quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O CONCEITO DE TOTALITARISMO


“Importa examinar, ainda que esquematicamente, a natureza e a gênese do totalitarismo. O conceito de totalitarismo é uma das construções mais claras, precisas e importantes da ciência política. Não o invalida o fato de que tenha sido instrumentalmente empregado pela política externa norte-americana durante a guerra fria, ora estreitando-o, ora ampliando-o, como arma ideológica contra a União Soviética. Muito antes da guerra fria, o termo totalitarismo foi empregado, por pensadores marxistas, como categoria de análise para explicar a peculiaridade trágica do comunismo soviético.

Em 1940, um ano antes de ser morto pelos nazistas durante a ocupação de Paris, o notável economista marxista Rudolph Hilferding, autor da teoria do capital financeiro e do imperialismo, da qual Lenine foi tributário, recorreu com rigor ao conceito de totalitarismo para referir-se à economia soviética. Hilferding advertiu para o fato de que:

"É da essência do Estado totalitário sujeitar a economia a seus desígnios. A economia é subtraída de suas próprias leis e se transforma numa economia controlada. As economias, alemã e italiana, fornecem a evidência de que este controle, uma vez iniciado num Estado totalitário, propaga-se rapidamente e tende a tornar-se completo, abrangendo tudo, como foi o caso da Rússia desde o começo. Apesar das grandes diferenças em seus pontos de partida, os sistemas econômicos dos Estados totalitários estão cada vez mais se aproximando uns dos outros.O poder do Estado de hoje, tendo conquistado independência, está desdobrando sua enorme força de acordo com suas próprias leis, subjugando as forças sociais e compelindo-as a servir, por um período de tempo curto ou longo, os fins do próprio Estado. A emergência do Estado como um poder independente complica enormemente a caracterização econômica de uma sociedade em que a política, isto é, o Estado, desempenha um papel determinante e decisivo. Por essa razão, a controvérsia a respeito do caráter “capitalista” ou “socialista” do sistema econômico da União Soviética parece-me sem sentido. Não se trata de uma nem de outra coisa. Tal sistema constitui uma economia de Estado totalitário, do qual os sistemas econômicos da Alemanha nazista e da Itália fascista estão se aproximando cada vez mais. Lenine e Trotski, com a ajuda de um grupo de elite partidária, de um partido que sempre foi um instrumento nas mãos dos chefes, como seriam mais tarde o partido fascista e o partido nacional-socialista, fundaram o primeiro Estado totalitário, antes mesmo que o termo tivesse sido criado”.

Nos anos 40 o pensador marxista Cornelius Castoríadis enfatizou que “o verdadeiro criador do totalitarismo é Lenine”.

Efetivamente, em março de 1921, quatro decisões, sob o comando de Lenine, assinalaram a edificação, na União Soviética, do primeiro Estado totalitário do século XX:

Primeira - o exército vermelho, sob o comando de Trotski, aniquilou definitivamente a insurreição do Kronstadt e, com ela, a resistência armada de camponeses e operários que em diferentes latitudes do país se opunha à ditadura comunista;

Segunda – O “X Congresso do Partido Comunista” aprovou a Nova Política Econômica, que reintroduziu o capitalismo, absorvendo inclusive a participação do capital norte-americano, e incrementou formidavelmente o lucro da produção urbano-industrial ao custo da repressão econômica do campesinato;

Terceira – Cumprida a sua função revolucionária, a democracia direta e popular dos sovietes (conselhos de operários, camponeses e soldados) foi substituída pela ditadura do partido bolchevista;

Quarta – E, enfim, o X Congresso adotou resolução proibindo a existência e a formação de facções, bem como os debates, no interior do partido, nele consagrando a ditadura interna do Comitê Central.

Segundo Ernst Nolte, o totalitarismo europeu só pode ser corretamente compreendido com base na identificação da unidade histórico-cultural entre o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão e de sua derivação comum do comunismo russo. Sidney Hook observou com propriedade que:

“Culturalmente e à luz de seu desenvolvimento, o leninismo deve ser encarado como o primeiro movimento fascista do século XX”.

O comunismo evidentemente jamais reconheceu quer o seu caráter totalitário, quer a sua influência decisiva sobre o fascismo e o nacional-socialismo. Contudo, os dois últimos, embora tenham rejeitado qualquer raiz leninista comum, assumiram explicitamente, com Mussolini em 1932, e com Goebbels e Carl Schmitt em 1933, o seu caráter totalitário.

Para escamotear a natureza totalitária do comunismo, os comunistas e, no Brasil, os petistas e aqueles que se encontram na periferia intelectual do PT recorrem ao termo estalinismo. Com isso, o totalitarismo comunista fica reduzido a um momento particular de sua trajetória. Explicar o sistema totalitário soviético pelo estalinismo, atribuindo toda a responsabilidade a um único homem, não é apenas uma atitude estranha a marxistas; é, sobretudo, um artifício diversionista para ocultar que “o mal está no sistema”, como assinalou o filósofo marxista Rodolfo Mondolfo.

Há, portanto, um conjunto de traços comuns ao comunismo, ao fascismo, ao nacional-socialismo e, no Brasil, ao petismo, que o conceito de totalitarismo identifica. Enquanto pensamento e enquanto conduta, o totalitarismo distingue-se não apenas da democracia constitucional mas do autoritarismo, e não só por diferenças de grau ou intensidade mas por oposição qualitativa.

O autoritarismo se caracteriza pela limitação à competitividade e ao pluralismo políticos, pela desmobilização e pela despolitização crescente da sociedade e da vida, pela insistência na indiferença e na neutralidade políticas e pela predominância, nas relações entre Estado e Sociedade, de cooptação sobre a representação.

O totalitarismo, ao contrário, tende essencialmente à politização de todas as esferas da existência humana, incluindo a escola, a arte, a produção da ciência, o lazer, a família, a religião e a sexualidade. Alimenta-se do apelo ao ativismo político e à mobilização revolucionária permanentes do homem comum, que as mediações institucionais da democracia representativa refreiam e sublimam. E faz desaparecer a distinção entre a esfera privada e a esfera pública, resolvendo a primeira na segunda ou, na linguagem de Rousseau, o homem no cidadão.

Desaparece também inteiramente, no totalitarismo, a distinção entre Estado, Governo e Partido, absorvidos os dois primeiros pelo partido, cuja dominação e cujo controle total atravessam o conjunto da sociedade, chegando, por meio de vasos capilares, aos sítios mais íntimos e recônditos da existência humana. Lenine hierarquizou em cinco níveis o envolvimento da sociedade pelo partido único, no movimento revolucionário: o primeiro nível, ocupado pelo partido e pelos profissionais revolucionários; o último nível pelos elementos não organizados da população.

O partido único totalitário percebe-se como portador de uma weltanschauung, de uma ciência e de uma teoria omnicompreensiva e acabada da sociedade e do processo histórico uno e unívoco que conduz a um fim último inevitável: a redenção humana. O que investe o partido da missão de guiar o homem comum, que não tem acesso a esse saber. Nessa perspectiva, o messianismo político alimenta e legitima o voluntarismo do partido. Como acentuou Hannah Arendt, “as ideologias totalitárias aspiram a uma explicação total pela aplicação de uma idéia única aos vários domínios da realidade. São monomaníacas!

Enquanto os sistemas políticos constitucionais são individualistas e pluralistas, o totalitarismo tem uma visão essencialmente holista e monista do mundo, que compreende a natureza e o homem. O universo intelectual do indivíduo totalitário é uma totalidade absolutamente inclusiva e ao mesmo tempo exclusiva: de um lado, todos os elementos que a integram são essenciais e nenhum deles pode ser dela retirado sem fazê-la perder o sentido; de outro lado, nenhum elemento que a ela não pertença originariamente pode ser por ela incorporado sem produzir alguma dissonância cognitiva.

Na lógica do leninismo, o papel do partido consiste em ativar a insurreição das massas que, entretanto, desempenha no processo revolucionário um papel apenas espetacular, pois a tomada do poder é obra de uma minoria ilustrada e ativa que, aglutinada no partido e capitalizando a adesão emocional das massas, executa a conspiração e o golpe de Estado. Exitoso este último, a conseqüência imediata é a ditadura do partido único, que persistirá por um tempo indefinido porque sua função não consistirá apenas em reprimir os opositores mas em educar, pela violência tanto quanto pela persuasão, as massas imaturas.

O apelo idealizado à violência é outro traço comum aos movimentos totalitários. Marx enfatizara que a violência revolucionária era “a parteira da História” e Mussolini insistiu na ideia de que a tensão da guerra e o seu desafio de matar ou morrer temperavam e elevavam o caráter dos homens, assim como as dores do parto dignificavam a mulher. O elo entre o voluntarismo marxista-leninista e o fascismo foi provido pelo sindicalismo revolucionário que George Sorel expôs nas suas Reflexões sobre a violência.

A politização totalitária é incomensuravelmente mais nociva do que a despolitização autoritária. A despolitização retira o homem da política mas, estimulando a indiferença quanto aos grandes problemas da sociedade, lhe permite recolher-se à intimidade e à autonomia de sua vida pessoal e civil. Já a politização totalitária substitui a participação política autônoma – que reconhece como legítima tanto a diversidade de interesses particulares quanto o pluralismo de concepções acerca do interesse público e a possibilidade do indivíduo de decidir entre lealdades alternativas – pela mobilização política heterônoma de indivíduos com o ego previamente debilitado pelo envolvimento numa situação de massas.

No totalitarismo, como resultado de um processo de extrema e brutal simplificação da realidade, a vida política é percebida em termos de um permanente enfrentamento entre dois pólos – o de amor e o de ódio, o de bem e o de mal, o de verdade e o de erro, o de amigo e o de inimigo – diante dos quais a neutralidade ou a indiferença não são apenas suspeitas mas criminosas.

Um exemplo deste mecanismo de manipulação psicológica totalitária, combinando exclusivismo e envolvimento, foi a fórmula que, concebida por Jdanov em 1946 e logo conhecida como Teoria dos Dois Campos; ela alimentou eficazmente, ao longo da guerra fria, a satelitização, pelo Partido Comunista da URSS, das denominadas “democracias populares” e dos partidos comunistas do Ocidente. O mundo inteiro, em todos os seus aspectos, estava dividido em dois campos: na filosofia e na ciência, opunham o idealismo e o materialismo; na arte, o subjetivismo burguês e o realismo socialista; na política, o imperialismo e o socialismo, cada um com seus aliados. Como não se reconhecia outra alternativa política – tertius non datur – quem não pertencia explícita e ativamente a um dos campos, situava-se no campo do adversário.

Lamentavelmente, a teoria dos dois campos não está sepultada. É ainda empregada, pelo sectarismo totalitário, como recurso para desqualificar não apenas os inimigos como também os independentes e mesmo os relutantes.

A existência de grupos primários vigorosos e de associações intermediárias voluntárias inviabiliza o totalitarismo simplesmente porque este não pode funcionar se os indivíduos retêm lealdades alternativas ou sequer compartilhadas com aquela que devem ao partido e ao Estado. É esse o motivo pelo qual o totalitarismo não reconhece como legítimos quer a diversidade de interesses particulares que o pluralismo de concepções alternativas acerca de fins políticos ou mesmo do interesse público. No totalitarismo, a família e os grupos e associações intermediárias voluntárias são de certo modo debilitados e convertidos em condutos que fazem convergir para o partido e para o Estado a lealdade total dos indivíduos. A estrutura social tende a ser reduzida, por um processo de radical simplificação, a dois pólos: de um lado uma massa de indivíduos atomizados e isolados e, de outro, o Estado, ou melhor, o partido, dominador e educador.”

(in O Totalitarismo Tardio, de José Giusti Tavares).

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

NUNCA LEMOS TANTO - Roberto da Matta

(Publicado em 05 de dezembro de 2012 no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO)


"Nunca lemos tanto ou fomos tão amantes do Direito como agora. Não estou afirmando que os debates do STF foram vistos como jogos de futebol, mas afirmo sem medo de errar que a cada condenação dos trambiqueiros petistas, os nossos velhos corações, acostumados a uma imoral impunidade, batiam esperançosos.

Vimos com clareza quem atuou ou não, e percebemos a impossibilidade de julgar um ex-patrão ou os amigos. Entendemos por que o liberalismo inventou a fórmula ética chamada "conflito de interesse". A consciência dos papéis sociais, de que falava, entre outros, Shakespeare, com a terrível clareza da tragédia, mostra isso. Só há duas possibilidades: ou o papel comanda a pessoa ou a pessoa comanda o papel. Se houver um conflito entre a pessoa e o papel, não pode haver desempenho porque não há convicção - essa dimensão básica da ética que dispensa a polícia e a censura porque ela se enraíza na difícil capacidade de dizer não a si mesmo demandado pela democracia.

O julgamento engendrou, por outro lado, heróis. Um deles foi o procurador-geral da República. Outro foi o relator. Ele permitiu testemunhar o desmonte de um projeto de poder contrário à democracia e à condenação daqueles que - aristocraticamente - se imaginavam acima da lei por terem um certa biografia e professarem uma certa visão de mundo.

Hoje estamos lendo tudo sobre os "livros" que, na linguagem de Rose Noronha e dos seus asseclas, eram uma metáfora para os favores obtidos graças às tramas pessoais e partidárias.

A barganha de cargos do Estado mostra como os intérpretes do Brasil estavam enganados. Todos falam da oposição entre oprimidos e opressores, entre exploradores e explorados, entre senhores e escravos quando, de fato, o que se assiste ao longo da história é um contraste assombroso entre governantes e governados. Aqueles como donos do Estado por meio de um governo; estes pagando seus escritórios, motoristas, secretários, cartões corporativos, namoradas, ilhas da fantasia, obras, grandes cagadas, viagens, massagens, passaportes diplomáticos - o c... a quatro! - com o seu trabalho e impostos.

Nossa paixão pelo estado imperial e definitivo é tão grande que conseguimos inventar dentro do capitalismo o segmento dos "empreendedores oficiais". Os que por meio de suas relações usam os cargos públicos sem seguir a ética pública. Assim, em vez de empregarem seus cargos para aprimorar o setor pelo qual são responsáveis, eles os usam para "se arrumar". O familismo, o personalismo, as amizades, a simpatia e, hoje em dia, o partidarismo, ajudam a criar fortunas. Tudo, menos o mérito, os resultados e a competência, passa a ser a norma dos governos que cometem a perversão de opor de modo radical os que pagam os impostos - nós, os governados; e eles, os governantes, que tudo podem porque estão acima da lei.

Quando dona Rosemary Noronha diz que nada fez de errado, ela está falando a verdade. E quando nos indignamos com a quadrilha da qual ela era o centro, nós também estamos com a verdade. Todos descobrimos, sem termos lido Fernando Pessoa, essa dupla existência da verdade porque um dos dados da era "lulo-petista" é a revelação de uma ética dupla que, faz tempo, acentuei no livro Carnavais, Malandros e Heróis como sendo o traço capital do sistema brasileiro. Sempre tivemos uma norma moral interna para a "casa"; e outra, externa, para o povo governado tido como pobre ou pateta, que na "rua" ganha a "bolsa idiotice" e se conforma com uma ocupação predatória do Estado por um governo cujo centro é um projeto de poder.

Dir-se-ia que chovo no molhado. Mas, vejam bem: num mundo social com uma ética para os amigos e outra para os estranhos os dois lados estão absolutamente corretos. É precisamente por isso que há impunidade. Não é a impunidade que leva ao abuso do cargo público. É o fato de jamais termos enfrentado o problema das demandas pessoais face às exigências dos cargos públicos num sistema igualitário ou republicano que leva à impunidade. Quando o STF confrontou pessoas com projetos políticos e cargos, houve condenação.

Imagine o que aconteceria se você, eleito presidente, não contemplasse seu cunhado com uma agência reguladora? Como não indicar, nomear ou pedir um favor quando a ética da amizade diz que é exatamente assim que devemos proceder? Rose está correta. Se eu sigo uma ética que engloba a morte, eu mato; se ela legitima o "tirar partido" de uma relação e um cargo, eu peço. Why not?

Se jamais politizamos a desagradável separação (e o limite) entre o cargo público com suas obrigações e os seus eventuais ocupantes, que, dentro dele procedem como se fossem seus donos, o resultado só pode ser o que traduzimos como escândalo ou corrupção. A indicação "de cima" - do PR ou do JD - como diz Rosemary - permite tudo. É como produzir uma peça de teatro escolhendo os atores pelas suas relações com o dono do teatro e não com as exigências do papel. Aí está o óbvio ululante que ninguém quer ver.

O desequilíbrio entre ator e papel resulta nesse fracasso retumbante de tudo o que vem do governo por oposição a tudo que nasce na sociedade. Em todos os lugares onde se buscou a igualdade de todos perante a lei, a separação de pessoas e papéis públicos realizou-se de modo dramático. Foi uma tarefa revolucionária, como tanto gosta o anglo-eurocentrismo e a vulgata marxista. No Brasil, só agora começamos a perceber que não há a menor chance de mudança para uma sociedade igualitária, se não tivermos a coragem de adequar pessoas aos papéis públicos que elas eventualmente ocupem."