sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Reinvenção da história

Na antiga URSS os inimigos de Stálin eram não só assassinados, de fato, como tinham seus rostos apagados de eventuais registros fotográficos. Desaparecendo o personagem (desta forma assim meio que compulsória), estava livre o caminho para as devidas “correções” do curso da história. Esta re-elaboração narrativa cumpria propósitos políticos e educativos óbvios, ensejando o surgimento de uma verdadeira “escola” de pensamento (?) que se popularizou em todos os quadrantes da terra, inclusive no Brasil. Aqui nos trópicos pôde-se alargar esta “tecnologia” com ajuda de contribuições vindas de outros lugares, como da Alemanha nazista. Desta veio o sensacional princípio que reza: repetir uma mentira inumeráveis vezes até que ela soe, ou pareça, verdade. Nosso país, portanto, não poderia ficar em posição secundária frente àqueles profissionais do embuste gerados pelos regimes soviético e nazista na primeira metade do século passado. Hoje, afinal de contas, os recursos propiciados pela informática vulgarizaram muitas ferramentas de fácil utilização.

Um exemplo notável dessa recriação da história está sendo feito em Belo Horizonte, com a campanha do candidato oficial a prefeito, aliás, triplamente oficial, pois recebe bênçãos do governo municipal, do governo estadual e do governo federal. Este feliz candidato – riquíssimo empresário que começou a vida como estagiário da antiga Telemig – é um predestinado. Ou, então, um Midas. Sua mãe deve ter-lhe passado açúcar no bumbum e, não, o singelo talco do comum dos mortais. Vai ser gostoso, rico e poderoso assim na puta que o pariu! Um homem que dá dinheiro para os trabalhadores; e dinheiro dele, segundo diz sua biografia, é demais, não? Inacreditável. Não é como Lula, que dá dinheiro p´ros pobres, mas dinheiro da “viúva”, vale dizer, dos outros, ou nosso, para ser mais preciso. Márcio Lacerda, ao contrário, mete a mão no próprio bolso e distribui sua bufunfa aos trabalhadores. A TV informa que foram U$1,5 milhão de dólares. Um empresário anarquista? Um empresário ao estilo do “banqueiro anarquista”, de Fernando Pessoa? Diz sua biografia que o homem enricou virando empresário (pois não conseguia arrumar um emprego ou uma “boquinha” em alguma repartição pública). Seus biógrafos, talvez por excessiva modéstia, não se referem aos anos e anos em que ele – coitado – deve ter passado comendo miojo no almoço e pão molhado no jantar. Cada tostão economizado, e devidamente investido, gerou ao longo do tempo sua fabulosa fortuna (maior, como é público e notório, que a fortuna de Maluf). Nem Tio Patinhas – que iniciou com uma simples moeda de um centavo achada no fundo de um bueiro – chega aos pés de Márcio Lacerda. Claro, tio Patinhas era, e é, um avarento: não gasta nada, não empresta nada, não dá nada para ninguém. Só sabe acumular e entesourar. Quão diferente é o comportamento de Márcio Lacerda, tão pródigo, tão bon vivant, tão capaz de moer vastos cabedais somente para ajudar os amigos! O que o torna mais admirável que o antipático personagem de Walt Disney.



Evidentemente que há saltos narrativos inexplicáveis (ou, ao contrário, seriam muito bem explicáveis, bastando uma ligeira investigação?). Por exemplo: sua saída do governo do companheiro Lula é informada com naturalidade; diz-se, apenas, que ele “saiu” e veio para Minas Gerais “servir” ao governador Aécio Neves. Nenhuma menção ao seu envolvimento com o mensalão, conforme denunciado pelo companheiro Marcos Valério, trapaça das maiores entre todas que foram feitas “neste país”. Que fazia Márcio Lacerda no cargo de vice-ministro de Ciro Gomes no ministério da Integração Nacional? Afora suas incumbências de “caixa” de campanha da companheirada, o ilustre candidato a prefeito era responsável por tocar uma das obras mais maléficas do período Lula da Silva: a transposição do Rio São Francisco. Este malsinado projeto – que recebeu quase que unânime reprovação em Minas Gerais pois até o governador Aécio questionou-o – era tocado pelo vice-ministro Márcio Lacerda, até ele ser defenestrado do antigo cargo. Pôs, então, o rabo entre as pernas e correu para a província onde nascera, à espera de uma mudança nos ventos. Bom navegador que é, Márcio Lacerda ficou boiando aqui e ali igual bosta n’água e, então, ocorreu o milagre. Valfrido Mares Guia, também enrolado com as tramóias do mensalão (porém de forma muito mais grave, pois suas presepadas remontavam ao proto-mensalão, ou mensalão mineiro), e que seria o nome a ser ungido por Aécio e Pimentel para a prefeitura de Belo Horizonte, foi colocado fora de batalha. Estava feito o jogo: guindado ao cargo de Secretário de Estado de Desenvolvimento de Minas Gerais, ficou numa espécie de quarentena enquanto sua candidatura foi sendo construída pelos dois patronos. Isto é que é homem de sorte, puta que o pariu! Para Pimentel é tudo que ele imaginava encontrar (um pau de amarrar égua que não vai futricar na contabilidade da PBH), e para Aécio, idem, ou seja, um pau de bosta de fácil manipulação, capaz de produzir uma posição de amparo no xadrês das futuras manobras na disputa de 2010. Aécio mira vantagens políticas; Pimentel, mais velhaco, mira um escape potencial da penitenciária, cuidado que um tal de Bejani – ex-prefeito de Juiz de Fora – não teve, ainda recentemente.

O mais divertido nesta biografia do candidato, inventada pelos publicitários, é a pose de humildade que o candidato vai ostentando: cabeça baixa, olhar compungido, fala baixa e macia, quase um tabaréu. E, para dar um toque de gênio, este sim, pregaram-lhe no queixo um cavanhaque similar ao dos “ursões” que vagueiam pelas baladas da zona sul de Belo Horizonte. Maior sucesso não poderia haver! Em vista da fragilidade dos demais concorrentes à prefeitura da capital mineira, a patacoada de Aécio, Pimentel e Márcio Lacerda bem pode dar certo, o que só confirmaria a decadência ética a que estamos sujeitos. Bem, não tanto, para ser justo. Trambicagens políticas são tão antigas como a humanidade. Não que isto justifique o farisaísmo de hoje mas não custa relembrar versos imortais de Khayyán de quase um milênio atrás:

“Com a moeda dos princípios
Não se compra nos mercados
Nem um triste pé de alface”.