terça-feira, 1 de novembro de 2016

Terceira e última idade (Humberto Werneck)


Na porta do salão de festa, a criatura, sargentona a que não falta um buço em vias de virar bigode, me encara de alto a baixo, do boné aos tênis, e, em tom inquisitorial, lança a dúvida que a mais sumária espiada teria dispensado:

“O senhor é da terceira idade?”

A pergunta, está claro, não tem como objetivo obter de mim uma informação, pois faz tempo que ninguém se ilude quanto à fartura de velas nos meus bolos de aniversário. Vai longe o dia em que, fazendo eu a minha estreia na vacinação geriátrica, a moça do posto de saúde relutou em crer nos meus 60 recém completados. Pela última vez na vida, tive o gostinho de ser a pessoa mais nova num lugar. Depois, tem sido só ladeira abaixo. Hoje, nem se entrasse para a Academia Brasileira de Letras. Meses atrás, no metrô, mais uma estreia, essa bem amarga: alguém se levantou e me ofereceu assento. Por um segundo, o que era cortesia bateu como ofensa, tá me chamando de velho? Para piorar as coisas, quem cedeu lugar não foi um jovem, o camarada tinha uns 50 anos.

A funcionária quer mesmo é impressionar o bolinho de longevos em torno da mesa onde ela, Cérbero à porta dos Infernos, exerce a mais ostentosa autoridade.

“Terceira idade, minha senhora? Terceira e última!”, respondo, desbarretando-me gaiatamente, de modo a exibir a evidência de uma cabeleira na qual, sem prejuízo do processo de rarefação, é insofismável o predomínio cada vez maior de fios brancos. A constatação visual, no entanto, não aplaca o zelo burocrático do mulherão, no mau sentido da palavra, escaldada, quem sabe, pela eventual malandragem de cavalheiros ainda não encanecidos que, no afã de participarem do baile da terceira idade, no Parque da Água Branca, tivessem recorrido ao expediente de branquear quimicamente os cabelos.

“Aqui não entra ninguém com menos de 50 anos”, fulmina a sargentona, a esta altura marechala, brandindo verbalmente mandamentos do Instituto da Melhor Idade. Ah, este eufemismo... “Melhor idade” é coisa de quem ainda não chegou lá.

Não fica nisso:

“E, com esses trajes, não pode entrar”, decreta, referindo-se, com desprezo que beira o nojo, à vestimenta esportiva de quem, já meio dançado, frequenta o parque para, nos limites de artrite & artrose, caminhar, jamais para saracotear no literal arrasta-pé que aqui ferve às terças, quintas e sábados, das 13 às 17 horas. O que deu em mim? De tanto ver o fuzuê, de tanto receber nos ouvidos uma estridência musical que faz pensar em evento para deficientes auditivos, hoje bateu vontade de xeretar no vasto galpão onde crepita o, digamos, forrobodó da vovó.

Para dele participar, precisarei não apenas me trajar nos conformes, mas também tirar carteirinha de velho, mediante exibição de identidade e comprovante de residência. Comprovante de residência? Imagino que a Administração queira precaver-se para a eventualidade extrema de que, depois muito sapatear, alguém venha a bater as botas no salão, circunstância em que seria necessário comunicar à família.

Vou providenciar. Por ora, limito-me a observar a fila que, faltando mais de meia hora para o bailarico, como diria meu pai, já se forma na entrada do pavilhão do Instituto da Melhor Idade. De todo lado, vão chegando senhorinhas e senhorzinhos, gente humilde enfatiotada no capricho – na maior “estica”, para usar uma velharia verbal que a muitos aqui será familiar. Grupos, pares, avulsos, com ampla maioria feminina. Entre os cavalheiros, bigodinhos trazidos da juventude. Mangas compridas. Testosterona declinante, ai de nós. Chapéus aqui e ali. Esconderão esses sapatos fora de moda algum pé de valsa ainda operante?

Quantos, aqui, serão casais casados, desses que, com muitos anos de janela comum, não deixaram enferrujar o gosto de bailar juntinhos? Quantos chegaram desemparelhados e sairão acasalados, a trocar discretos amassos nalgum canto do parque, sob o olhar reprobatório de quem estende à terceira idade os mesmos interditos amorosos e sexuais impostos aos meninos e meninas da primeira?

Às 13 horas, nem 1 minuto a menos, a sargentona libera a entrada. Há algo de vacum no ímpeto com que a manada invade o salão, onde agora guincha, a plenos foles, o que se poderia chamar de orquestra sanfônica. De onde estou, não dá pra ver se as damas se conformam em aguardar, sentadas rente à parede, bolsa e casaquinho no colo, que algum cavalheiro se digne tirá-las para dançar. Já me disseram que não, que também elas, sem tempo a perder, tomam a iniciativa. Viva o modernismo, haveria de comentar, cáustica, nas profundas do tempo e das Gerais, a minha centenária bisavó Chiquinha.

Sim, viva o modernismo. Mas não se iluda o cronista: no dia em que for admitido nas vesperais dançantes do Parque da Água Branca, nada lhe garante que, Melhor Idade com a melhor camisa, nem por isso estará ele livre de pagar o mico de um chá de cadeira.