Na porta do salão de festa, a criatura, sargentona a que não falta
um buço em vias de virar bigode, me encara de alto a baixo, do boné aos tênis,
e, em tom inquisitorial, lança a dúvida que a mais sumária espiada teria
dispensado:
“O senhor é da terceira idade?”
A pergunta, está claro, não tem
como objetivo obter de mim uma informação, pois faz tempo que ninguém se ilude
quanto à fartura de velas nos meus bolos de aniversário. Vai longe o dia em
que, fazendo eu a minha estreia na vacinação geriátrica, a moça do posto de
saúde relutou em crer nos meus 60 recém completados. Pela última vez na vida,
tive o gostinho de ser a pessoa mais nova num lugar. Depois, tem sido só
ladeira abaixo. Hoje, nem se entrasse para a Academia Brasileira de Letras.
Meses atrás, no metrô, mais uma estreia, essa bem amarga: alguém se levantou e
me ofereceu assento. Por um segundo, o que era cortesia bateu como ofensa, tá
me chamando de velho? Para piorar as coisas, quem cedeu lugar não foi um jovem,
o camarada tinha uns 50 anos.
A funcionária quer mesmo é
impressionar o bolinho de longevos em torno da mesa onde ela, Cérbero à porta
dos Infernos, exerce a mais ostentosa autoridade.
“Terceira idade, minha senhora?
Terceira e última!”, respondo, desbarretando-me gaiatamente, de modo a exibir a
evidência de uma cabeleira na qual, sem prejuízo do processo de rarefação, é
insofismável o predomínio cada vez maior de fios brancos. A constatação visual,
no entanto, não aplaca o zelo burocrático do mulherão, no mau sentido da
palavra, escaldada, quem sabe, pela eventual malandragem de cavalheiros ainda
não encanecidos que, no afã de participarem do baile da terceira idade, no
Parque da Água Branca, tivessem recorrido ao expediente de branquear
quimicamente os cabelos.
“Aqui não entra ninguém com menos
de 50 anos”, fulmina a sargentona, a esta altura marechala, brandindo
verbalmente mandamentos do Instituto da Melhor Idade. Ah, este eufemismo...
“Melhor idade” é coisa de quem ainda não chegou lá.
Não fica nisso:
“E, com esses trajes, não pode
entrar”, decreta, referindo-se, com desprezo que beira o nojo, à vestimenta
esportiva de quem, já meio dançado, frequenta o parque para, nos limites de
artrite & artrose, caminhar, jamais para saracotear no literal arrasta-pé
que aqui ferve às terças, quintas e sábados, das 13 às 17 horas. O que deu em
mim? De tanto ver o fuzuê, de tanto receber nos ouvidos uma estridência musical
que faz pensar em evento para deficientes auditivos, hoje bateu vontade de
xeretar no vasto galpão onde crepita o, digamos, forrobodó da vovó.
Para dele participar, precisarei
não apenas me trajar nos conformes, mas também tirar carteirinha de velho,
mediante exibição de identidade e comprovante de residência. Comprovante de
residência? Imagino que a Administração queira precaver-se para a eventualidade
extrema de que, depois muito sapatear, alguém venha a bater as botas no salão,
circunstância em que seria necessário comunicar à família.
Vou providenciar. Por ora,
limito-me a observar a fila que, faltando mais de meia hora para o bailarico,
como diria meu pai, já se forma na entrada do pavilhão do Instituto da Melhor
Idade. De todo lado, vão chegando senhorinhas e senhorzinhos, gente humilde
enfatiotada no capricho – na maior “estica”, para usar uma velharia verbal que
a muitos aqui será familiar. Grupos, pares, avulsos, com ampla maioria
feminina. Entre os cavalheiros, bigodinhos trazidos da juventude. Mangas
compridas. Testosterona declinante, ai de nós. Chapéus aqui e ali. Esconderão
esses sapatos fora de moda algum pé de valsa ainda operante?
Quantos, aqui, serão casais
casados, desses que, com muitos anos de janela comum, não deixaram enferrujar o
gosto de bailar juntinhos? Quantos chegaram desemparelhados e sairão
acasalados, a trocar discretos amassos nalgum canto do parque, sob o olhar reprobatório
de quem estende à terceira idade os mesmos interditos amorosos e sexuais
impostos aos meninos e meninas da primeira?
Às 13 horas, nem 1 minuto a
menos, a sargentona libera a entrada. Há algo de vacum no ímpeto com que a
manada invade o salão, onde agora guincha, a plenos foles, o que se poderia
chamar de orquestra sanfônica. De onde estou, não dá pra ver se as damas se
conformam em aguardar, sentadas rente à parede, bolsa e casaquinho no colo, que
algum cavalheiro se digne tirá-las para dançar. Já me disseram que não, que
também elas, sem tempo a perder, tomam a iniciativa. Viva o modernismo, haveria
de comentar, cáustica, nas profundas do tempo e das Gerais, a minha centenária
bisavó Chiquinha.
Sim, viva o modernismo. Mas não se iluda o cronista: no dia em que for admitido nas vesperais dançantes do Parque da Água Branca, nada lhe garante que, Melhor Idade com a melhor camisa, nem por isso estará ele livre de pagar o mico de um chá de cadeira.