sábado, 3 de janeiro de 2015

The best and the brightest (Fernando Gabeira)

(Publicado no Estadão de 2/1/2015)


"Na década de 1960, John F. Kennedy chamou os melhores e mais brilhantes acadêmicos e empresários para compor seu governo. Apesar disso, ou mesmo por causa disso, muitos erros foram cometidos, sobretudo na política externa dos EUA. No primeiro governo de Barack Obama, a escolha de um Prêmio Nobel de Física, Steven Chu, para ocupar a pasta da Energia ainda representa uma tentativa de se associar à competência e ao brilho intelectual. Mas a verdade é que a pretensão de Kennedy parece ter sido enterrada pelo curso da política e suas duras realidades.

O Ministério de Dilma Rousseff é uma espécie de fim da picada no caminho aberto por Kennedy. Ao começar, Lula chegou a ter alguns notáveis, como Márcio Thomaz Bastos, na Justiça. Desde a redemocratização, entretanto, não se escolhia um Ministério tão opaco e alheio aos temas que terá de enfrentar.

Novo governo, novas ideias. Esse era o slogan de Dilma. Foi para isso que as pessoas brigaram nas ruas e nas redes, bloqueando amigos, estigmatizando elites e malhando reacionários de todos os matizes?

No ano anterior à Olimpíada, Dilma entrega o Esporte à Igreja Universal. Já entregara a Pesca ao senador Marcelo Crivella, que, ao assumir, declarou que não sabia nem como se combinavam isca e anzol. Agora, tudo indica que o novo ministro dos Esportes é daqueles que num jogo de futebol perguntam: quem é a bola?

Na Ciência e Tecnologia, Dilma optou pelo PCdoB. Aldo Rebelo é o nome. Ele é contra inovações científicas que ameacem o emprego e chegou a apresentar um projeto proibindo-as. Emocionalmente, é uma posição compreensível. Mas equivale à dos trabalhadores que destruíam máquinas no princípio da Revolução Industrial. O movimento, no início da primeira década do século 19, chamava-se ludismo por causa do nome de um dos seus líderes, Ned Ludd.

Ter uma posição de defesa do emprego, mesmo contra o avanço da produtividade, é uma escolha de que discordo, respeitando-a. Mas nesta altura da revolução digital, nomear para Ciência, Tecnologia e Inovação um quadro que, de certa forma, se opõe a esse processo irreversível, parece-me um absurdo.

O ritmo de inovação é vertiginoso na tecnologia da comunicação. Para acompanhá-lo Dilma escolheu Berzoini, fixando-se no único aspecto que parece interessar-lhe: como dominar ou, ao menos, neutralizar as grandes empresas do ramo.

Os meninos que hoje nos acusam de reacionários talvez não conheçam bem o mundo político brasileiro. Quem é Jader Barbalho? Por que chamavam Eliseu Padilha de Eliseu Quadrilha, no Congresso?

Nada disso talvez possa interessar-lhes. O bem triunfou sobre o mal e o Brasil segue sua trajetória vitoriosa rumo ao futuro, liderado pelo coração valente de Dilma Rousseff.

Kennedy buscava seus quadros na academia e na indústria. Dilma procura-os nas brechas do Código Penal. Vai ser preso logo? Aguenta pelo menos seis meses no cargo?

Tudo bem. Vocês são o progresso e se preparam para realizar um governo novo, com novas ideias. No intervalo, jogam umas pedras na oposição, desqualificam os argumentos adversários.

Barbalhos e Padilhas, o esporte entregue a Deus e as inovações ao PCdoB, o governo e seus aliados parecem ter conseguido o impossível: uma realidade paralela, um Brasil do João Santana e desses caras que usam a imagem de Che Guevara como perfil, insultam à vontade e quando são apertados contra a parede alegam: mas o FHC também fazia.

Sem norte moral próprio, alguns usam o ex-presidente como referência. Se Fernando Henrique Cardoso insultasse velhinhos num asilo, eles também o fariam sem nenhum temor: isso pode.

Dilma conseguiu construir o pior governo possível para enfrentar a mais grave situação do País. Envolta no escândalo da Petrobrás, ela diz: alguns funcionários foram colhidos pelo combate à corrupção. Nada mais acidental do que isso. Houve um surto de gripe e alguns funcionários acabaram contraindo a doença.

A corrupção na Petrobrás era um dado sistêmico e fazem tudo para esconder o saque bilionário. Prometem um governo com novas ideias e propõem o bispo Macedo como patrono dos nossos esportes, além de uma posição quase ludista para o Ministério da Ciência. Extrapolaram. Não deixam a mínima esperança de que pelo menos tenham a intenção de fazer algo novo.
Certas experiências históricas podem acabar na cadeia. Algumas pessoas choram comovidas diante do relatório da Comissão da Verdade. Tempos terríveis, é compreensível.

No futuro, entretanto, podem lamentar, envergonhadas, quando surgir a verdade sobre seu próprio período de governo. E essa verdade vai aparecer em todo o seu esplendor. Companheiros que agitam suas bandeiras vermelhas hoje podem, numa escala menor, ficar tão constrangidos como os que, no passado, marcharam com Deus pela família e propriedade .

Muitos assistem a tudo isso com o dedo médio apontado para a tela. Um dedo duro pode ser visto de várias formas. Mas eles sabem o que estou dizendo. Que tal irem comemorar na casa do Barbalho?

Com a formação de seu novo governo Dilma está sendo cruel até com quem não votou nela. Diria: principalmente com quem não votou nela. Temiam um circo de horrores? Vejam isto, para começo de conversa.


Corre na política uma lenda de que basta ter um bom ministro da economia: o resto não conta. Ela foi adotada por Dilma. Parece um materialismo vulgar. Mas é pior do que isso. É uma perigosa fuga da realidade. Como se educação, energia, ciência, comunicações, esportes e até pesca em nada tivessem relação com a própria economia. E como se não fosse também uma realidade o sentimento de desencanto que nos comunica a única certeza da Dilma: ninguém do primeiro escalão será preso nos próximos meses. Temos um Gabinete de ministros. Todos em liberdade".

A arte do bom governo (José Arthur Gianotti)

(Publicado no Estadão de 1/1/2015)


"Vivemos sob o império da globalização, que não só afeta os mercados, mas cria objetos que revolucionam os comportamentos do dia a dia. Estamos quase sempre sintonizados com o mundo inteiro.

O celular, cada vez mais sofisticado, coloca o usuário nas redes sociais, num sistema global de informação, e traz para o cotidiano as informações acumuladas nas bibliotecas, nos museus, nas galerias. Mas se temos na mão imagens do mundo, cada vez mais nos vemos empurrados cada um para si mesmo. Comunicamo-nos com todos e com tudo, sem os riscos do confronto direto com as indeterminações do outro. Chegamos até ele graças às imagens que se configuram pela troca das mensagens. Comunicamo-nos fora dos sutis matizes de comportamento que circundam o falar com auréolas de múltiplos sentidos. A troca de informações mecaniza-se ou explode no insulto sem recuo.

Quantas vezes vemos uma família reunida, cada um grudado no seu celular? Jovens reúnem-se, mas, em vez de se soltarem na conversa, passam a trocar mensagens entre si e com amigos distantes.

Esse novo objeto tecnológico altera profundamente os comportamentos cotidianos, tende a abolir qualquer etiqueta, a pequena ética que nos regula. Outro dia, um amigo me fazia observar que nós, brasileiros, recebemos essa avalanche das novas tecnologias antes de ficarmos ricos, de sabermos usar essa riqueza. E assim nos fazem sentir poderosos sem que tenhamos de fato o poder de aplicá-las corretamente atuando na sociedade contemporânea. Basta comparar o uso do celular entre brasileiros, americanos e europeus para que se perceba como cada povo governa o mesmo objeto de modo diferente.

O uso do celular mostra-nos em miniatura como a arte de nos governar tanto depende de novas tecnologias globais como do nível de educação que nos leva a ela. Até que ponto nós, cidadãos da periferia do capitalismo, nos governamos adequadamente quando nossas ações passam a ser mediadas por objetos tecnológicos altamente sofisticados? Não é só no cinema que vemos pessoas sendo servidas por robôs. Andar por uma cidade moderna como São Paulo já nos situa numa rede tecnologicamente avançada, assim como nos mostra a precariedade de seu mau funcionamento. Essa distância se torna crucial quando se trata do governo da coisa pública.

Centro de nossa formação em ciência e tecnologia, a universidade não é o exemplo mais flagrante? Na USP o abismo entre boas intenções e exercício competente das funções burocráticas cresce dia a dia. Ainda se propõe a ligar diretamente ensino, pesquisa e extensão. Mas nem sempre cada docente é capaz de exercer com proficiência todas essas funções em mudança contínua. Além da diferença de talentos, cada um se prepara para dominar a seu modo as novas técnicas. Uma coisa é lecionar filosofia para alguns alunos, como era no meu tempo, outra é enfrentar uma classe de 150 estudantes que têm acesso a um sofisticado mercado de livros e aos meandros da internet. Em vez daquelas vagas de ideias que de tempos em tempos varriam nossas inteligências, hoje é como se a mídia nos conduzisse a um zoológico onde convivem animais filosóficos das espécies mais diversas. 

Por certo, existem docentes de maior envergadura, que fugiram das jaulas do senso comum, retomam as velhas práticas de reler os textos com refinamento, em grupos pequenos, mas agora ligados a outros grupos noutros lugares do planeta.

Note-se que nem o filósofo midiático nem o professor de Filosofia foram preparados para exercer outras funções na universidade. A indissolubilidade institucional do ensino, da pesquisa e da extensão implica que cada funcionário exerça todas com a mesma proficiência. É a própria instituição que os deve balancear, respeitando as diferenças de talento e de comprometimento. Ora, se o exercício do funcionário está cada vez mais ligado a um aprendizado específico, o que dizer da gestão da coisa pública?

Muitos confundem o desempenho das funções públicas com o direito dos cidadãos. Igualdade dos direitos, porém, não cria igualdade na capacidade profissional. Em muitas universidades federais todos os docentes, depois de alguns anos, vão tornar-se professores titulares, como se pudessem ter o mesmo desempenho. Os funcionários hierarquizam-se segundo critérios burocráticos, sem levar em conta como cada um deve preparar-se para exercer funções cada vez mais diferenciadas. E os alunos, justamente aqueles no início do processo de formação, acreditam que podem ser eleitos reitores ou escolhidos pró-reitores. E como lhes parece que todos esses problemas de gestão profissionalizada já estão resolvidos, a maioria dos universitários continua reclamando por mais verbas para a educação, sem pôr em pauta a prioridade de repensar novas formas de boa governança. Note-se que não se trata de reforçar o mérito, de instalar uma meritocracia, mas de adequar o exercício do poder às novas técnicas das quais ele depende.

Como o preenchimento dos cargos às vezes tem sido mais ideológico que político, não assistimos nas universidades à corrupção deslavada que irrompe noutras empresas estatais. Nos últimos tempos os governos ditos de esquerda nomearam políticos para cargos burocráticos. Obviamente, isso diminuiu a eficiência dessas burocracias, mas também instaura nova forma de corrupção. Não tanto aquela tradicional, do político corrupto que se apropria do dinheiro público, mas a institucional a serviço do próprio partido.

Nada explica afirmar que a corrupção política existe desde que Adão foi expulso do paraíso. Importa entender a forma como se exerce num país em desenvolvimento que dispõe de uma tecnologia de gestão que nem sempre ele sabe utilizar".


*José Arthur Giannotti é professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e membro do CEBRAP

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A vaca tossiu



Dona Dilma é, realmente, um fenômeno. Sem nunca ter lido Dante, segue-lhe inconscientemente os conselhos na maior tranquilidade ("muita promessa e pouco atendimento", recomendava Guido de Montefeltri ao papa Bonifácio VIII, em pérfido conselho). Prepara-se, agora, para lançar sobre os trabalhadores e homens comuns a conta da farra previdenciária. Com um sindicalismo desavergonhado e submisso, tornado parceiro dos grandes negócios com os empreiteiros e o capital financeiro, dificilmente haverá contestação às medidas recém adotadas pela madame. 

Se os tucanos não fossem tão parecidos com os petistas, seria a hora de fazer avançar a verdadeira reforma da previdência no Brasil. Por exemplo, propor a unificação dos diferentes regimes (geral, federal, estaduais e municipais). Acabar, definitivamente, com os privilégios, como as aposentadorias especiais, que garantem a parlamentares, magistrados, altos burocratas do executivo, judiciário e legislativo um modo de vida sem comparação com outros lugares do mundo. Jogadores de truco sabem qual a resposta ao desafio recebido: retrucam dando seis na cara dos blefadores.

Se a vaca tossiu, que ela acabe ficando louca. O Brasil talvez se salve com a metamorfose.  

domingo, 28 de dezembro de 2014

Um gesto pode mudar o mundo (Vittorio Medioli)

(Publicado no jornal  O TEMPO, EM 28/12/14)


"Devido ao engarrafamento, desviamos por um bairro de Contagem. Uma mulher de 50 anos, com seus 20 kg a mais, rodopia o braço e arremessa o saco de lixo, além do arame farpado, num lote vazio.

Sem pudor algum. Sem ao menos deixar nosso carro passar. Atitude que já tomou infinitas vezes. O local onde o embrulho aterrissa já é coberto de entulhos e imundices depositados ali por livre escolha de seres que ainda não fazem jus ao atributo de humanos.

No bairro existe coleta municipal de lixo, não se explica, assim, a escolha de despejar a esmo o que poderia ser levado sem custo para o aterro sanitário.

O gesto da mulher se volta como bumerangue sobre ela. Ela já perdeu seus encantos exteriores apesar de ser mais moça que Sharon Stone. Ela é o retrato traçado por Schopenhauer da fêmea que perdeu os atributos da atração.

Como explica o cabalista Eliphas Levi, “a beleza exterior da mulher é um reflexo de sua virtude interior”. Bem por isso as megeras ficam precocemente enrugadas, lábios finos, impróprios para beijar. Já as cinderelas são angelicais. Umas preparam venenos e jogam sacos de lixos, outras sabem cultivar flores.

A atitude antissocial é bastante comum, já que canteiros e espaços baldios em nossa Minas Gerais são devastados pelo lixo. Disso se explica a relação sutil com biótipos deformados.

Nada a ver com Katrina Kaif, do filme indiano “Te Amarei até Morrer” (passará no Cinemax, canal 678, no dia 31, às 10h35).

Além de contaminar o meio ambiente, desperdiçam-se materiais recicláveis e geram-se focos de dengue e doenças. O aviltamento visual provoca mais perda de autoestima dos moradores, já que o ambiente, de certa forma, não merece respeito: “Eu, que moro neste local, também não mereço respeito”. Já uma personalidade holística vai além de seu bairro e de sua cidade e pensa: “O que posso fazer para criar um mundo melhor...?”

O indivíduo é castigado pela degradação do ambiente, passa a conviver com a decomposição, baratas, ratos e insetos peçonhentos.

Voltamos a quem arremessou o saco de lixo, uma personalidade obtusa. Ela nasce da falta de regras de convivência civilizada, que a faz pensar que se livrou do lixo, sem entender que mais incômodos voltarão a ela. Planta ainda em seus filhos a semente da negatividade, ensina a desrespeitar e a subtrair dos outros uma vida melhor.

Escrevo um dia após o Natal, aguardando o surgimento de um Ano-Novo. De um mundo, ultimamente aviltado pela semeadura de males, que possa ser melhor. E alguém jogaria a pergunta: “Você se arrepende de quê?” Do que fiz, voltaria a fazer quase tudo, mas procuraria plantar mais árvores perfumadas, como o neem indiano, ou a doce graviola no meu pomar.

Confesso que, quando olho para uma árvore que plantei, sinto satisfação, “fui eu”. Árvore é uma filha. Passando, olho as minhas árvores e me deixo olhar, ficando em paz.

Algumas segurei com os dedos, minúsculas sementes, outras vi como mudas. Todas inteligentes. Basta reparar que crescem mais e melhor nos locais em que as pessoas as apreciam. Devolvem o agradecimento com a seiva, as flores, os frutos e a sombra.

O jacarandá que plantei no jardim custou a vingar. Ficou enorme. A nossa relação começou num hotel há 15 anos, e hoje ameaça com suas raízes arrebentar o corredor de casa.

A relação começou numa tarde ensolarada de março de 1999, na piscina do hotel Taj Mahal, da cadeia de Donald Trump, em Katmandu, no Nepal. As sementes caíam, entre elas escolhi dez. Embrulhei em papel laminado, tirado de um abandonado estojo de cigarros. Trouxe na mala até aqui. Dessas escolhi cinco, que plantei num canteiro de areia à frente do meu escritório. Todas brotaram. Quatro plantei em lugares inconvenientes, e acabaram sendo arrancadas. As demais cinco sementes eu perdi.

Esse jacarandá entrou na minha vida e decidi agora tirar 200 sementes, que pretendo germinar e plantar às margens da via de acesso de uma fazenda, deixando ali uma longa alameda. Sonho assim, numa próxima primavera, passar sob a sombra e me encher de alegria. Imagino ainda as pessoas se encantando com a chuva de flores violeta, agradecendo a quem as plantou. A imaginação faz voar. Suas sementes espalhando-se e dando árvores gigantescas em toda a América. Florestas de jacarandás. E, se isso vier a se realizar, foi por ter me levantado da cadeira, recolhendo em Katmandu aquela minúscula semente.

Existe em nós o potencial da felicidade e do castigo. Livres no arbítrio. E, se quiser um Ano-Novo melhor, como desejo a todos, “aproveite para plantar árvores, em qualquer lugar, elas e o mundo nunca esquecerão o gesto de quem as plantou”.