quarta-feira, 17 de junho de 2009

Rei do amendoim e Rainha da pipoca

As tradicionais festas juninas são importantes no calendário político brasileiro. Não no sentido estrito dado por parlamentares nordestinos quando debandam a seus estados para, segundo dizem, ouvir as bases e participar dos alegres folguedos de São João. Na sua origem estas comemorações reportam aos chamados ritos propiciatórios, quer ocorram antes, ou após, as colheitas. São festas cuja gênese imemorial encontra-se nos primórdios do paganismo. Perpetuam-se, hoje, travestidas de uma roupagem cristã, num sincretismo perfeitamente compreensível. Há, no entanto, uma curiosa prática no conjunto destes eventos e à qual não se dá uma devida atenção. Na sua aparente inocência a escolha do “rei do amendoim e da rainha da pipoca” soa isenta de malícia. Em escolas, principalmente as públicas, esta “eleição” costuma mobilizar energia e recursos dos pais, dos parentes, dos amigos e, até, de desconhecidos para a obtenção dos votos que irão definir os ocupantes do almejado trono. O processo, no entanto, pode ser visto qual uma operação antecipatória do que as crianças vivenciarão uma década mais à frente quando se transformarão em eleitores chamados a escolher os dirigentes do país.

O vencedor da inocente eleição festiva será aquele que conquistar mais votos em cima de alguma qualidade ou da defesa de alguma arte ou graciosidade própria? Não, o rei e a rainha assumirão o trono por meio da singela operação comercial de venda de votos. Professores e dirigentes escolares até estimulam o evento e vêem nele uma excelente oportunidade de reforçar o caixa escolar. Alegam, mesmo, que os recursos obtidos servirão, não só para financiar a festa propriamente dita, mas, também, eventuais necessidades da instituição (reparos, aquisição de papel, livros, suprimentos vários etc). Fins tão nobres justificariam métodos tão pouco ortodoxos de escolha, na concepção da maioria. Afinal, as escolas precisam da verba e o que o governo dá é insuficiente. Se a escolha dos reis deixará uma cicatriz no imaginário infantil, os professores pouco parecem se importar.

Talvez a complacência popular com práticas corruptoras como o mensalão (e o comportamento cínico de autoridades frente aos desatinos da companheirada), tenha sua gênese nestas primeiras escolhas a que as crianças são submetidas nas nossas festas juninas. Não é desconhecido daqueles que têm, ou tiveram, filhos em escolas a existência de pais que colocam como meta a ser alcançada, em determinado momento, a eleição do rebento como rei do amendoim ou rainha da pipoca. A qualquer custo e a qualquer preço, frise-se. A busca de certos mandatos no futuro, igualmente a qualquer custo e a qualquer preço, apenas repetirá em outro patamar o padrão inoculado muitos anos atrás. Tudo certo e tudo natural. Afinal, sempre foi assim, não é?

terça-feira, 16 de junho de 2009

Sobre o mal e outros comentários

A questão do Mal é discutida no Livro de Job. Sua existência não pode ser explicada, a não ser pela dimensão incompreensível dos desígnios divinos. De nada adianta ao homem o ter-se justificado pela fé em Deus e/ou pelas suas obras. Tudo Nele está mais além das medidas humanas. Deus não seria Justo nem Misericordioso: estes são atributos humanos. Aceitar a justificativa dada pelos teólogos sobre a identificação do Mal pela ausência do Bem é falso para qualquer um dotado de alguma sensibilidade. Uma dor física qualquer é tão vívida quanto qualquer prazer. A infelicidade não é a ausência de felicidade; ela é algo positivo. Quando estamos tristes sentimos isso como uma infelicidade. Uma visita a um asilo destinado a crianças com paralisia cerebral (Cf. o “Caminhos para Jesus”), é um libelo contra os teólogos que assim pensam. Como justificar um mundo tão cheio de erros; tão cheio de horror; tão cheio de pecados; com tanta dor física; tanto sentimento de culpa e tão cheio de crimes? O sofrimento (o zen), dizem os budistas, produz a vida, que é fundamentalmente desdita. Viver é nascer, envelhecer, adoecer, morrer e, além de outros males, um que é patético: não estar com quem queremos! Chegar ao Nirvana – onde nossos atos já não projetam sombras – significa estar livre do carma, aquela fina estrutura mental que transmigra. O Nirvana não é o Paraíso: é extinção, apagamento! Algo similar a Santo Agostinho, ao dizer que quando estamos salvos não temos por que pensar no mal o no bem. Seguiremos praticando o bem, sem pensar nisto! Mas o Buda insiste: o mundo é um sonho! Ou como está grafado num verso de Calderón de la Barca: “Viver é sonhar”. Não podemos renunciar ao mundo (como suicidar-se, ato apaixonado para Buda). Continuamos a sonhar o mundo, criar o mundo (onde os sonhos podem se transformar em pesadelos). Num eterno processo “sustentável” de volições aleatórias, onde a resultante, talvez, seja a criação da ordem final. Em O Paraíso Perdido, Milton sugere isso:

“O império do caos se estabelece,
E, por decisão, mais complica a desordem em que reina.
A seu lado, árbitro supremo,
O acaso governa tudo!”

Job era um homem justo. Numa disputa entre Deus e Satanás, suas provações foram levadas ao paroxismo. Nem seus amigos o pouparam na hora de suas dores. Apesar de tudo que sofria, não passava da queixa da “angústia do meu espírito...na amargura da minha alma” (Job, 7:11). No auge do desespero proclama estar “farto da minha vida; não quero viver para sempre” (Job, 7:16). Algo como uma preguiça de viver, de mágoa tão profunda que levaria qualquer vivente a proclamar: “Estou cansado de tanto gemer; todas as noites faço nadar o meu leito, de minhas lágrimas o alago” (Sl. 6:6).

O brado de desespero de Job chega ao limite ao descartar a própria esperança: “Onde está, pois, a minha esperança? Sim, a minha esperança, quem a poderá ver? Ela descerá até às portas da morte, quando juntamente no pó teremos descanso” (Job, 17:15,16). Quanta diferença daquele que diz: “Em paz me deito e logo pego no sono” (Sl, 4:8). Quem pode dizer, como o salmista, que cai facilmente nos braços de Morfeu? De fato, a singela recomendação de consultar “no travesseiro o vosso coração” (Sl. 4:4), remete à paz e à alegria maiores que daqueles que assim ficam “quando lhes há fartura de cereal e de vinho” (Sl4:7). Um sentimento do mundo próximo daquele de Spinoza. Não da pieguice vulgar satirizada por Eça, quando o conde de Abranhos versejava:

Deus existe, tudo o prova;
Desde tu altivo sol,
Até tu raminho humilde
Onde canta o rouxinol.

Mesmo após todas as tentações de Satanás, Job permanece fiel: “enquanto em mim estiver a minha vida, e o sopro de Deus nos meus narizes, nunca os meus lábios falarão injustiça, nem a minha língua pronunciará engano” (Job, 27: 3,4).

A grande conclusão de Job (similar aos preceitos de Salomão), está no valor supremo da sabedoria: “Eis que o temor do Senhor é a sabedoria e o apartar-se do mal é o entendimento” (Job, 28:28).

Job pondera que na sua vida não houve desobediência aos preceitos divinos. Chega ao requinte de proclamar uma “aliança com meus olhos; como, pois, os fixaria eu numa donzela? Que porção, pois, teria eu do Deus lá de cima, e que herança do Todo-Poderoso desde as alturas?” (Job, 31:1,2). Recusando o verdadeiro pecado de Davi, insiste no tema da aceitação da punição... “Se o meu coração se deixou seduzir por causa de mulher, se andei à espreita à porta do meu próximo” (Job, 31:9). O crime de Davi não foi ter mandado matar a Urias – para ficar com Bathseba: foi ter olhado para ela. Isso que lhe conduziu à cobiça. Talvez daí o pacto, ou “aliança com meus olhos”, pois se não se vê não se deseja. Na sua conclusão, ele diz: “Se a minha terra clamar contra mim, e se os seus sulcos juntamente chorarem; se comi os seus frutos sem tê-la pago devidamente, e causei a morte aos seus donos, por trigo me produza cardos, e por cevada, joio” (Job, 31:38, 39,40).

Mas um dos amigos de Job tenta justificar os atos de Deus alegando que “retribuirá ao homem segundo as suas obras, e faz que a cada um toque segundo o seu caminho”, pois ...”Deus não procede maliciosamente; nem o Todo-poderoso perverte o juízo” (Job, 34:11,12)

No entanto, as manifestações do poder do Eterno são tão incompreensíveis como o são “os animais” (Behemoth). Seu tamanho é tão grande que se usa o plural na expressão hebraica (que pode significar o elefante ou o hipopótamo); ou, ainda, o Leviatan (que pode se referir à baleia ou ao crocodilo). Mas o Senhor foi generoso, ao final, após o embate com Satanás. Job – no caso – entrou no processo como Pilatos no Credo. Ao repor as perdas de todos os tipos sofridas pela inocente vítima ... “abençoou o Senhor o último estado de Job mais do que o primeiro” (Job, 42:12), dando-lhe riquezas, filhos e longevidade e “então morreu Job, velho e farto de dias” (Job, 42:17)

O desencontro entre um homem e seu Deus, por insondáveis que sejam os Seus desígnios, fica assim marcado para todo o sempre. Talvez nessa estreita brecha esteja uma das fontes do Mal. Talvez, deste modo, se possa compreender a ocorrência, entre simples mortais do “desencontro contínuo das almas congêneres - neste mundo de eterno esforço e de eterna imperfeição” (Cf. Eça de Queiroz: A Relíquia). Almas congêneres, aliás, costumam perceber, sentir, sua presença:

“- Diz lá, Alpedrinha! Tem-la visto, a Maricoquinhas? Que tal está? Hein? Rechonchudinha?
Ele baixou o rosto murcho, onde um estranho rubor lhe avivara duas rosas.
- Já não está... Foi para Tebas!
- Para Tebas? Onde há umas ruínas?... Mas isso é no alto Egito! Isso é em cascos de Núbia! Ora essa!... Que foi ela lá fazer?
- Alindar as vistas, com um amigo – murmurou Alpedrinha com desolação.
Alindar as vistas! Só compreendi quando o patrício me contou que a ingrata rosa de York, adorno de Alexandria, fora levada por um italiano de cabelos compridos, que ia a Tebas fotografar as ruínas desses palácios onde viviam face a face Ramsés, rei dos homens, e Amnon, rei dos deuses... E Maricoquinhas ia amenizar “as vistas” do amigo, aparecendo nelas, à sombra austera dos granitos sacerdotais, com a graça moderna do seu guarda-solinho fechado e do seu chapéu de papoulas...
- Que descarada! – gritei eu, varado. – Então com um italiano? E gostando dele? Ou só negócio?... Hein, gostando?
- Babadinha – balbuciou Alpedrinha.
E, com um suspiro, atroou o Hotel de Josafá. Perante este ai, repassado de tormento e de paixão, relampejou-me na alma uma suspeita abominável.
- Alpedrinha, tu suspiraste! Aqui há perfídia, Alpedrinha!
Ele baixou a fronte tão contritamente que o turbante lasso rolou nos ladrilhos. E antes que ele o levantasse já eu lhe empolgara com sanha o braço mole.
- Alpedrinha, escarra a verdade! A Maricoquinhas, hein? Também petiscaste?
A minha face barbuda chamejava... Mas Alpedrinha era meridional, das nossas terras palreiras da vanglória e do vinho. O medo cedeu à vaidade, e revirando para mim o bugalho branco do olho:
- Também petisquei!
Sacudi-lhe o braço para longe, cheio de furor e de nojo. Também aquela – com aquele! Oh, a terra! A Terra! Que é ela senão um montão de coisas podres, rolando pelos céus com bazófias de astro?
- E dize lá, Alpedrinha, dize lá, também te deu uma camisa?
- A mim um chambrezinho...
Também a ele – roupa branca! Ri, acerbamente, com as mãos nas ilhargas.
- E ouve lá... Também te chama “seu portuguesinho valente”?
- Como eu servia com turcos, chamava-me “seu mourozinho catita”.
Ia rebolar-me no divã, rasgá-lo com as unhas, rir sempre, num desesperado desprezo de tudo... Mas Topsius e o risonho Potte apareceram alvoroçados...” (Cf. Eça de Queiroz: A Relíquia).

PROFESSORES

Um dos maiores legados do Iluminismo pode ser visto na obra do pensador inglês Bertrand Russel, premiado duas vezes no século passado com o Nobel, pela suas atividades no campo da matemática e na literatura propriamente dita. Agnóstico e pacifista militante, enfrentou corajosamente o obscurantismo e a crueldade de seu tempo. Faleceu em fevereiro de 1970, com 98 anos, em virtude de uma pneumonia adquirida nas frias madrugadas londrinas, durante ato de protesto contra a guerra do Vietnã. Com esta idade poderia estar, sem críticas, abrigado defronte de uma lareira acariciando netos. Tinha o magistério em alta conta. Considerava que os professores eram essenciais para a humanidade, pois seriam eles os guardiães da civilização. Os valores maiores do Espírito seriam cultivados e estimulados pela ação lúcida dos mestres. Deveriam, para isto, “estar intimamente cônscios do que é a civilização, bem como desejosos de comunicar uma atitude civilizada aos seus alunos”.

Ao contrário do propagandista, para quem alunos são soldados potenciais de um exército, o professor de verdade cultiva nos estudantes a tolerância, a busca da verdade e a admiração pelo que deve ser admirado. Não é bom, por exemplo, ensinar aos alunos a admirar patifes ocultando a sua patifaria. Governantes no Brasil de hoje, por exemplo, são incensados apesar de seus crimes e desvios de conduta. O máximo de censura que recebem em salas de aula é o silêncio cúmplice sobre seus atos. Nada diferente do comportamento de professores durante os regimes nazista ou stalinista. Retomando a inspiração kantiana, prescreve Russel que o propósito da educação é curar os alunos da infantilidade, ou melhor, de estimular-lhes a maioridade. Esta seria, fundamentalmente, a capacidade de cada um pensar com a própria cabeça. Nos tempos bárbaros em que vivemos, recuperar as lições de um homem notável como este velho britânico é uma aragem na loucura disseminada. Talvez a Razão, temperada pela fraternidade e pela liberdade, possa lapidar esta dura pedra bruta, como Lord Russel queria, apesar do esforço de muitos em desmentir esta esperança.