domingo, 9 de outubro de 2011

BRASILEIRO SE VIRA - artigo de Merval Pereira

(Publicado em O Globo, de 08-10-2011)

"Em tempos de classe C emergente e Estado provedor, o cientista político Alberto Carlos de Almeida, conhecido pelo best-seller em que analisa a "cabeça do brasileiro", tira de uma pesquisa nacional de seu Instituto Análise uma conclusão: apesar das dificuldades e das incertezas, o brasileiro é empreendedor.

Segundo ele, "o Brasil é um país entre a Europa e os Estados Unidos. A gente tem essa matriz europeia, ibérica, meio estatizante, mas por outro lado temos uma população, especialmente a de mais baixa renda, muito dinâmica e que tem uma visão de que tem que se virar por conta própria".

Almeida explica que o brasileiro não é ideológico como o cidadão dos EUA, onde há uma doutrina contra impostos, a favor do self-made man, valores aos quais o brasileiro é até simpático, "mas de uma maneira muito pragmática".

O raciocínio médio seria o seguinte, tirado de pesquisas qualitativas onde pesquisados de diversas classes dão seu depoimento sobre o tema proposto: "A maneira que tenho para melhorar de vida, dado que não tem emprego nem carteira assinada, é abrir meu próprio negócio. Então ele vai."

É verdade que a parcela dos brasileiros que ainda depositam no governo sua garantia de emprego ou seu futuro, com a aposentadoria ou as bolsas assistenciais, continua sendo majoritária, basta ver o aumento da procura por concursos públicos.

Na parte da pesquisa que tenta decifrar as alternativas preferidas para melhorar de vida, a vasta maioria, cerca de 70% dos entrevistados em todas as classes, ainda prefere uma renda fixa constante, pequena, como bolsa ou algo parecido, a um negócio próprio.

Mas cerca de 30% já escolhem ter o próprio negócio como a melhor alternativa, e Alberto Carlos de Almeida diz que essa atitude vem mudando no decorrer dos anos.

"As respostas têm muito a ver com o indivíduo olhar o ambiente econômico instável e precisar de alguma coisa para que se sinta protegido." Mas, ressalta, mesmo num ambiente instável, ter uma média entre 25% a 30% de empreendedores potenciais "é muita coisa", já que sabemos ser muito difícil vender, ter um negócio próprio, não apenas pela situação econômica, mas também pela burocracia brasileira.

Empresas gastam 2,6 mil horas de trabalho por ano para pagar impostos. O Brasil aparece em 127º lugar num ranking que avalia a facilidade de fazer negócios em 183 países, elaborado pelo Banco Mundial.

Se essa é a maneira que eu tenho para me salvar, não tenho problema com isso, raciocina a média dos que buscam a alternativa do negócio próprio. "A carteira assinada e renda fixa mensal acabam sendo privilégios", analisa Almeida.

O economista Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas, criador do termo e maior estudioso da "nova classe média", explica que a designação reflete "o sentido positivo e prospectivo daquele que realizou — e continua a realizar — o sonho de subir na vida. Mais importante do que de onde você veio ou está é aonde vai chegar".

Ele rejeita a tese de que definição de classes é baseada no consumo: "Mais do que assíduos frequentadores de templos de consumo, o que caracteriza a nova classe média é o lado do produtor. A carteira de trabalho é seu principal símbolo. É o que chamamos de lado brilhante dos pobres."

Para exemplificar, Neri lembra que, no período de 2001 a 2009, houve crescimento de renda para os 10% dos mais pobres de 550% acima do crescimento dos 10% mais ricos. "O dado é inédito na série estatística. Isso mostra que o Brasil realmente vive a inclusão. Esse fator está ocorrendo de forma acelerada no país."

Em recente palestra, Neri admitiu que 2/3 dos empreendedores têm dificuldade com a falta de mercado, cliente e demanda. Para ele, o desafio às autoridades é oferecer assessoria mercadológica e capacitação profissional para esse público. "Nos últimos anos demos pobres aos mercados consumidores, é preciso ir além e dar mercados aos pobres."

Alberto Carlos de Almeida considera que o empreendedorismo do brasileiro é não ideológico, e a tendência é aumentar. "Se as pessoas começarem a achar que existe um ambiente mais estável, vão fazer menos questão de ter carteira assinada", especula.

A pesquisa do Instituto Análise mostra que a maioria acha que mesmo com carteira assinada corre o risco de perder o emprego. "O Brasil estabilizou a moeda há pouco tempo, o cidadão tem que se sentir num ambiente favorável para empreender, mas não há essa segurança de que a vida estará boa mesmo sem uma carteira assinada".

A tendência é crescer o número de empreendedores à medida que a economia se torne mais pujante. Para Almeida, há perspectiva distinta de empreendedorismo, que não é o dos 20 sujeitos que tiveram sucesso e ficaram milionários, mas o do cidadão que vende pipoca ou cachorro-quente na rua, que representa centenas ou milhares de pessoas que cuidam do seu dia a dia.

O ex-ministro Mangabeira Unger achava "decisivo para qualquer orientação transformadora do Brasil hoje o surgimento de uma nova classe média e uma nova cultura de emergentes, esse pessoal que estuda à noite, luta para abrir um negócio, ser profissional independente, que está construindo uma nova cultura de autoajuda e de iniciativa, e está no comando do imaginário nacional".

Dentro desse contexto, ele considerava que o movimento evangélico precisava ser visto "como um elemento entre muitos dessa nova base social. São dezenas de milhões de brasileiros organizados".

Mangabeira desenvolveu a tese de que evangélicos brasileiros têm semelhança com pioneiros que fundaram os EUA e tinham o espírito empreendedor que faria a diferença para o desenvolvimento do Brasil.

Almeida discorda, dizendo que a classe média americana tem outros valores, mas a meta final é a mesma: a busca de melhorar de vida pelo empenho individual. Para ele, no Brasil o protestantismo entrou formatado pela matriz católica. "O nosso protestante é muito mais parecido com o nosso católico, e o católico americano é mais parecido com o protestante, a matriz enquadra todo mundo, é herança histórica."

Essa nova classe C, segundo ele, tem mais a ver com salário mínimo, o movimento econômico no interior do país que a Bolsa Família e outros auxílios provocam, "mas a geração que virá depois deve ter mais estímulo para o empreendedorismo.

Essa primeira geração ainda se vê muito dependente de um governo de sucesso, e menos dependente dela, mas os filhos desse pessoal vão ter perspectiva diferente".