sábado, 17 de dezembro de 2011

De peito aberto - Nelson Mota

(Publicado em O Globo, de 16-12-2011)

"Que Praça Tahir que nada, Ocuppy Wall Street é passado, que indignados conseguem chamar mais atenção para suas causas? Entre as novas formas de manifestações e protestos na era digital, a mais sensacional é o coletivo ucraniano Femen. Mulheres lindas, louras e nuas, ou quase, protestando em via pública pelas mais variadas causas, não necessariamente feministas.

De peito aberto, elas gritam contra a corrupção, as fraudes eleitorais, a violência contra mulheres, a prostituição, e ganham espaços espetaculares na mídia planetária. Os policiais encarregados de reprimi-las ficam nervosos e cheios de dedos, elas esperneiam e gritam enquanto eles tentam cobrir a nudez ultrajante com a manta da hipocrisia. Epa! Nudez ultrajante? Manta da hipocrisia? Menos, colunista, menos.

As manifestações começaram em Kiev, mas as garotas do Femen ficaram tão famosas que até já atuaram como protestantes-convidadas na Rússia. Se continuarem tão requisitadas para manifestações na Europa, em breve poderão programar uma turnê internacional de protestos.

Hoje elas são cerca de 300 militantes na Ucrânia, mas a tropa de choque que vai para as ruas tem 40 ativistas, não por acaso as mais bonitas e com melhores atributos para a missão. Logo se abriu outra discussão entre as feministas, sobre a ausência de barangas no núcleo duro, ou macio, das manifestações. Elas negam e dizem que já houve até uma sexagenária topless. Mas é exceção, a tática é mesmo escalar as mais gatas para chamar a atenção. É um bom uso para a beleza.

Feministas americanas históricas como Betty Friedan e Germaine Greer ficariam histéricas diante das lourinhas e louraças do Femen e seus corpos avassaladores.

Não se discutem os méritos das suas causas, mas a eficiência dos seus métodos e práticas, as reações que provocam. Elas invertem o jogo de mulheres nuas como objetos sexuais dos homens, e exercem seu poder exibindo o corpo, não como oferta ou sedução, mas como um veículo de suas vontades.

São elas que estão em controle, aos homens resta ficar olhando e desejando - mas terão delas apenas as suas palavras de ordem e seus slogans."

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O pensamento de FHC analisado por Millôr Fernandes

"LIÇÃO PRIMEIRA

De uma coisa ninguém podia me acusar — de ter perdido meu tempo lendo FhC (superlativo de PhD). Achava meu tempo melhor aproveitado lendo o Almanaque da Saúde da Mulher. Mas quando o homem se tornou vosso Presidente, achei que devia ler o Mein Kampf (Minha Luta, em tradução literal) dele, quando lutava bravamente, no Chile, em sua Mercedes (“A mais linda Mercedes azul que vi na minha vida”, segundo o companheiro Weffort, na tevê, quando ainda não sabia que ia ser Ministro), e nós ficávamos aqui, numa boa, papeando descontraidamente com a amável rapaziada do Dops-DOI-CODI.

Quando, afinal, arranjei o tal Opus Magno — Dependência e Desenvolvimento na América Latina — tive que dar a mão à palmatória. O livro é muito melhor do que eu esperava. De deixar o imortal Sir Ney morrer de inveja. Sem qualquer partipri, e sem poder supervalorizar a obra, transcrevo um trecho, apanhado no mais absoluto acaso, para que os leitores babem por si:

“É evidente que a explicação técnica das estruturas de dominação, no caso dos países latino-americanos, implica estabelecer conexões que se dão entre os determinantes internos e externos, mas essas vinculações, em que qualquer hipótese, não devem ser entendidas em termos de uma relação “causal-analítica”, nem muito menos em termos de uma determinação mecânica e imediata do interno pelo externo. Precisamente o conceito de dependência, que mais adiante será examinado, pretende outorgar significado a uma série de fatos e situações que aparecem conjuntamente em um momento dado e busca-se estabelecer, por seu intermédio, as relações que tornam inteligíveis as situações empíricas em função do modo de conexão entre os componentes estruturais internos e externos. Mas o externo, nessa perspectiva, expressa-se também como um modo particular de relação entre grupos e classes sociais de âmbito das nações subdesenvolvidas. É precisamente por isso que tem validez centrar a análise de dependência em sua manifestação interna, posto que o conceito de dependência utiliza-se como um tipo específico de “causal-significante’ — implicações determinadas por um modo de relação historicamente dado e não como conceito meramente “mecânico-causal”, que enfatiza a determinação externa, anterior, que posteriormente produziria ‘conseqüências internas’.”

CONCURSO

Qualquer leitor que conseguir sintetizar, em duas ou três linhas (210 toques), o que o ociólogo preferido por 9 entre 10 estrelas da ociologia da Sorbonne quis dizer com isso, ganhará um exemplar do outro clássico, já comentado na primeira parte desta obra: Brejal dos Guajas — de José Sarney.

LIÇÃO SEGUNDA

Como sei que todos os leitores ficaram flabbergasted (não sabem o que quer dizer? Dumbfounded, pô!) com a Lição primeira sobre Dependência e Desenvolvimento da América Latina, boto aqui outro trecho — também escolhido absolutamente ao acaso — do Opus Magno de gênio da “profilática hermenêutica consubstancial da infra-estrutura casuística”, perdão, pegou-me o estilo. Se não acreditam que o trecho foi escolhido ao acaso, leiam o livro todo. Vão ver o que é bom!

Estrutura e Processo: Determinações Recíprocas

“Para a análise global do desenvolvimento não é suficiente, entretanto, agregar ao conhecimento das condicionantes estruturais a compreensão dos ‘fatores sociais’, entendidos estes como novas variáveis de tipo estrutural. Para adquirir significação, tal análise requer um duplo esforço de redefinição de perspectivas: por um lado, considerar em sua totalidade as ‘condições históricas particulares’ — econômicas e sociais — subjacentes aos processos de desenvolvimento no plano nacional e no plano externo; por outro, compreender, nas situações estruturais dadas, os objetivos e interesses que dão sentido, orientam ou animam o conflito entre os grupos e classes e os movimentos sociais que ‘põem em marcha’ nas sociedades em desenvolvimento. Requer-se, portanto, e isso é fundamental, uma perspectiva que, ao realçar as mencionadas condições concretas — que são de caráter estrutural — e ao destacar os móveis dos movimentos sociais — objetivos, valores, ideologias —, analise aquelas e estes em suas relações e determinações recíprocas. (…) Isso supõe que a análise ultrapasse a abordagem que se pode chamar de enfoque estrutural, reintegrando-a em uma interpretação feita em termos de ‘processo histórico’(1). Tal interpretação não significa aceitar o ponto de vista ingênuo, que assinala a importância da seqüência temporal para a explicação científica — origem e desenvolvimento de cada situação social — mas que o devir histórico só se explica por categorias que atribuam significação aos fatos e que, em conseqüência, sejam historicamente referidas.
(1) Ver, especialmente, W. W. Rostow, The Stages of Economic Growth, A Non-Communist Manifest, Cambridge, Cambridge University Press, 1962; Wilbert Moore, Economy and Society, Nova York, Doubleday Co., 1955; Kerr, Dunlop e outros, Industrialism and Industrial Man, Londres, Heinemann, 1962.”

Comentário do Millôr, intimidado:

A todo momento, conhecendo nossa precária capacitação para entender o objetivo e desenvolvimento do seu, de qualquer forma, inalcançável saber, o professor FhC faz uma nota de pata de página. Só uma objeçãozinha, professor. Comprei o seu livro para que o senhor me explicasse sociologia. Se não entendo o que diz, em português tão cristalino, como me remete a esses livros todos? Em inglês! Que o senhor não informa onde estão, como encontrar. E outra coisa, professor, paguei uma nota preta pelo seu tratado, sou um estudante pobre, não tenho mais dinheiro. Além do que, confesso com vergonha, não sei inglês. Olha, não vá se ofender, me dá até a impressão, sem qualquer malícia, que o senhor imita um velho amigo meu, padre que servia na Paróquia de Vigário-Geral, no Rio. Sábio, ele achava inútil tentar explicar melhor os altos desígnios de Deus pra plebe ignara do pequeno burgo e ensinava usando parábolas, epístolas, salmos e encíclicas. E me dizia: “Millôr, meu filho, em Roma, eu como os romanos. Sendo vigário em Vigário-Geral, tenho que ensinar com vigarice”.

LIÇÃO TERCEIRA

Há vezes, e não são poucas, em que FhC atinge níveis insuperáveis. Vejam, pra terminar esta pequena explanação, este pequeno trecho ainda escolhido ao acaso. Eu sei, eu sei — os defensores de FhC, a máfia de beca, dirão que o acaso está contra ele. Mas leiam:

“É oportuno assinalar aqui que a influência dos livros como o de Talcot Parsons, The Social System, Glencoe, The Free Press, 1951, ou o de Roberto K. Merton, Social Theory and Social Structure, Glencoe, The Free press, 1949, desempenharam um papel decisivo na formulação desse tipo de análise do desenvolvimento. Em outros autores enfatizaram-se mais os aspectos psicossociais da passagem do tradicionalismo para o modernismo, como em Everett Hagen, On the Theory of Social Change, Homewood, Dorsey Press, 1962, e David MacClelland, The Achieving Society, Princeton, Van Nostrand, 1961. Por outro lado, Daniel Lemer, em The Passing of Traditional Society: Modernizing the Middle East, Glencoe, The Free Press, 1958, formulou em termos mais gerais, isto é, não especificamente orientados para o problema do desenvolvimento, o enfoque do tradicionalismo e do modernismo como análise dos processos de mudança social”.

Amigos, não é genial? Vou até repetir pra vocês gozarem (no bom sentido) melhor: “formulou (em termos mais gerais, isto é, não especificamente orientados para o problema do desenvolvimento) o enfoque (do tradicionalismo e do modernismo) como análise (dos processos de mudança social)”.

Formulou o enfoque como análise!

É demais! É demais! E sei que o vosso sábio governante, nosso FhC, espécie de Sarney barroco-rococó, poderia ir ainda mais longe. Poderia analisar a fórmula como enfoque.
Ou enfocar a análise como fórmula.

É evidente que só não o fez em respeito à simplicidade de estilo.



- Tópico avulso sobre imodéstia e pequenos disparates do eremita preferido dos Mamonas Assassinas:

Vaidade todos vocês têm, não é mesmo? Mas há vaidades doentias, como as das pessoas capazes de acordar às três da manhã para falar dois minutos num programa de tevê visto por exatamente mais ou menos ninguém. Há vaidades patológicas, como as de Madonas e Reis do Roque, só possíveis em sociedades que criaram multidões patológicas.

Mas há vaidades indescritíveis. Vaidade em estado puro, sem retoque nem disfarce, tão vaidade que o vaidoso nem percebe que tem, pois tudo que infla sua vaidade é para ele coisa absolutamente natural. Quem é supremamente vaidoso, se acha sempre supremamente modesto. Esse ser existe materializado em FhC (superlativo de PhD). Um umbigo delirante.

O que me impressiona é que esse homem, que escreve mal — se aquilo é escrever bem o meu poodle é bicicleta — e fala pessimamente — seu falar é absolutamente vazio, as frases se contradizem entre si, quando uma frase não se contradiz nela mesma, é considerado o maior sociólogo brasileiro.

Nunca vi nada que ele fizesse (Dependência e Desenvolvimento na América Latina, livro que o elevou à glória, é apenas um Brejal dos Guajas, mais acadêmico) e dissesse que não fosse tolice primária. “Também tenho um pé na cozinha”, “(os brasileiros) são todos caipiras”, “(os aposentados) são uns vagabundos”, “(o Congresso) precisa de uma assepsia”, “Ser rico é muito chato”, “Todos os trabalhadores deviam fazer checape”, “Não vou transformar isso (a moratória de Itamar) num fato político”. “Isso (a violência, chamada de Poder Paralelo) é uma anomia”. E por aí vai. Pra não lembrar o vergonhoso passado, quando sentou na cadeira da prefeitura de São Paulo, antes de ser derrotado por Jânio Quadros, segundo ele “um fantasma que não mete mais medo a ninguém”. Eleito prefeito, no dia seguinte Jânio Quadros desinfetou a cadeira com uma bomba de Flit.

E, sempre que aproxima mais o país do abismo no qual, segundo a retórica política, o Brasil vive, esse FhC (superlativo de PhD) corre à televisão e deita a fala do trono, com a convicção de que, mais do que nunca, foi ele, the king of the black sweetmeat made of coconuts (o rei da cocada preta), quem conduziu o Brasil à salvação definitiva e à glória eterna. E que todos querem ouvi-lo mais uma vez no Hosana e na Aleluia. Haja!"

FONTE: escrito por Millôr Fernandes; transcrito do blog O Esquerdopata.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A menina dentro do sopro (Shala Andirá)

A menina tem os olhos cor de cinza adormecida.
A menina chove dentro do sopro na orla sanguínea.
A menina chove azul, fininha, como grafite
quando definha. A menina chove
porque o que resta: é cheiro
de pingo tocando o chão do asfalto e a mágica do
céu cuspindo raio num sopro de trovão perseguindo o vento,
bem alto.

A menina chove dentro da teia de aranha
fiando diamantes líquidos por sobre o que
permanece calado dentro das pupilas.
A menina chove por que não há o que fique
mais claro do que o que se lê, no esforço relicário
de reler um grafite cinza claro.
A menina chove dentro do sopro.
Perto da sístole que é onde o coração
se contrai virando o jogo.

A menina chove o barulhinho, para quando ele dormir
poder sonhar, quem sabe, tudo de novo.
A menina chove dentro coração.
Dentro da praça no meio do povo.

Porque há um algo qualquer que se consome lento
no silêncio da ópera. No barulhinho brando da
madeira que um dia foi fogo:

(estalando o esmalte das línguas
até que chegaram: as vírgulas).
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(Para desatar nós e desapertar laços)

Mármore (Shala Andirá)

Partes mortas dançam
onde descansam os dedos do homem frágil.
Morrem mais as desesperanças e
se, não há fim, há sempre começo.

É preciso que haja vida, pois a morte é precisa
e antes que ele diga do excesso, surgirá
no calor o contorno lírico dos lábios e haverá
sorrisos,
na despedida das coisas perdidas, brincando
esse amor como coisa desmedida.

Esculpida de flores foi ganhando forma
de uma música infinita extraída do muro,
que girava em torno do menino
que tocava um violão sem cordas,
desacreditando no destino.


(Shala Andirá nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, em 19 de março de 1974)

Uma lição para a vida - Prof. Roberto DaMatta

(Publicado em O Estado de São Paulo - 14-12-2011)

Roberto daMatta é um notável antropólogo brasileiro. E um grande professor, acrescente-se. O texto abaixo é uma aula digna de ser multiplicada e repetida ao longo dos anos. Quem conhece o ambiente acadêmico brasileiro poderá entender as razões que fazem de Harvard a mais prestigiosa universidade do mundo. Roberto daMatta torna clara a maneira como se concretiza a mais brilhante recomendação kantiana: o pensar com a própria cabeça! O artigo segue abaixo.


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"Na minha primeiríssima e inesquecível - quem não se lembra de toda primeira e última vez? - estada nos Estados Unidos, em 1963, eu - um humilde e inseguro aprendiz de antropologia social numa portentosa Harvard - fiquei tão chocado quanto deslumbrado quando ouvia meninos e meninas com 20 e poucos anos de idade "discordarem" das idéias que saíam como cascata da obra dos grandes gênios das ciências sociais. Especialmente dos seus inventores, aqueles orgulhosos, persistentes, obsessivos e desafiadores Durkheim, Marx, Tocqueville, Frazer, Hocart, Mauss, Tylor, Maine, Weber... que em vez de policiarem e decretarem sobre o mundo, decidiram fazer o mais difícil: compreendê-lo em seus próprios termos. Esse modo mais complexo e profundo de transformá-lo.

Eu ficava apatetado e cheio de culpa quando meus colegas, uns merdinhas de olhos azuis claros como a inocência das louras que clamavam terem sido estupradas por negros, diziam em alto e bom som: "Eu discordo de Mauss!"; "Durkheim estava errado!"; "Preocupa-me a posição de Weber!"; "Marx perdeu o bonde!"; e assim por diante.

O modo tranquilo com que meus colegas, debaixo do olhar aprovador dos nossos professores, discordavam desses pioneiros me perturbava, pois quanto mais originais eram suas teorias, mais eles eram criticados. As opiniões não eram meras apreciações formais ou elogiosas de um iniciante ajoelhado diante de um mestre, mas uma assertiva sempre negativa e ostensivamente contrária ao que era discutido que, sendo boa ou profundamente enganada, promovia a discussão das idéias gerais contidas no livro em debate. Desse modo, todos (menos eu) faziam questão de bater de frente e essa atitude que para mim, surgia como hipercrítica, e até mesmo agressiva, passava por um crivo que eu não havia aprendido e certamente não existia no Brasil. O filtro de um ponto de vista individual e não a perspectiva pessoal que tende a atenuar ou arrefecer o debate e a apreciação do outro.

Entendi que estava no universo dos "eus". De fato, o que eu mais ouvia era o pronome pessoal "I" (eu). Entendi por que em inglês a primeira pessoa do singular, o "eu", é escrito com letra maiúscula...

Nesse contexto, passei por uma experiência decisiva. Num seminário sobre a história da antropologia, dirigido pela professora Cora Du Bois, uma pioneira, ao lado de Margaret Mead e Ruth Bennedict na prática da antropologia social, uma mulher que havia feito trabalho de campo na Ilha de Alor, na Indonésia, quando nós, no Brasil, achávamos um problema ir a Niterói e impossível conhecer Manaus, eu apresentei um desses autores clássicos. Não me lembro mais quem era, mas não me esqueci da luz que essa experiência lançou na diferença entre o meu modo de aprender e o dos meus colegas harvardianos. Pois quando terminei o meu resumo, recebi da professora uma pergunta surpreendente.

- Sua apresentação está mais do que correta! - disse Cora Du Bois -, mas o que eu quero mesmo é saber o que você pensa sobre as teorias que acabou de apresentar.
A ênfase no "você" que individualizava e buscava a minha opinião íntima - o sentimento de um "eu" que mal sabia era autônomo e tomava partido - deixou-me embasbacado. Eu jamais havia pensado em me distanciar e me individualizar diante do autor estudado. Pelo contrário, eu havia feito exatamente o oposto e me identificava com ele preparando-me para defendê-lo a todo custo. Jamais havia passado pela minha cabeça que era possível e desejável formar uma opinião pessoal sobre ele e, eis o espanto, que essa opinião, mesmo sendo a de um jovem iniciante, contava e a experiente e sábia professora fazia questão de ouvi-la.

No Brasil eu era bamba em discutir ideias, projetos, leis e sistemas políticos sem ser obrigado a tomar posição em relação ao que estava em pauta. Aliás, o que eu aprendia era jamais criticar certos autores e, pela mesma moeda, elogiar outros. Mas entre o lado direito e o esquerdo, o alto e o baixo, o bom e o ruim não havia nenhum espaço para dizer o que eu realmente pensava de cada um deles.

Meu aprendizado não era individual. Era pessoal e grupal no sentido de que cada grupo ou turma tinha seus padrinhos e heróis, bem como seus inimigos e bandidos, como figuras para serem idolatradas e admiradas, a ponto de jamais serem apreciadas de modo individualizado. Sabíamos definir socialismo e liberalismo, mas não aprendíamos a tomar uma posição sobre cada um desses sistemas - e a exprimir o que eles diziam para cada um de nós.

Éramos, como ocorre em tantas outras esferas da vida social brasileira (e, imagino, latino-americana), contra ou a favor. Não líamos Marx, éramos marxistas! Ou reacionários, porque simpatizávamos com Durkheim, que jamais falou em luta de classes. Mas, entre um e outro, jamais fazíamos como aqueles meninos de Harvard que tomavam um partido individual relativamente a cada autor e assim mediam suas aversões e simpatias às suas idéias, métodos e teorias. E isso, parece, faz diferença. A diferença entre a repetição e o modismo e a verdadeira criatividade."

A mão inteligente - Cláudio de Moura Castro

(Publicado em O Estado de São Paulo - 14 de dezembro de 2011)



O grande economista Cláudio de Moura Castro comenta importantes princípios já conhecidos há séculos, porém tão negligenciados na atualidade. Dentre os exemplos históricos, reporta-se ele aos trabalhos desenvolvidos pelos "Compagnons du Devoir", ou Companheiros do Dever, organização mantida pela Maçonaria Francesa. Este oriente da Sublime Ordem foi além da dimensão simbólica, aplicando na vida prática os preceitos e, sobretudo, o tempo necessário para erigir um Mestre, respeitado na sua literalidade (passando pelo grau de Aprendiz e Companheiro). A construção de templos à virtude e de masmorras ao vício obriga o irmão a aprender a não só lapidar a pedra bruta mas, também, elaborar os projetos e as plantas das obras a fazer. A Maçonaria brasileira muito teria a contribuir para as transformações sociais da Pátria se abraçasse a experiência dos Compagnons du Devoir, fugindo das meras e rotineiras abstrações inefáveis do seu cotidiano. Realmente, o homem pensa porque tem mãos! O artigo de Cláudio Moura Castro segue abaixo.

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"Entre os 10 e os 16 anos, como freqüentava uma escola medíocre, de interior, em vez de estudar assuntos chatos e mortos, passava o tempo livre nas oficinas de manutenção de uma fábrica local. Guiado pelos velhos mestres, serrei, preguei, limei e bati martelo nas forjas. Deslumbrava-me com a vida e os desafios das oficinas. Passados os anos, descobri que a minha inteligência se desenvolveu mais lidando com problemas na bancada do que nos bancos escolares.

A percepção de que se aprende com as mãos é moeda corrente nas corporações de ofício europeias, de origem medieval. Para os Compagnons du Devoir (França), "o conhecimento mora na cabeça, mas entra pelas mãos". Ou seja, "a inteligência da mão existe" (J. Berger). Segundo os compagnons, o homem teria duas inteligências, uma especulativa e outra prática, por isso tem uma cabeça e duas mãos. Para eles, lógica se aprende resolvendo problemas de torneiras ou encaixes.

Ruminações de serralheiros e carapinas? Nem tanto, pois o filósofo grego Anaxágoras afirmou: "Por ter mãos, o homem é o mais inteligente dos animais". Ou, se queremos artilharia pesada, que tal Kant, para quem a "mão é a janela da mente"? O papel do lado prático da escola aparece em Montessori e outros, ganhando força na escola de Rudolf Steiner. Infelizmente, a escola foi atropelada pelo peso do academicismo, ficando meio artificial. Foi monopolizada por gente voltada para a "inteligência especulativa". O uso das mãos sumiu da escola. Com a miragem do "knowledge worker", ter-se-ia tornado um apêndice subalterno, cuja única função é apertar teclas.

Mas eis que o assunto desperta, com novas roupagens e escoltado pela melhor ciência neurofisiológica. Charles Bell fala da "mão inteligente". De fato, descobriu-se que a mão se comunica com o cérebro por múltiplos circuitos neuronais, enleando-se promiscuamente com os da inteligência. Ou seja, foi mapeado um acesso privilegiado da mão ao pensamento. Alguns pesquisadores afirmam que, dispondo de um instrumento tão sofisticado e sensível, a mão do homem fez o cérebro evoluir. Aceitemos, pois, como séria a teoria de que aprendemos com as mãos.

Duvidam? Mostre-se a uma pessoa um canivete, de todos os ângulos, com todos os detalhes. Aparentemente, tudo foi visto. Mas, inevitavelmente, virá o pedido: "Deixa eu ver" - levando à cuidadosa manipulação do objeto. Se os olhos já haviam visto tudo, faltava às mãos enxergar.

Diante disso, por que deixa de ser usado na escola esse grande livro-texto que são as mãos?

Aprendemos ao segurar, medir, pesar e desmontar. Aprendemos quando usamos ferramentas, quando resolvemos os mil problemas de construir alguma coisa ou de consertar um aparelho. Não creio que deslindar sujeitos e predicados em Os Lusíadas seja mais educativo do que deduzir logicamente por que a lâmpada não acende. Pesquisar um circuito elétrico, com diagramas e aparelhos de testes, é analiticamente tão denso quanto muito do que se pretende fazer na escola. Além disso, obriga aos múltiplos saltos entre a abstração do circuito no papel e os componentes do circuito de verdade. É assim que se aprende teoria, pendulando entre ela e a prática, num vaivém permanente.

Perry Wilson, um estudante americano, tinha dificuldades medonhas em Matemática. Tropeçou sucessivamente ao longo do curso, acabando vencido no início do seu curso superior. Frustrado, foi aprender carpintaria, para fazer casas. Como as casas daquele país são feitas pelo próprio carpinteiro, incluindo muito trabalho com plantas e cálculos, logo descobriu que a mesma Matemática que o havia maltratado era agora óbvia e fácil. Impressionado com a descoberta, criou um programa chamado "If I had a hammer", no qual os alunos participantes constroem uma cabana de madeira no pátio da escola. Mas como acontece com as casas de verdade, antes de serrar e pregar há muita planta e muita conta para fazer, além de outros conhecimentos requeridos. Surpresa! Em poucos dias, observa-se um substancial aumento nas notas de Matemática dos alunos participantes.

Cabe uma advertência, pois não se trata de exumar a disciplina de "Trabalhos Manuais", já desmoralizada pelo seu título rasteiro e pouco casando pensamento e ação. No tempo limitado da escola, é preciso escolher atividades em que haja uma interação feliz e fértil entre a mão e a cabeça. Recortar figuras de revistas é manual, mas intelectualmente pobre. Demonstrar um teorema é um exercício mental demasiado distante do mundo das coisas. Mas o Teorema de Pitágoras pode ser aprendido na rua. Por exemplo, como traçar no solo um ângulo reto, dispondo apenas de um pedaço de barbante?

A abstração é a culminância do desenvolvimento intelectual do homem. Mas a capacidade de operar na estratosfera das teorias não vem pronta de fábrica. De fato, o aprendizado de teorias rarefeitas arrisca-se a virar pura decoreba se não começar vendo, pegando e medindo. O tal "knowledge worker", tão de moda, precisa ser educado no concreto e no real, depois é que vem o descolamento progressivo do sensorial. As atividades escolares deveriam ser escolhidas de forma a criar o máximo de oportunidades de usar as mãos para aprender. Como, de uma forma ou de outra, tais atividades vêm sendo feitas por incontáveis anos, não se trata de inventar, mas de recuperar o melhor que já apareceu.

O que era uma percepção intuitiva de alguns hoje percebemos ser ciência respeitável, demonstrando que a mão é inteligente e, portanto, é utilíssima no aprendizado, tanto do prático como do teórico. Por que a nossa escola insiste em refugiar-se nas brumas de um intelecto que ignora a riqueza intelectual das mãos?"


(Claudio de Moura Castro, economista e verdadeiramente especialista em Educação).

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Marketing do desejo - Luiz Felipe Pondé

(Publicado na Folha de São Paulo em 12-12-2011)


"Mais importante do que o sucesso é passar uma imagem de sucesso." Você pode ouvir uma frase como esta em qualquer palestra brega de motivação em recursos humanos.
Já disse antes que acho palestras assim a coisa mais brega que existe. Mais brega do que isso só mesmo achar que o mundo melhorou porque existe o Facebook.
A melhor forma de manter a dignidade na era do Facebook (se você não resistir a ter um) é não contar para ninguém que você tem um Facebook. Quase tudo é bobagem nas redes sociais porque o ser humano é banal e vive uma vida quase sempre monótona e previsível.
E a monotonia é o traje cotidiano do vazio. E a rotina é o modo civilizado de enfrentar o caos, outra face do vazio.
A ideia de que aprendemos a falar porque quisemos "conhecer" o mundo é falsa. Segundo os evolucionistas, é mais provável que tenhamos aprendido a falar para falar mal dos outros e fofocar.
O "Face" é, neste sentido, um artefato paleontológico que prova que nada mudou.
Sempre se soube que não basta à mulher de Cesar ser honesta, ela tem que parecer honesta, portanto, a imagem de honesta é mais importante do que a honestidade em si. Mas aqui, o foco é diferente: aqui a questão é a hipocrisia como substância da moral pública. Todo mundo sabe que a mentira é a mola essencial do convívio civilizado.
No caso de frases como a citada no primeiro parágrafo, comum em palestras de motivação em recursos humanos, é que são oferecidas como "verdades construtivas de comportamento". E não como o que verdadeiramente são: estratégias para desgraçados e "losers" se sentirem melhor.
Ficamos covardes. Fosse esta geração de jovens europeus (que só sabe pedir direitos e iPads) que tivesse que enfrentar Hitler, ele teria ganhado a guerra.
Provavelmente esses estragados por décadas de "estado de bem-estar social" teriam dito "não à guerra em nome da paz". Grande parte do estrago que Hitler fez no início foi causada por gente que gostava de dizer que a paz sempre é possível. Gente medrosa mesmo.
Mas nossa época, como eu costumo dizer muitas vezes, é a época do marketing de comportamento. A "ciência da mentira dos losers". Dentro desta disciplina geral, existe o marketing do desejo, especializado em mentir para as pessoas dizendo que "sim, confie no seu desejo que tudo dará certo".
Mesmo alguns psicanalistas (vergonha da profissão) embarcaram nesse otimismo de classe média. "Nunca traia seu desejo", dirão os traidores da psicanálise.
Sabe-se muito bem que é o desejo que nos trai porque ele está e vai além do que, muitas vezes, conseguimos suportar.
Uma das grandes tragédias de nosso tempo é o fato de que não existem mais recursos "simbólicos" para aqueles que resistem ao desejo em nome de "um bem maior", como no caso da família, do casamento, ou simplesmente resistir a virar canalhas com desculpas do marketing. O legal é ser "escroto" se dizendo "livre". A "ética do desejo", que recusa abrir mão do próprio desejo em nome de algo maior do que ele, destruiu a noção de caráter.
Para a moçada do marketing do desejo, resistir ao desejo é coisa de gente idiota e mal resolvida porque ter caráter não deixa você muito feliz o tempo todo.
É verdade que resistir ao desejo não garante felicidade alguma, mas uma cultura dominada pela ideia de felicidade é uma cultura de frouxos. Mas outra verdade, não menor do que a anterior, é que o desejo pode ser um companheiro traiçoeiro. A afetação da felicidade faz de nós retardados mentais. Eu nunca confio em gente feliz.
O mestre Freud dizia que o desejo é desejo de morte. Afirmação dura. Mas o que ela carrega em si é o que já sabemos: o desejo nos aproxima do nada (morte) porque desvaloriza tudo que temos. Por isso, quando movidos por ele, sem o cuidado de quem se sabe parte de uma espécie louca, flertamos com o valor zero de tudo.
Nada disso significa abrir mão do desejo, mas sim saber que ele nos faz animais que caminham sobre tumbas que sorriem para nós como mulheres fáceis. Resistir ao desejo talvez seja uma das formas mais discretas de amar a vida.”

(Luiz Felipe Pondé é filósofo e professor da PUC/SP)

domingo, 11 de dezembro de 2011

O homônimo - contado por Sebastião Nery

(Casos sobre Paulo Egydio Martins, ex-ministro e ex-governador de São Paulo)


“Para preencher cargos-chave do governo, havia norma de consultar o SNI, para saber os antecedentes da pessoa. Logo que entrei no ministério (Indústria e Comércio, governo Castelo), Golbery me explicou: – A diferença entre um informe e uma informação é a seguinte: o informe é “ouvi dizer”, é para ser verificado, é um primeiro boato. A informação é um fato que está comprovado. Quando você receber uma informação com um visto meu, é para cumprir.
Um dia recebi uma informação com o visto do Golbery, dizendo que um alto funcionário do ministério era um pederasta que mantinha relações com contínuos no gabinete dele. Ele pedia que eu o demitisse.
Comecei a levantar a vida do tal rapaz. Como não constatei nada, não assinei nenhum decreto. Golbery me cobrou. Expliquei a ele:
- Ministro, lamento muito mas não constatei aquelas informações.
- Paulo eu não disse a você que uma informação com o meu visto era para ser cumprida?
- O senhor disse, mas acontece que caberia a mim a responsabilidade de exonerá-lo. Não constatei nada. Não cumpri.
- Mas isso é muito grave. Precisa ser cumprido.
- Então ponha outro ministro no meu lugar, porque não vou cumprir.
Na saída de uma outra reunião, ele me deu um tapinha nas costas:
- Paulo, você se lembra daquele caso? Você tinha razão. Era um homônimo. Assunto encerrado”.