quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A Lei dos Juízes (Sobre as quotas raciais)

(Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 04-08-2011)


"Franschhoek, cidade de vinhedos e alta cozinha na província sul-africana do Cabo Ocidental, é o núcleo cultural dos descendentes dos huguenotes franceses que emigraram para a Colônia do Cabo após a revogação do Edito de Nantes, em 1685. Esses refugiados da perseguição religiosa se somaram aos também calvinistas holandeses estabelecidos na região para configurar a colonização bôer na África do Sul. Eles adquiriram escravos, se insurgiram contra a abolição da escravidão promovida pelos britânicos em 1833, participaram do Grand Trek que resultou na fundação das colônias africânderes do interior e ajudaram a sustentar as leis do apartheid, introduzidas a partir de 1949. Desde 1789, até hoje, Franschhoek celebra a Revolução Francesa, que derrubou a monarquia católica dos Bourbons.

Liberdade, para eles, significava as liberdades de falar com Deus segundo suas próprias regras e de possuir escravos. Igualdade significava, exclusivamente, o estatuto de equivalência de direitos religiosos com os católicos consagrado pelo Edito de Nantes. Não se tratava da igualdade dos indivíduos perante a lei, mas da igualdade de direitos entre distintas comunidades religiosas cristãs. Nessa acepção, a igualdade pressupunha a diferença: os nativos africanos não teriam prerrogativas de cidadania, pois não eram cristãos.

Igualdade significa coisas diversas em sociedades diferentes. Breve, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará uma ação contra o programa de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB). O veredicto terá repercussões que transbordam largamente os limites do sistema de seleção de candidatos à UnB: estará em jogo o significado do princípio da igualdade no Brasil. A Constituição é cristalina, traduzindo a igualdade como equivalência de direitos de cidadania, independentemente de cor, raça, sexo ou crença. O sistema de cotas raciais implica a negação disso e sua substituição por um conceito de igualdade entre comunidades raciais inventadas. Mas há indícios consistentes de que o tribunal pode votar pela anulação de um dos pilares estruturais da Constituição.

O regime do apartheid costuma ser descrito como um Estado policial semifascista devotado a promover a exclusão política dos negros. De fato, ele também foi isso, mas seu traço essencial era outro. Os fundamentos doutrinários do apartheid emanaram do pensamento dos liberais Wyk Louw e G. B. Gerdener, da Universidade de Stellenbosch, que propugnaram a segregação de raças como imperativo para a manutenção da liberdade dos brancos e das culturas dos nativos. Louw e Gerdener conferiram forma acadêmica às ideias de Jan Smuts, comandante das forças africânderes na Guerra dos Bôeres de 1899-1902. Smuts promoveu a reconciliação entre os africânderes e os britânicos, antes de se tornar primeiro-ministro do país unificado. Em 1929, numa conferência proferida em Oxford, ele delineou o sentido da "missão civilizatória" dos brancos na África Austral: "O Império Britânico não simboliza a assimilação dos povos num tipo único, não simboliza a padronização, mas o desenvolvimento mais pleno e livre dos povos segundo suas próprias linhas específicas".

Louw e Gerdener devem ser vistos como precursores do multiculturalismo. Eles criticavam as propostas de criação de uma sociedade de indivíduos iguais perante a lei, que representaria a "assimilação dos povos". No lugar da "padronização" política e jurídica, sustentavam a ideia de direitos iguais para grupos raciais separados. O grupo, a comunidade racial, não o indivíduo, figuraria como componente básico da nação. É precisamente esse conceito que alicerça o sistema de cotas raciais.

Na UnB, um candidato definido administrativamente como "negro" por uma comissão universitária tem o privilégio de concorrer às vagas reservadas no sistema de cotas. Mesmo se proveniente de família de alta renda, tendo cursado colégio particular e cursinho pré-vestibular, o candidato "negro" precisa de menos pontos para obtenção de vaga do que um candidato definido como "branco", mas oriundo de família pobre e escola pública. Na lógica da UnB, indivíduos reais não existem: o que existe são representantes imaginários de comunidades raciais. O jovem "negro" funciona como representante dos antigos escravos (mesmo que seus ancestrais fossem traficantes de escravos). O jovem "branco" funciona como representante dos antigos proprietários de escravos (mesmo que seus ancestrais tenham chegado ao Brasil após a Abolição). Se o STF ornar tal programa com seu selo, estará derrubando o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.

O apartheid fincava raízes nas diferenças de língua e cultura entre os grupos populacionais sul-africanos. A classificação étnica dos indivíduos, seu requisito indispensável, derivava de realidades inscritas no passado e refletidas na consciência das pessoas. O projeto da "igualdade racial" no Brasil, cujo instrumento são os programas de cotas, exige uma fabricação acelerada de comunidades étnicas. As pessoas precisam ser transformadas em "brancos" ou "negros", a golpes de estatutos administrativos impostos por órgãos públicos e universidades. Todo o empreendimento desafia a letra da Constituição, que recusa a distinção racial dos cidadãos. O STF está perto de escancarar as portas para o esbulho constitucional generalizado.

Seria o STF capaz de corromper escancaradamente o princípio da igualdade dos indivíduos perante a lei? A Corte Suprema é um tribunal político, no sentido de que sua composição reflete as tendências políticas de longo prazo da Nação. Há oito anos o lulismo aponta os novos integrantes da Corte. O STF rejeitou a mera abertura de processo contra Antônio Palocci, que, como agora reconhece a Caixa Econômica Federal, deu ordem para a violação do sigilo bancário de Francenildo Costa. Os intérpretes da Constituição não parecem preocupados com a preservação do princípio da igualdade.

(Demétrio Magnoli é Sociólogo e Doutor em Geografia Humana)

CPI DO PUS

“RIO - Éramos jovens em 1957. Quase todos com menos de 25 anos, no Festival Mundial da Juventude em Moscou e no congresso da UIE (União Internacional dos Estudantes), em Cracóvia, na Polônia. Ele já tinha 30 anos (nasceu em 6 de março de 1927), estudava e era jornalista em Paris, exilado pela brutal ditadura da Colômbia. Um dia, Gabriel Garcia Marquez, o dos “Cem Anos de Solidão”, definiu o governo de seu país:
- “Na Colômbia, onde se põe o dedo sai pus”.

Lula deixou essa herança maldita para Dilma.

- Onde o PT e os aliados chegam montam uma “central de negócios”. E uns denunciam os outros escancaradamente. Em pouco tempo já explodiram cinco “centrais”, cada semana uma: no Ministério dos Transportes do PR, no Ministério da Agricultura do PMDB, no Ministério das Cidades do PP, na Agencia Nacional do Petróleo do PC do B.
A presidente Dilma mandou fazer uma “faxina”. Os escândalos explodem com tal rapidez que não vai dar para uma CPI sobre cada Ministério. A solução será a “CPI DO PUS”. Uma só para a faxina geral.

LULA

A serviço dos bancos que os financiam e temem não receberem seus juros pelo mundo a fora, nossos grandes jornais ficam mancheteando as crises financeiras dos Estados Unidos, Grécia, Portugal, Espanha, Itália. E escondem a beira do abismo em que vai caminhando o Brasil. O Banco Central soltou esta semana (Marcelo Sakate, na “Veja”) o retrato patético da Divida Publica. Lula conseguiu vender ao país a obscena mentira de que o Brasil “pagou toda a sua divida” e “não deve mais um tostão”. A verdade está nos números do Banco Central. O que houve foi um golpe esperto dos banqueiros associados à corrupção do governo brasileiro.

DÍVIDA


A Dívida Pública sempre foi externa, em dólar. Mas os juros externos não passam de 5%. Os banqueiros resolveram (e o governo do PT obedeceu) trocar os 5% dos juros em dólar pelos 12% dos juros em reais da Taxa Selic. E ainda continua uma Divida Externa de mais de 300 bilhões de dólares, garantida pelas Reservas Externas do Brasil que passam dos 300 bilhões de dólares. A Dívida Pública (que se chamava Dívida Interna) disparou e já chegou aos escandalosos 1 trilhão e 800 bilhões de reais. É uma escalada criminosa. No ano passado, o Brasil pagou 90 bilhões de reais de juros. Neste ano de 2011, só no primeiro semestre, o Brasil já pagou 120 bilhões de reais. Mesmo assim, a Dívida dispara.

JUROS

Em números redondos, quando Itamar assumiu o governo em 1993, depois de Collor, o Brasil devia pouco mais de 100 bilhões de reais. Itamar passou o governo a Fernando Henrique, em 1995, devendo 150 bilhões. Fernando Henrique entregou a Lula, em 2003, devendo 700 bilhões. E Lula entregou a Dilma, em 2011, devendo 1 trilhão e 700 bilhões. Em seis meses, já está em 1 trilhão e 800 bilhões. E todo mês economistas de aluguel e os jornalões, nos seus unânimes editorais, começam a dizer que há “pressões inflacionárias”, “inflação de demanda”, “superaquecimento da economia”, tudo preparando a reunião do Copom para mais uma vez serem aumentados os juros. E são aumentados.

“FOLHA”

Na “Folha”, o Gustavo Patu denuncia:
- “Mesmo com crise, EUA Gastam menos com Juros que o Brasil”. “Neste ano, pelas projeções de analistas, União, Estados e municípios brasileiros gastarão o equivalente a 5,5% da renda nacional com juros. Nos EUA, a conta pode nem chegar a 2% - apesar de eventuais variações na metodologia de apuração dos números, a diferença é eloqüente o bastante”. “A despesa do Brasil é tão alta porque as taxas de juros dos títulos da dívida do governo são as mais elevadas do mundo.Trata-se de um indicativo, ao lado dos prazos muito curtos desses papeis, de que a crença dos investidores na solidez fiscal do país está longe da propagada pelas exposições oficiais”. “Em outras palavras, apesar de todas as inegáveis melhoras dos últimos anos, ainda só se empresta dinheiro ao setor público do Brasil com a perspectiva de ganho elevado e rápido para compensar o risco”.

SAUL

Semana passada, em Salvador, o advogado Saul Quadros Filho, presidente da OAB-BA, traduziu com maestria o que há no país:
- “Nos últimos anos a sociedade brasileira ficou mais fraca e o Estado ficou mais forte. Não foi ela que o tornou mais transparente; foi ele que a tornou mais opaca. E em vez de se aperfeiçoarem os mecanismos de controle desse Estado, foi esse Estado que encabrestou as entidades da sociedade civil. Impõe-se um movimento contra a corrupção”.

Os juros que o Brasil paga

(Notícia retirada e editada do blog do Ricardo Setti, em 02-08-2011. Para esclarecimento: o Brasil já pagou de juros R$120 bilhões, repito, cento e vinte bilhões de reais, apenas no primeiro semestre de 2010. Para se ter uma idéia da magnitude de tais valores, eles correspondem a oito vezes o que se gasta com o Bolsa Família durante todo o ano).


"Brasil gasta com juros, proporcionalmente, quase tanto quanto a desgraçada Grécia – e mais do que Irlanda e Portugal, em grave crise. Dívida pública brasileira: 5,1% do PIB por ano com o pagamento de juros, gasto quase tão alto quanto ao da esfarelada Grécia.

Deus nos livre de o Brasil ter problemas como os que assolam alguns países da Europa – sobretudo os do sul da Europa, além da Irlanda.

Vejam bem: a despedaçada Grécia, no fundo do fundo do poço, sendo resgatada da falência a um custo brutal pelo FMI, a União Européia e o Banco Central Europeu, gasta anualmente 5,47% de seu Produto Interno Bruto (PIB) pagando os juros de sua dívida pública.

Entre os países de porte médio para cima, o Brasil vem num nada cômodo segundo lugar, após a Grécia, em matéria de empenho de percentual do PIB para fazer frente a juros da dívida: gastamos 5,1% do nosso PIB com pagamento de juros. Isso é mais do que fazem a hoje ameaçada Itália (4,53%), supera o que gasta a seriamente abalada República da Irlanda (3,2% do PIB) e bem mais do que o apertadíssimo Portugal (3,04% do PIB).

Ou seja, o Brasil gasta quase tanto quanto o país em maiores dificuldades para superar a crise financeira mundial de 2008, a infeliz Grécia – e mais do que outras três nações igualmente no olho do furacão.

Não é para preocupar?"

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Dilma e seus governos (Prof. Marco Antônio Villa)

O artigo abaixo, do professor Marco Antônio Villa, é uma prova de que as universidades do país - quem sabe? - ainda têm salvação. Ao falar para um público universal, ele dá uma aula magna digna da tradição crítica que já existiu entre nós. Muito diferente do sabujismo e subserviência preponderantes, atualmente, nos campi universitários. Parabéns ao professor Marco Antônio Villa pela amplificação do que acontece em alguns nichos restritos da academia brasileira.

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(Publicado no Estadão, de 03/08/2011)

"Dilma Rousseff é caso único na História do Brasil. Já iniciou, em apenas sete meses, três vezes o seu governo. Em janeiro assumiu a Presidência. Parecia que a sua gestão iria começar. Ledo engano. Veio a crise em maio – caso Palocci – e ela rearranjou o núcleo duro do poder. Seus entusiastas saudaram a mudança e espalharam aos quatro ventos que, naquele momento, iria efetivamente dar início ao seu governo. Mera ilusão. Veio nova crise em junho, esta no Ministério dos Transportes. Seguiram-se demissões de altos funcionários – ontem já chegaram a 27. Em seguida, foi anunciado que agora – agora mesmo – é que iria começar a sua Presidência. Será?

No país das Polianas, sempre encontramos justificativas para o injustificável. Os defensores, meio que envergonhados da presidente, argumentam que ela recebeu uma herança maldita. Mas não foi essa “herança” que a elegeu presidente? Não permaneceu cinco anos na Casa Civil participando e organizando essa “herança”? Herança, como é sabido, é algo recebido de outrem. Não é o caso. A então ministra da Casa Civil foi uma participante ativa na organização da base partidária que sustenta o governo no Congresso Nacional. Tinha e tem absoluta ciência do que representam essas alianças para o erário.

Fingir indignação, falar em limpeza – quando o vocabulário doméstico invade a política, é sinal de pobreza ideológica -, dizer que agora, sempre agora, só vai aceitar indicações que tenham a ficha limpa, isso é um engodo. Quer dizer que no momento em que formou o Ministério a ficha limpa era irrelevante? Ficha limpa é para coagir aliados? E que aliados são esses que são constrangidos pelo currículo?

Os sucessivos reinícios de governo são demonstrações de falta de rumo e de liderança. O PAC não é um plano de governo. É uma junção aleatória de obras realizadas principalmente pelo governo e por empresas estatais. É um todo sem unidade alguma. Não há uma concepção de projeto nacional, nada disso. Além da falta de organicidade, os cronogramas de todas as obras estão atrasados. O governo não consegue realizar, de forma eficaz, nenhum empreendimento. Quando algo chama a atenção, não é por seu efeito para o desenvolvimento do País. Muito ao contrário. É por gasto excessivo, desvio de recursos, inutilidade da obra ou atraso no prazo de entrega. E, algumas vezes, é uma cruel somatória desses quatro fatores.

O País está sem rumo. Mantém indicadores razoáveis no campo econômico, contudo muito abaixo das nossas potencialidades. Basta lembrar que neste ano a taxa de crescimento será a mais baixa entre os países da América do Sul (não estamos falando de China, Índia ou Coreia do Sul, mas de Paraguai, Equador e Peru). A economia ainda é movida pelo que foi estruturado durante os primeiros anos do Plano Real e por medidas adotadas em 2009, ante a crise internacional.

A falta de liderança é evidente. Os últimos quatro meses foram de abalos permanentes. E nos primeiros cem dias a presidente teve uma trégua. Foi elogiada até pelo que não fez. Politicamente, o ano começou em abril e, de lá para cá, o governo toda semana foi tendo algum tipo de problema. Ora no relacionamento com a base, ora no cotidiano administrativo. O problema central é que Dilma não se conseguiu firmar como liderança com vida própria. É vista pelos líderes da base como alguém que deve ser suportada até o retorno de Lula. A questão – para eles – é aguentar a destemperança presidencial. Claro que o preço compensa. Porém a rispidez e os gritos da presidente revelam que ela própria sabe que não é levada a sério. Vez por outra, o passado deve rondar os pensamentos da presidente. Ela, em alguns momentos, exige uma obediência ao estilo do velho “centralismo democrático” leninista. Sonha com Trotsky, Bukharin e Kamenev, mas convive com Collor, Sarney e Renan.

Nas crises que enfrentou, não conseguiu encontrar solução razoável. Ao contrário, desarrumou a articulação existente e foi incapaz de substituí-la por algo mais eficiente. Deixou rastros de insatisfação e desejos de vingança. A trapalhada com o PR e a demora em resolver de vez as denúncias são mais evidências da falta de capacidade política. Criou na Esplanada dos Ministérios a versão petista do “onde está Wally?”. Agora o jogo é adivinhar, entre mais de três dúzias de ministros, quem será o próximo a cair em desgraça. Algo meio stalinista (é o passado novamente?). Com tanto estardalhaço, Dilma nem acabou com a corrupção nem conseguiu fazer a máquina governamental funcionar. E quem perde é o País.

A cada fracasso de Dilma, mais cresce o clamor da base (e do PT, principalmente) para o retorno de Lula. Difícil acreditar que o criador não imaginasse como seria o governo da sua criatura. Pode ter sido uma jogada de mestre. Respeitou a Constituição (não patrocinando o terceiro mandato), impôs uma candidatura-poste, venceu com o seu prestígio a eleição e será chamado cada vez mais para apagar incêndios. Ou seja, a possibilidade de ser passado para trás é nula. Dessa forma, transformou-se no personagem fundamental para manter a estabilidade da aliança do grande capital nacional e estrangeiro, fundos de pensão das estatais, políticos corruptos e oportunistas de toda ordem. É também o único que consegue fazer a articulação com o andar de baixo, dando legitimidade ao projeto antinacional. Sem ele, tudo desmorona.

Dilma vai administrando (e mal) o cotidiano. A fantasia de excelente gestora, envergada no governo Lula e na campanha presidencial, revelou-se um figurino de péssima qualidade. Como nos velhos sambas, a quarta-feira já chegou. Um pouco cedo, é verdade. O carnaval mal começou. E dos quatro dias de folia, nem acabou o primeiro."

(O professor Marco Antônio Villa trabalha na Universidade Federal de São Carlos)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A primeira vez que entendi - (Afonso Romano de Santana)

"A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro".

Farsa intelectual - (do blog do Alon, em 31-07-2011)

"A guerra pelo spot de vítima tem base lógica, porque o multiculturalismo para todos seria, no limite, completamente disfuncional. Para a sobrevivência de alguma civilização, uns precisariam ter mais direito ao multiculturalismo que outros

Os atentados na Noruega deram um gás ao debate sobre o multiculturalismo. O conceito propõe validar as diversas culturas no mesmo nível, rejeitar a ideia de umas estarem acima de outras.

E portanto rejeitar a prerrogativa de umas imporem normas e restrições a outras.

Em geral a crítica ao multiculturalismo é "ocidentecentrada". Uma forma extrema foram os terríveis atentados de Oslo. O maluco -no grau em que ainda for diagnosticado- imbuiu-se da missão de guerrear contra a presença islâmica na Europa.

Um parêntese. Não é por o sujeito ser maluco que seus atos estão imunes à análise política. Aliás, sanidade mental nunca foi requisito para a atividade.

De volta. Agora na Noruega um sujeito decidiu pelo terror contra o multiculturalismo.

Ainda que o assassino possa recusar o rótulo. Dizer que é guerra, não terror. Nem é tão novidade assim. O terrorismo sempre encontra uma justificativa, uma maneira de apresentar-se legítimo.

De um lado e de outro, se for mesmo para dividir a coisa em dois lados antagônicos, como propôs a mente perturbada de Anders Behring Breivik.

Entrar na polêmica sobre o multiculturalismo é complexo. O debate costuma vir carregado de sentimento de culpa ocidental-cristão. Ou judaico-cristão.

Assim, as demais culturas e religiões ganham legitimidade adicional para se apresentar como formas de resistência.

No Brasil tolera-se que índios matem seus filhos portadores de deficiência. É olhado como traço cultural a respeitar. Porque são índios.

É capaz de o mesmo sujeito numa hora criticar, com razão, os governantes incapazes de providenciar acessibilidade e na outra defender o indígena cuja cultura autoriza matar crianças deficientes.

E se olhássemos os atos do maníaco de Oslo pelo ângulo do multiculturalismo? Ainda que apenas como exercício intelectual? A conclusão seria aterradora. Em vez de simplesmente condenar, estaríamos obrigados a “tentar entender”.

Condenados a “combater a origem do problema, e não suas manifestações" extremistas.

Assim como “tentamos entender”, ou tentávamos, o Exército Republicano Irlandês (IRA), o Pátria Basca e Liberdade (ETA). Ou o Hamas. Ou o Hezbollah. Ou a insurgência iraquiana. Ou o terror curdo contra a dominação turca.

Ou talvez o Unabomber.

Supostos motivos para o terrorismo sempre haverá, sempre será possível formulá-los, construí-los sobre os alicerces da vitimização.

Pode ser o Islã vitimizado diante de um Ocidente sedento de petróleo. Ou pode ser a Europa vitimizada por uma invasão bárbara.

Note-se que a posição de vítima, por essa linha, é fonte suficiente de legitimidade para praticar a violência não-estatal, para romper o monopólio estatal da violência. Daí a batalha por esse nicho, o do vitimizado.

É uma guerra central de nossa época. Se a vítima pode tudo, ser vítima confere uma vantagem insuperável.

O portador da insígnia dominará uma posição estratégica, autorizado a usar todo tipo de arma contra o inimigo. E sem a recíproca.

Essa disputa pelo spot de vítima tem base lógica, talvez na autodefesa da espécie, porque o multiculturalismo para todos seria, no limite, completamente disfuncional. Como se deduz do caso norueguês.

Para a sobrevivência de alguma civilização, uns precisariam ter mais direito ao multiculturalismo que outros. Ou, aí sim, viria a barbárie.

No multiculturalismo para todos, o assassino de Oslo deveria, na preliminar, receber a mesma carga de compreensão piedosa reservada, por exemplo, aos insurgentes iraquianos.

E em vez de condenação talvez merecesse concessões.

Idem os agentes iranianos que explodiram o centro comunitário judeu em Buenos Aires.

Eis por que o dito multiculturalismo é forte candidato a farsa intelectual.

Ou seria para todos ou para ninguém. Mas quem defendesse a primeira opção estaria obrigado, entre outras barbaridades, a sair em defesa do assassino de Oslo".

domingo, 31 de julho de 2011

A pirataria de Estado (Vittorio Medioli)

O editorial abaixo só confirma a suspeita de muitos: não é o povo brasileiro que é dono da Petrobrás; a Petrobrás é que é dona do Brasil. Nem Itamar Franco, que denunciou a "caixa preta" dos custos desta multinacional quando ele ainda era presidente, conseguiu obrigar a empresa a uma necessária transparência. Não por acaso, certamente, Lula da Silva manifestou o interesse em ser presidente da Petrobrás quando saísse do poder. Ele sabia do que falava. Pelo menos aí, mesmo que parecesse que só brincava com a idéia.

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(Publicado no jornal O Tempo, de 31 de julho de 2011)

"Claro que o etanol é rentável", disse, na sexta- feira passada, o presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli.

Quanto é rentável e há quanto tempo alcançou esse patamar de rentabilidade, entretanto, ele não explicou. Preferiu emendar o pronunciamento com um chavão nordestino, provavelmente já como antecipação da campanha política de 2014, quando será candidato a governador da Bahia: "Os usineiros estão dominando o Brasil há 450 anos".

Pois bem, partindo da atuação dele no setor, que beira a criminalidade, depara-se que, além de estulto, o sr. Gabrielli é um ignorante que escalou os vértices da estatal para atender essencialmente aos interesse de um partido.

A CPI que um dia fatalmente se abaterá sobre a condução temerária da Petrobras revelará as responsabilidades do "new" empresário do cangaço, que, provavelmente, nunca teve tempo para conhecer de perto uma usina.

Estarrece constatar que, nos últimos quatro anos, quando a conjuntura possibilitou e o monopólio garantiu, a Petrobras rapinou o Brasil comprando etanol abaixo do custo e revendendo-o com margens superiores a 60% ou até mais. Comprou pagando a prazo, cerca de 30 dias após a retirada da usina, e vendeu à vista, por valores que levaram à inadimplência as usinas e até o fechamento de atividades.

Nessa fase, o capital estrangeiro se apossou facilmente, junto com a Petrobras, de significativas parcelas do sistema produtor.

Quando novos players anunciavam sua entrada na produção de biocombustíveis, ampliando assim a oferta, bateram no esquema predatório, e antinacional, da Petrobras. Abandonaram os projetos quando a mãe do PAC, hoje presidente da República, era, além de "primeira ministra", presidente do conselho da estatal. O carpe diem, o lucro selvagem e descomprometido com o futuro tumultuaram o setor, afugentaram investimentos e destrambelharam as usinas - estratégicas no contexto econômico tupiniquim como geradoras de emprego no campo, de renda e oportunidades.

Quanto ao aspecto ambiental, o etanol é fonte renováve. Com balanço de emissões equilibrado, sequestra mais do que emite. O petróleo não, incrementa apenas o aquecimento global com taxas devastadoras.

O tratamento impingido ao etanol pelo governo nos últimos anos é para lá de neoliberal, de criminoso e de obtuso, e contrário à economia popular.

À luz dos números divulgados pela Petrobras, uma perdulária companhia de petróleo, o último custo divulgado de extração, em maio de 2011, é US$ 11,38, marcando um aumento descabido de 10,59% sobre o mesmo período do ano anterior, apesar de ter a queda do dólar como aliada.

O custo do refino da Petrobras nos últimos 12 meses apresentou uma alta de 24,5% por barril, também inexplicável, digno de polícia.

Afinal, entre extração e refino, a Petrobras tem um custo, por ela declarado, de US$ 18,95 (era U$ 16,57 há um ano) por barril (ou 159 litros).

Pois bem, o custo médio do combustível da estatal resulta em R$ 0,1847 por litro e poderia ser ainda menor não fosse a gestão da empresa, corroída por interesses políticos e roubalheiras - que o senador Eunício de Oliveira se encarregou de comprovar.

O leitor provavelmente não entende como o combustível produzido ao custo de R$ 0,1847 é pago por ele dez vezes mais caro. Os lucros da Petrobras representam, assim, um assalto ao cidadão.

Pode-se concluir que usineiros, mesmo em sua fase áurea no século passado, eram passarinhos comparados aos urubus de Gabrielli, a pessoa menos indicada para fazer chacotas de um setor desprotegido, exposto que é aos riscos climáticos e à pirataria da Petrobras".