um Governo que perdeu todo o sentido dos limites e age como as piores ditaduras sofridas pelo continente das oportunidades perdidas. Podemos estar certos de que o emotivo chamado do ex-presidente uruguaio à decência, feito aos dirigentes latino-americanos, não será escutado. Que outra coisa se poderia esperar dessa lastimável coleção em que abundam os demagogos, os corruptos, os ignorantes, os políticos rasteiros? Para não falar da Organização dos Estados Americanos, a instituição mais inútil que a América Latina produziu em toda a sua história: a tal ponto que, se poderia dizer, cada vez que um político latino-americano é eleito para o cargo de secretário-geral parece abrandar-se e sucumbir a uma espécie de catatonia civil e moral.
Sanguinetti contrapõe, com muita razão, a atitude desses Governos “democráticos” que olham para o outro lado quando na Venezuela os direitos humanos são violados e canais, emissoras de rádio e jornais são fechados com a celeridade com que esses mesmos Governos “suspenderam” o Paraguai da OEA quando esse país, seguindo os mais estritos procedimentos constitucionais e legais, destituiu o presidente Fernando Lugo, uma medida que a imensa maioria dos paraguaios aceitou como democrática e legítima. A que se deve o uso de dois pesos e duas medidas? A que o senhor Maduro, que compareceu à transferência do comando presidencial no Uruguai e foi recebido com honras por seus colegas latino-americanos, seja de “esquerda” e os que destituíram Lugo fossem supostamente de “direita”.
Embora muitas coisas tenham mudado para melhor na América Latina nas últimas décadas – há menos ditaduras do que no passado, uma política econômica mais livre e moderna, uma redução importante da extrema pobreza e um crescimento notável das classes médias –, seu subdesenvolvimento cultural e cívico é ainda muito profundo e isso se torna patente no caso da Venezuela: para não serem acusados de reacionários e “fascistas’”, os governantes latino-americanos que chegaram ao poder graças à democracia estão dispostos a cruzar os braços e olhar para o outro lado enquanto um bando de demagogos assessorado por Cuba na arte da repressão vai empurrando a Venezuela até o totalitarismo. Não se dão conta de que sua traição aos ideais democráticos abre as portas a que no dia de amanhã seus países sejam também vítimas desse processo de destruição das instituições e das leis que está levando a Venezuela à beira do abismo, ou seja, a se transformar em uma segunda Cuba e a aguentar, como a ilha do Caribe, uma longa noite de mais de meio século de ignomínia.
O presidente Rómulo Betancourt, da Venezuela, que era de um calibre diferente dos atuais, pretendeu, nos anos sessenta, convencer os Governos democráticos da América Latina de então (eram poucos) a chegar a um acordo sobre uma política comum contra os Governos que – com o de Nicolás Maduro– violentassem a legalidade e se convertessem em ditaduras: romper relações diplomáticas e comerciais com eles e denunciá-los no plano internacional, a fim de que a comunidade democrática ajudasse desse modo quem, no próprio país, defendesse a liberdade. Não é preciso dizer que Betancourt não obteve apoio nem sequer de um único país latino-americano.
A luta contra o subdesenvolvimento sempre estará ameaçada de fracasso e retrocesso enquanto os dirigentes políticos da América Latina não superarem esse estúpido complexo de inferioridade que nutrem contra uma esquerda à qual, apesar das catastróficas credenciais que possa exibir em temas econômicos, políticos e de direitos humanos (não bastam os exemplos dos Castro, Maduro, Morales, Kirchner, Dilma Rousseff, o comandante Ortega e companhia?), concedem ainda uma espécie de superioridade moral em temas de justiça e solidariedade social.