quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A CONCEPÇÃO TOTALITÁRIA DA DEMOCRACIA (1a. parte)

(Retirado do livro "O totalitarismo tardio - o caso do PT", de José Giusti Tavares)

A) Democracia Constitucional e Democracia Totalitária

“O conceito de democracia não é unívoco. Ao contrário, contém uma profunda ambigüidade que só a distinção fundamental entre governos constitucionais e governos não-constitucionais pode desfazer. Portanto, a distinção tem precedência lógica e axiológica sobre o conceito. Na tradição intelectual do Ocidente convivem em oposição e em conflito duas concepções de democracia: a concepção constitucional­ – ortodoxa, íntegra e virtuosa – e a concepção não constitucional, desviante e perversa ... ou a concepção totalitária de democracia.

Em sua versão constitucional a democracia é essencialmente um método, consensual e destituído de qualquer conteúdo finalístico, de tomar decisões públicas – isto é, decisões que, assumidas por todos os membros da comunidade política, diretamente ou através de seus representantes, obrigam em comum e universalmente a todos, quer lhes tenham sido favoráveis quer lhes tenham sido contrários – e, ao mesmo tempo, um valor em si mesma, pois a adesão à excelência do método é independente dos cursos de decisão e de ação que ele torna possíveis e não pode ser instrumentalmente subordinada ou condicionada à consecução de qualquer objetivo particular.

A concepção processual da democracia representativa, que a percebe como método destituído de qualquer conteúdo finalístico, é o coroamento do esforço bem-sucedido – elaborado pioneiramente por Joseph Schumpeter, na Parte IV de seu conhecido livro, publicado em 1942, Capitalismo, socialismo e democracia – de conciliar e integrar a Teoria das Elites – de Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto – e a Teoria das Organizações – de Moisei Ostrogorski, Robert Michels e Max Weber – com a teoria normativa tradicional da Democracia. Schumpeter inverteu em dois sentidos importantes o conceito tradicional da democracia representativa.

A democracia representativa schumpeteriana não é propriamente uma ordem política na qual indivíduos e grupos competem entre si pela eleição de partidos e de candidatos incumbidos de representá-los e de governá-los, mas – ao contrário – um sistema pluralista de elites e de organizações políticas que, buscando apropriar-se da ordem estatal, competem entre si pela conquista, por meio do sufrágio periódico, do consentimento e da autoridade, por parte das não-elites, diante das quais são responsáveis. Neste sistema, por outro lado, os partidos não competem pelo governo para realizar programas, mas, ao contrário, concebem programas de governo, quando na oposição, e os cumprem, quando no governo, para assegurarem, por meio de eleições pluralistas e competitivas periódicas, a conquista do poder público, a permanência nele ou o retorno a ele.No paradigma schumpeteriano de análise política, o partido constitui um caso particular de empresa e a competição periódica dos partidos pelo voto para conquistar o governo ou a sua participação nele, um caso particular da competição entre grandes empresas pela preferência dos consumidores num mercado relativamente oligopolizado. Neste processo, entretanto, o partido não renuncia ao seu papel clássico, que consiste em dirigir os diferentes segmentos da sociedade no sentido dos interesses que lhes pertencem e dos quais são, sem dúvida, os únicos juizes, mas cuja realização requer o critério e o capital de sabedoria política acumulados pelo partido.

O realismo schumpeteriano pode parecer cínico, porque não faz qualquer concessão à ingenuidade, à hipocrisia ou ao sectarismo, mas tem o mérito de excluir a substantivação totalitária do conceito de democracia.

A democracia constitucional alimenta-se ao mesmo tempo do consenso acerca das regras do convívio político e do dissenso, cuja legitimidade e propriedade integradora reconhece, acerca dos objetivos. Nela, indivíduos e grupos – divididos pela diversidade de interesses, pelo pluralismo de fins e por concepções diferentes acerca do interesse público – obrigam-se universalmente a um conjunto de regras processuais que lhes permitem ao mesmo tempo o convívio, a cooperação pacífica e ordenada e a competição pela definição das políticas públicas. Em suma, o método democrático viabiliza um sistema pluralista de elites, de organizações políticas e de partidos que competem entre si pela posse ou pelo controle do governo por meio da conquista, através do sufrágio periódico, do consentimento e da autoridade que lhes conferem as não-elites, diante das quais são responsáveis.Na construção da democracia ocidental contemporânea o constitucionalismo precedeu secularmente o governo representativo e ambos precederam, também secularmente, a democracia, isto é, a expansão popular do voto e da participação política.

No constitucionalismo o exercício das funções e do poder inerentes à soberania é distribuído entre agências governamentais que, condenadas a atuar em concerto, ao mesmo tempo cooperam e limitam-se reciprocamente, de modo que, ao fim e ao cabo, a soberania não pertence a qualquer indivíduo, organização, partido ou segmento social, nem mesmo ao povo ou aos seus representantes, mas à Constituição, às Leis e às Instituições, nesta hierarquia, as quais, consensualmente reconhecidas pela comunidade política, definem obrigações e direitos, individuais e sociais, asseguram predictibilidade ao convívio coletivo e limitam o exercício de todas as formas, públicas e privadas, de poder.A idéia do constitucionalismo moderno encontra-se sintetizada no artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação de poderes determinada, não tem constituição”.A base sociológico-política da difusão e da limitação do poder, bem como das liberdades individuais e coletivas, que integram o constitucionalismo, é a existência de uma multiplicidade de associações intermediárias voluntárias, que funcionam como mediadoras entre o indivíduo e o Estado e como centros de lealdades alternativas, e de uma sólida tradição de auto-governo local. Evidências dessas práticas foram surpreendidas por Políbio na Constituição Romana, por Montesquieu no feudalismo político europeu ocidental e por Tocqueville nas colônias inglesas da América.

Concebida por Montesquieu, a engenharia institucional do constitucionalismo, com a teoria da separação de poderes e o mecanismo de freios e contrapesos que lhe são inerentes, foi ulteriormente aperfeiçoada por Hamilton, Jay e Madison – os Pais Fundadores da Constituição norte-americana – nos artigos reunidos no Federalist Papers, e pelas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte.

O fundamento da democracia constitucional, explicitamente consagrado pelo artigo 1º, inciso V, da Constituição brasileira de 1988, é o pluralismo político, isto é, o reconhecimento, por parte dos diferentes atores políticos, individuais e coletivos, de que é legítima a diversidade de interesses particulares e de concepções particulares acerca do interesse público que competem pelas decisões soberanas e pela posse ou pelo controle do governo. Por outro lado, a democracia constitucional é essencial e não apenas contingencialmente representativa, pois, como demonstrou Kant, dada a sociabilidade insociável que caracteriza a sua natureza, os indivíduos humanos são incapazes de se auto-governarem e a liberdade constitucional não pode ser outra se não a sujeição voluntária, por parte de cada um e de todos os sujeitos que integram a comunidade política, às leis a que se auto-obrigam por antecipação ao elegerem representantes com a faculdade e a responsabilidade independentes de elaborá-las.

Em outros termos, o governo representativo não é uma limitação ou uma contingência da democracia constitucional. Ao contrário, a democracia ou é representativa e, deste modo, constitucional, ou não é representativa e, assim, não é constitucional. Na democracia pluralista e representativa cada partido político é uma organização de pessoas associadas entre si não por interesses particulares comuns nem por uma visão única e unívoca da boa sociedade, mas por uma concepção particular, que possuem em comum, acerca do interesse público; o que é muito diferente quer da idéia privatista, arcaica, da representação política, quer da idéia, peculiar ao totalitarismo, do partido como portador de uma ideologia uniforme, monolítica e omnicompreensiva.

Enfim, a expansão popular da cidadania ampliando a comunidade política para fazê-la virtualmente coincidir com a sociedade civil, introduz, sobre a base do constitucionalismo e do governo representativo, a democracia em sua forma política virtuosa.Ao contrário, a democracia totalitária identifica-se como a busca de uma ordem social final única e unívoca a ser trazida do reino da virtualidade ao reino da história concreta por obra de um grupo, de uma organização ou de um partido revolucionário que, detendo a consciência antecipada do processo, também único e unívoco, que a ela conduz, deve conquistar a direção hegemônica da sociedade. E, se tanto essa ordem pública final e ideal quanto o processo que a ela conduz são únicos e unívocos, não há lugar, em política, para versões alternativas, quer acerca de fins, quer acerca de meios; versões ou projetos alternativos constituem, na melhor hipótese, equívoco ou erro, e, na pior, mas não menos freqüente, delito.

Num estudo publicado em 1951, J. L. Talmon identificou a origem teórica da democracia totalitária na concepção messiânica rousseauniana de vontade geral. Mas já em 1944, em seu livro clássico - A sociedade aberta e seus inimigos - Sir Karl Popper derivara a teoria do totalitarismo político do que denominou o historicismo de Platão e sucessivamente de Hegel e de Marx”.

(continua)

A CONCEPÇÃO TOTALITÁRIA DA DEMOCRACIA (2a. parte)

B) A gênese sociopática do totalitarismo

“Enquanto comportamento e enquanto ideologia política o totalitarismo é um fenômeno moderno. É uma resposta inadaptada e sociopática aos desafios introduzidos pelo ingresso das massas na política em sociedades nas quais, por outro lado, o processo acelerado e radical de mudanças tecnológicas, crescimento econômico e secularização sociocultural produz descontinuidades e crises cíclicas nos valores e nos marcos de referência da ação, gerando, no homem comum, entre as elites e entre os intelectuais, níveis intoleravelmente elevados de incerteza e de percepção de ameaça.

Sob tais condições, um largo número de indivíduos experimenta a erosão, a descontinuidade e a ruptura dos vínculos que os integram aos grupos e às associações primárias e intermediárias, mergulhando na atomização que caracteriza a condição de massas. O crescimento econômico rápido e a urbanização com ou sem industrialização geram expectativas e aspirações. As crises cíclicas de inflação, desemprego ou depressão, que interrompem ou perturbam subitamente esses processos, introduzem frustrações e decepções. Frustrações e decepções ampliam o universo das elites desajustadas e ressentidas, convertendo-as sucessivamente em contra-elites e em elites revolucionárias e colocando diante delas, massas disponíveis para manipulação.

A secularização e a racionalização crescentes destroem os valores e as normas tradicionais de ação mais rapidamente do que conseguem substituí-los por normas e valores modernos, inaugurando um intervalo de vazio normativo ou, literalmente, de anomia.A universalização do acesso às informações incrementa o sentimento de igualdade que, como observara Tocqueville, os homens assimilam e apreendem mais facilmente do que a difícil arte de associar-se. Instalam-se assim o cenário e os atores dos movimentos totalitários de ruptura, à direita ou à esquerda, da ordem política.

Existem diferentes construtos analíticos que iluminam a direção e as implicações complexas dos processos de expansão tecnológica, de crescimento econômico, de urbanização, de industrialização, de secularização cultural e de modernização sócio-política, dos quais o totalitarismo é uma resposta sociopática. Dentre eles, o mais abrangente e penetrante, do ponto de vista psicossocial, é a teoria, elaborada por Talcott Parsons, das mudanças na natureza e na orientação da ação social e na distribuição de papéis sociais que se seguem à transição das sociedades comunais ou tradicionais às sociedades modernas. Rigorosamente, nas sociedades tradicionais o homem percebe-se não como indivíduo mas como membro integrado por uma relação de pertencimento a uma totalidade comunal que lhe atribui desde cedo, adscritivamente, em virtude de seus atributos herdados, tais como condição ou status, uma posição e um papel determinados. Ao mesmo tempo, a sociedade tradicional provê aos seus membros uma normatividade prescritiva exaustiva, que contém padrões claros, definidos e precisos, modelos prontos e acabados, de resposta a cada espécie de situação, cuja observância ou transgressão lhes permite antecipar com inteira segurança as conseqüências de seu comportamento. Nas sociedades tradicionais as expectativas recíprocas dos sujeitos, quanto aos valores envolvidos nas relações sociais, são muito amplas mas, ao mesmo tempo, quase íntimas, difusas e não claramente definidas e delimitadas. Contudo, as expectativas quanto ao acesso às posições econômicas ou políticas são particularistas e adscritivas.

Ao longo do processo de modernização os laços primários, comunais, pessoais e concretos sofrem um processo de inevitável dissolução e são crescentemente substituídos por laços societários, voluntários mas contratuais, impessoais e abstratos. Na orientação da ação, marcos normativos prescritivos são substituídos por marcos eletivos, isto é, por critérios gerais de conduta que não dispensam a escolha e a responsabilidade individuais exigidas pela complexidade inesgotável das formas modernas de vida. Os indivíduos percebem-se, assim, entregues à incerteza, à ansiedade e, segundo Erich Fromm, ao medo que a liberdade suscita. No acesso a funções e a papéis e na avaliação da conduta, os critérios adscritivo-particularistas cedem lugar a critérios universalistas, fundados do desempenho medido pela competência e pela competição.

Nas sociedades tradicionais as ações contêm em si mesmas a sua gratificação emocional, enquanto a ação típica da sociedade moderna é afetivamente neutra e instrumentalmente subordinada a uma gratificação conseqüencial, que nela não se encontra. O homem tradicional orienta-se a partir de dentro e para dentro – isto é, da e para a família e os grupos primários e intermediários – enquanto o indivíduo moderno se orienta a partir de fora e para fora­ – isto é, da e para a sociedade e o mercado impessoais e anônimos.Essas mudanças psicológicas fundamentais convertem a incerteza na característica central da modernidade: incerteza quanto ao comportamento dos outros, quanto às conseqüências da própria ação e quanto ao futuro. É impossível suprimir a incerteza e, se tal fosse possível, eqüivaleria a eliminar um poderoso estímulo e fonte de energia para a ação (vale lembrar aqui a afirmação de Freud de que o homem deve aprender a conviver com uma certa dose de angústia). A incerteza e a insegurança tanto quanto o medo são as fontes aparentes mais importantes da ansiedade do homem nas sociedades em processo de modernização e por este motivo ocupam um papel decisivo na gênese psíquica-social das ideologias totalitárias. Não é outro o motivo pelo qual o totalitarismo é, a rigor, um fenômeno moderno.

A incerteza encontra-se na medula de democracia pluralista e competitiva, a forma política por excelência da sociedade moderna. A higidez psicológica do homem moderno depende de sua capacidade de conviver tão racionalmente quanto possível com a incerteza. Entretanto, é possível e racional reduzir a incerteza. E reduz-se a incerteza com informação fatual, com informação contextual e com saber científico ou teórico. Mas há uma forma mágica e radical de reduzir ou mesmo eliminar a incerteza, que dispensa todo tipo de informação, ciência ou conhecimento orientado para a realidade: é a adesão emocional a uma teoria omnicompreensiva da história humana que ofereça a antecipação e a presencialização de um futuro imaginário. Como essa teoria não pode ser submetida ao teste ou à refutação empíricos, a sua lógica interna basta para assegurar a coesão intelectual que lhe permite prover uma incrível sensação de segurança psicológica.

Um dos traços cognitivos mais notáveis da mentalidade totalitária, observável em Rousseau e Marx, consiste em perceber a complexidade estrutural, e a especialização funcional crescentes que, normalmente, caracterizam o desenvolvimento tecnológico e econômico e a modernização sócio-política, como fenômenos patológicos. Essa percepção, derivada da identificação das repercussões desses fenômenos sobre as consciências individuais, se encontra na base do conceito de alienação, definida como cisão, distanciamento e estranhamento, entre os sujeitos humanos e as suas obras ou os produtos de sua interação e de seu trabalho.

No Discurso sobre as Ciências e as Artes, Rousseau concluiu que o progresso da cultura havia debilitado a virtude, corrompido os costumes, fragilizado o convívio social e tornado o homem infeliz.Schiller descreveu pateticamente a alienação do homem moderno: “A satisfação está separada do trabalho, os meios estão separados dos fins e o esforço também o está da recompensa. Eternamente acorrentado apenas a um único fragmento do todo, o homem se considera apenas como se fosse um fragmento”.

Em Feuerbach a alienação consistia basicamente na cisão entre o indivíduo, finito, e a espécie, infinita. Para Marx, a cisão entre o homem e a natureza, entre o indivíduo e a sociedade, entre a sociedade e o Estado, entre o público e o privado, entre o trabalho, produtor, e a sua obra, a mercadoria, são diferentes manifestações da alienação humana na sociedade capitalista e de classes, que o comunismo faria desaparecer.

Contudo, alguns fenômenos identificados como alienação constituem mecanismos fundamentais sem os quais nenhuma sociedade minimamente civilizada funcionaria. O que seria, por exemplo, uma sociedade na qual não houvesse a separação entre as esferas pública e privada? Seria uma sociedade que tivesse privatizado inteiramente o público? Mas, neste caso, o que aconteceria com uma sociedade civil sem norma ou instituição públicas? Mergulharia certamente na anomia e na autodestrutividade do estado na natureza. E, inversamente, o que seria uma sociedade que tivesse publicizado inteiramente as relações privadas? Seria a realização extrema do totalitarismo. E é essa certamente a utopia marxista."

(continua)

A CONCEPÇÃO TOTALITÁRIA DA DEMOCRACIA (3a. parte)

C) As quatro ondas do totalitarismo

“Recorrente na história política do Ocidente, o totalitarismo emergiu, entre o fim da Idade Média e a metade do século XX, em quatro momentos diferentes, em cada um dos quais povos colocados sob condições excepcionais de miséria e privação reagiram contra formas materiais e intelectuais modernas de vida às quais associavam, real ou magicamente, o seu infortúnio, deixando-se envolver por mobilizações revolucionária fundadas no apelo a escatologias primitivas.O primeiro momento ocorreu ao longo das mudanças econômicas, tecnológicas, sócio-políticas e culturais que atravessaram o Renascimento e a Reforma, combinando o racionalismo crítico e o nacionalismo religioso. Sob tais condições, a Igreja deslizara adaptativamente para compromissos com o humanismo e a mundanidade, num quadro de valores que incluía a sensualidade, o luxo, a ostentação e a idéia da salvação pelas obras. A Reforma reagiu com uma formidável regressão, retomando três idéias fundamentais de Agostinho, o bispo de Hipona. A primeira é a da maldade intrínseca do homem que, incapaz de salvar-se pelo próprio mérito e pelas próprias obras, salva-se apenas pela graça de Deus. A segunda é a do dualismo teológico-moral irreconciliável entre a Civitas Terrena, essencial e irremediavelmente corrupta, mergulhada na sofisticação e no pecado, e a Civitas Dei, que concentra em si a integridade e a simplicidade de Deus e do Bem, entre as quais não há neutralidade ou indiferença possíveis. E a terceira é a de que a história universal anunciava o triunfo final próximo da Civitas Dei, percebendo-o como um retorno à Idade de Ouro ou à perfeição que precedera à queda originária do Homem.Quebrado o monopólio do magistério divino pela Igreja, essa concepção maniqueísta da história assumiu diferentes variações, sobretudo na teologia popular das seitas cristãs milenaristas que mobilizaram as insurreições camponesas comunistas do século XIV à metade do século XV: os lollards, inspirados em John Wiclef, na Inglaterra; os anabatistas, em Thomas Munzer, na Turíngia; e os taboritas, em John Huss, na Boêmia. Essas seitas, conhecidas pelo nome de quiliasmo, possuíam em comum traços intelectuais que comporiam a weltanschauung da democracia totalitária: a convicção de que a história da salvação humana é a de uma luta permanente entre Bem e Mal absolutos e de que, encontrando-se inteira e irremediavelmente corrompida, a sociedade não pode ser melhorada e deve ser, ao contrário, destruída para apressar o retorno inevitável do Reino de Deus, da Perfeição e da Justiça na Terra, que pertencerá aos pobres e austeros. As implicações totalitárias do quiliasmo são, pois, muito claras.

A teologia moral cristã medieval, ulteriormente retomada pelo anglicanismo e por Locke, percebia a natureza humana ao mesmo tempo em termos de falibilidade e perfectibilidade, o que explicava a possibilidade de aperfeiçoar a sociedade por meio de melhorias incrementais. Com a Reforma, essa perspectiva foi substituída pela crença agostiniana na natureza irremediavelmente degenerada do homem e no antagonismo entre Bem e Mal absolutos, o que reduzia toda mudança política a uma única alternativa: a redenção humana pela violência revolucionária, convertida em princípio ético supremo. Mudanças modernizantes passaram a ser identificadas não só como conciliação mas com o progresso do Mal. E a recuperação do primitivo paraíso perdido, o retorno palingenético, tornou-se a aspiração moral superior. (Palingenético refere-se ao eterno retorno).

No segundo momento, a democracia totalitária cristalizou-se, como desdobramento antitético do Iluminismo e do racionalismo liberal francês, na Teoria Mítica da Vontade Geral, concebida por Jean-Jacques Rousseau como a antecipação, pelo Legislador e Guia Revolucionário, de uma ordem natural latente que, entretanto, deverá ser trazida do reino da virtualidade para o reino da realidade como resultado final e irresistível da história humana: uma ordem única e unívoca à qual a massa comum dos homens, mergulhada no mundo da consciência imediata a aparente, não tem acesso, mas para a qual a sua liberdade e as suas ações devem ser orientadas ou mesmo compelidas pelo estadista revolucionário, que detém a consciência antecipada e privilegiada daquela ordem, do processo que conduz à sua realização e dos interesses reais do homem comum, que este, contudo, desconhece. Trata-se da mais acabada concepção, anterior a Marx, de um totalitarismo político edificado sobre uma teoria messiânica secular da história humana. Ao longo da segunda metade do século XVIII essa concepção percorreu uma trajetória de clara continuidade que, atravessando o pensamento de comunistas estatistas, como Diderot, Helvetius e Mably, chegou à ditadura jacobina do Terror e, no governo termidoriano que seguiu o esmagamento daquela, à Conspiração dos Iguais, conduzida por Grachus Babeuf e Philippo Buonarroti.No terceiro momento, no século XIX, já sob o impacto da Revolução Industrial, a teoria e a estratégia Babouvista da conspiração e do golpe insurrecional de Estado inoculou-se no comunismo moderno com Auguste Blanqui. O blanquismo dirigiu política e militarmente a Comuna de Paris de 1871 e dele Marx e Lenine herdaram a concepção da ditadura do proletariado.

Enfim, num quarto momento, como seqüela do imperialismo europeu e da primeira guerra mundial, o totalitarismo triunfa, à esquerda, com a revolução bolchevista, na Rússia, e subseqüentemente, à direita, com o fascismo italiano e com o nazismo alemão.O êxito do comunismo na Rússia e o do fascismo na Itália ilustram claramente algumas das proposições acerca da gênese do totalitarismo. Tanto a sociedade russa quanto a italiana exibiram à época que imediatamente precedeu a fermentação totalitária um ritmo consideravelmente elevado de crescimento econômico, que foi logo coarctado, na Rússia em virtude do desastre militar e na Itália porque, vitoriosa na guerra, perdera o acesso às áreas de controle colonial e de mercado externo capazes de assegurar-lhe a continuidade do crescimento industrial. Largos segmentos sociais foram reduzidos à condição de massas e logo mobilizados por elites revolucionárias: na Rússia, o campesinato, os soldados e um pequeno número de operários urbanos e, na Itália, as classes médias urbanas e os ex-combatentes, que não conseguiam reintegrar-se à economia e à sociedade, o que explica as direções, opostas, dos dois movimentos.

De qualquer modo, não há dúvida de que a matriz dos regimes totalitários contemporâneos foi o comunismo russo. Sidney Hook observou com acuidade que “culturalmente, e à luz de seu desenvolvimento, o leninismo deve ser encarado como o primeiro movimento fascista do século XX”. E Rudolph Hilferding, o notável economista marxista que edificou, com anterioridade em relação a Lenine, a teoria do imperialismo, definiu a economia russa, em 1940, como “uma economia de Estado totalitário, isto é, um sistema do qual se aproximam cada vez mais os sistemas econômicos da Alemanha e da Itália”.O socialismo marxista moderno e o quiliasmo medieval possuem em comum o fato de que produzem a presencialização emocional, como potência psíquica irrecusável, do futuro desejado. Pois o marxismo provê uma teoria secularizada, racional, auto-suficiente, totalizante e omnicompreensiva que percebe a história humana como um movimento irresistível em direção a um desenlace escatológico e que, deduzida a partir de juízos insuscetíveis de qualquer contraste com a realidade imediata, assume, entretanto, a pretensão de Ciência, substituindo com vantagem, nos séculos XIX e XX, como fonte de energia revolucionária, destruidora da ordem, o socialismo religioso telúrico do quiliasmo. Ao eliminar a incerteza, reduz ou suprime a ansiedade, produz segurança e, ao propor o futuro desejado como inevitável, induz à sua presencialização como força de negatividade, gerando energia extática e capacidade inabalável para a luta revolucionária.Para aquelas pessoas incapazes de suportar a condição trágica da incerteza, do risco e da insegurança, a religião telúrica e o quiliasmo provêem, na cultura moderna, um remédio que nem a ciência nem a religião extraterrena conseguem suprir.Como perceberam Blaise Pascal, Arthur Schoppenhauer e Miguel de Unamuno, a religião genuína, sobrenatural, é a expressão da perplexidade e do sentimento trágico da vida que resultam do contraste e da tensão entre a alma, que aspira ao infinito, e a finitude, a contingência e a dor moral. Mas ao mesmo tempo ensina o homem comum, não intelectualizado, a conviver com a imperfeição e as misérias da existência. A religião secular, política, essa sim, é o ópio destilado pela arrogância de elites desajustadas compulsivamente movidas pela destrutividade do instinto de morte.

Duas observações se impõem acerca da natureza da política e da ciência, bem como das relações entre ambas. A política, enquanto atividade, nada tem a ver com a ciência nem substitui o critério da ética. Não é o mecanismo da decisão, pelo voto ou pela violência, entre o verdadeiro e o falso ou entre o bem e o mal. É o domínio no qual versões alternativas acerca do interesse público competem e negociam entre si pela posse ou pelo controle do governo e das decisões legislativas. É também um método de viabilizar e resolver o conflito, a competição e a negociação entre interesses particulares diferentes e entre versões alternativas do interesse público que, compartilhando o consenso acerca dos valores, das regras e das instituições inerentes àquele método, percebem-se reciprocamente como legítimos. Assim, no funcionamento da democracia constitucional dissenso e consenso são igualmente legítimos e necessários. Nenhuma parcialidade ou pretensão política pode invocar a ciência em seu benefício e em detrimento das demais. Por seu turno, a ciência nada pode demonstrar acerca da legitimidade de valores competitivos e nada pode dizer que justifique a decisão entre fins alternativos.

A este respeito, importa refletir sobre o exemplo da social-democracia européia. Numa conferência pronunciada na Universidade de Berlim - e publicada sob o título "Como é possível o socialismo científico?" - Eduard Bernstein afirmou que o socialismo é essencialmente uma opção entre valores políticos, uma decisão entre fins alternativos, um projeto político que, competindo com outros pelo governo, não pode arrogar-se legitimamente em seu benefício e em prejuízo dos demais a infalibilidade da ciência. Em seu primeiro livro - "As hipóteses do socialismo e a tarefa da democracia socialista" - Bernstein já havia argumentado que as leis férreas da economia política marxista (a concentração crescente do capital e a miséria crescente do proletariados, o desaparecimento das classes sociais intermediárias, as crises de superprodução e de subconsumo e, enfim, o colapso final do capitalismo), perdiam cada vez mais a sua plausibilidade diante dos rumos assumidos pelo desenvolvimento econômico europeu e internacional.

E, finalmente, no livro "Socialismo Evolucionário", publicado em 1899 e imediatamente famoso, Bernstein expressou pela primeira vez no movimento socialista europeu a suspeita, até então oculta pelo constrangimento sectário, de que a previsão, por Marx, da catástrofe final, mas sempre iminente do capitalismo, à qual seguir-se-iam mais ou menos rapidamente a revolução proletária, não contava com qualquer apoio nas evidências históricas das últimas décadas.Em 1959, o Partido Social Democrata Alemão proclamou clara e enfaticamente, no programa adotado pelo Congresso de Bad-Godesberg, que não professava nenhuma crença religiosa, concepção do mundo ou teoria político-social que contivessem verdades últimas e exclusivas, argumentando que a sua renúncia a qualquer credo ordenador fundamentava-se na convicção de que partidos confessionais e Estado confessional comprometem irremediavelmente o pluralismo do convívio constitucional.Esta concepção, essencialmente correta, sustentada pela social-democracia, é crucial para distinguir entre si partidos que efetivamente são e partidos que não são constitucionais. E isso singelamente porque a democracia constitucional supõe não só o consenso acerca de regras e do método do convívio político mas, ao mesmo tempo, a legitimidade do dissenso, isto é, a diversidade de interesses e o pluralismo de fins e de concepções acerca da política que competindo entre si pelo governo, se reconhecem como igualmente legítimos.Em suas origens, a social-democracia separou-se da tradição socialista revolucionária precisamente à medida que renunciou, formalmente e por princípio, não apenas à via revolucionária armada, conspiracional e insurrecional, mas à escatologia de fins últimos em cuja busca todos os meios, se eficazes, são considerados bons e, finalmente, à teoria do partido como portador ilustrado não dos interesses que efetivamente, aqui e agora, possuem os operários, mas dos interesses que ele predica à classe operária como os interesses reais, embora virtuais, daquela, bem como da missão histórica que, necessariamente reservada àquela, cabe à intelectualidade revolucionária do partido revelar e ensinar. A social-democracia rejeita a concepção de um partido socialista que se auto-presume portador dos interesses virtuais de uma classe, ainda que essa classe seja o operariado, e que busca ocupar o Estado para colocá-lo sob a sua direção hegemônica, tendencialmente monolítica e exclusiva. E, enfim, à medida que romperam com esses componentes totalitários, diferentes vertentes do socialismo europeu convergiram para a social-democracia.D) O totalitarismo tardio: a quinta ondaEntretanto, sob as condições semibárbaras da Rússia do início do século XX e, logo, do isolamento e da polarização que acompanharam a guerra fria, o leninismo não apenas reteve mas aprofundou os componentes totalitários do socialismo primitivo. Mas no último quartel do século XX, a democracia totalitária não resistiu ao impacto de dois fenômenos que, independentes entre si, atuaram em sinergismo na mesma direção: a irreversível erosão do marxismo ocidental e a súbita desintegração do mundo comunista.

Ainda assim, o marxismo revolucionário não desapareceu com o refluxo. Ao contrário, sobreviveu dissimulado pela sua dispersão e pelo seu encapsulamento adaptativo em miríades de exotismos intelectuais que em todo o mundo se infiltram na Universidade, na Ciência, na Filosofia, na Teologia, na epistemologia, na Educação, na Arte, na Psiquiatria e na Medicina. E o ressentimento, alimentado pela frustração e pela sensação de orfandade, tornou-o ainda mais voluntarista, arrogante e agressivo, o que explica uma quinta e última onda: a do totalitarismo tardio.Por outro lado, como observou Sartori, o ritmo e a intensidade em que se operou o desencantamento com a ilusão revolucionária do totalitarismo foram menores nos países distanciados e periféricos em relação às sociedades mais avançadas da Europa e aos Estados Unidos. Este fenômeno explica em grande parte a sobrevivência residual do marxismo revolucionário na América Latina e, em particular, a expansão, no Brasil, sobretudo entre as classes médias tributárias do Estado e do setor público da economia, na universidade e entre operários e camponeses, do Partido dos Trabalhadores, que ainda não renunciou explicitamente à concepção que faz de si mesmo como partido de fins últimos.Pois quaisquer que sejam as tendências em que se divide internamente, o PT possui em comum ainda hoje uma concepção acerca da natureza e dos fins da política, bem como acerca de si próprio, que – dissimulada pela evocação da modernidade, pelas concessões convencionais ao anti-estalinismo e, mais recentemente, por uma estratégia de ambigüidade – é essencialmente a mesma que peculiarizou o socialismo messiânico primitivo, o marxismo e o leninismo.

Tarso Genro afirmou em 1988 que o seu partido deveria apropriar-se da teoria “de Rosa, Lênin, Gramsci, Lukács e Bloch”. A frase não é apenas uma exibição aleatória de marxologia; ao contrário, aponta para o voluntarismo, a violência e a ditadura como meios e a escatologia como fim, Importa não esquecer a advertência, feita por Marcuse, de que, nesta equação estratégica, os meios contaminam e pervertem os fins, substituindo-os, cedo ou tarde, no comportamento dos sujeitos. O PT não é um partido político no sentido convencional, que a tradição das democracias constitucionais do Ocidente registra. Não é uma organização cujos membros se associam para disputar, com base num programa concreto e específico, e por meio de eleições regulares periódicas, o exercício consentido e transitório do governo. É uma organização que busca, ao mesmo tempo, pela via institucional e gradual e pela violência revolucionária, a destruição da ordem política constitucional “burguesa”.

Na concepção política do PT simplesmente não há lugar para a distinção complexa, delicada e sutil – sobre a qual, entretanto, se ergue a democracia constitucional – entre Estado (instituição permanente que detém a soberania, isto é, o monopólio da capacidade de regulação do convívio societário), governo (conjunto de agências e de agentes que partilham o exercício das diferentes funções da soberania para a realização do interesse público), e partidos (organizações que competem periodicamente entre si pela ocupação temporária, com base no consentimento do eleitorado, das agências governamentais). Do ponto de vista do materialismo histórico, essa distinção é certamente uma construção formal, que se invoca com malícia e se observa por ingenuidade.É enganosa, por outro lado, a versão de que a resistência suscitada pelo PT no Rio Grande do Sul (no tempo em que Olívio Dutra foi governador), consistiu simplesmente em ter introduzido o governo de partido numa sociedade que perdeu ou nunca teve esse tipo de tradição. O party government, isto é, o governo confiado à responsabilidade constitucional de um único partido – que se constitui nos regimes bi-partidários clássicos, como o Reino Unido e os Estados Unidos – é a forma mais estreita de identidade entre partido e governo admissível numa democracia constitucional. Nada tem a ver com essa forma o fenômeno, que se observou no Rio Grande do Sul, de um partido que assimila, absorve e substitui o governo, confundindo-se literalmente com o próprio Estado.Portanto, quando no governo do PT um ativista partidário, convertido em servidor público, emprega uma folha de papel com o timbre do Estado para correspondência do partido, não se trata apenas do comportamento de alguém despreparado para a função pública. Trata-se do comportamento de um quadro partidário condicionado, pelo convívio ideológico cotidiano e pela compulsão totalitária, para a regressão a formas psíquicas pré-civilizadas de interação política.

A primeira, embora não a mais importante, manifestação da dificuldade insuperável para o PT de conviver com a democracia constitucional foi a relutância dos constituintes desse partido em assinarem a Constituição de 1988, obrigando-se formalmente ao contrato constitucional sobre o qual se esquina o regime democrático. Assinaram-na apenas sob reserva, depois de terem votado NÃO, por unanimidade, ao texto constitucional final, justificando formalmente aquela atitude com o argumento de que o “PT, como partido que almeja o socialismo, é por natureza um partido contrário à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo, e rejeita a imensa maioria das leis que constituem a institucionalidade que emana da ordem burguesa capitalista, ordem que o partido justamente procura destruir”, conforme circular do Diretório Nacional do PT.Entende-se essa atitude.Em dezembro de 1987, nas Resoluções Políticas do V Encontro Nacional, o PT propusera como objetivo político “a liquidação da burguesia como classe”, que “compreende a liquidação de suas organizações civis e de seu Estado” como prelúdio para “um Governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto um Governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária” (Resoluções n.º 50 e 75).

Ao longo de duas décadas de existência o Partido dos Trabalhadores empreendeu um crescimento eleitoral continuado, sem qualquer reversão intermitente e a uma taxa superior ao crescimento do número de votantes, sobretudo no Sudeste e no Sul e, em particular, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Entretanto, durante todo esse tempo, suficiente para explicar-lhe a expansão eleitoral, não conseguiu desvencilhar-se de suas origens ideológicas: o leninismo, o trotskismo e o cristianismo quiliástico. Não renunciou inequivocamente à sua pretensão de partido confessional, portador e revelador de uma teoria única, unívoca e omnicompreensiva acerca da sociedade e do futuro. Não se desfez dos métodos conspiratoriais e insurrecionais de luta política. Ao contrário, possui um braço armado – o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) – que trava, no campo, a guerra de posição, com o estilo de um fascismo vermelho.Três são as mais importantes entre as diferentes tendências internas do PT. A Articulação, de Luiz Inácio da Silva, Olívio Dutra, José Dirceu e Eduardo Suplicy, reúne sindicalistas históricos e social-democratas, padres e leigos da Igreja progressista e comunistas do PCB e do PC do B, votando a favor do Projeto Final e da assinatura da Constituição. A Nova Esquerda, de José Genoíno e Tarso Genro, intelectuais revolucionários marxistas-leninistas-maoístas que, dissidentes do PC do B, se haviam organizado no Partido Revolucionário Comunista (PRC), votou contra o Projeto Final mas a favor da assinatura da Constituição. E, finalmente, a Democracia Socialista, organização trotskista vinculada à Quarta Internacional Comunista, da qual fazem parte Raul Pont, Miguel Rosseto, Paulo Torelly, João Verle e o ex-comandante da Brigada Militar (a PM gaúcha), Roberto Ludwig, é a tendência mais coerentemente revolucionária do partido: opôs-se ao Projeto Final e à assinatura da Constituição.No Rio Grande do Sul, eleito para o governo em segundo turno, numa competição equilibrada, por diferença diminuta, e contando com menos de um terço das cadeiras da Assembléia Legislativa, o PT se comporta com a arrogância própria de quem obteve a vitória numa revolução armada.

Enquanto os diferentes partidos comunistas europeus movimentam-se claramente em direção à social-democracia, retendo do comunismo apenas o halo nostálgico, o PT continua a perceber-se não apenas como um partido monoclassista mas como o representante presumido dos interesses que predica aos trabalhadores e como portador e revelador de uma teleologia histórica imanente capaz de conduzi-los, através de infindáveis lutas de classes, à construção de uma ordem social final e ideal.Ao crescer em eleitorado e em organização o PT distanciou-se progressivamente do sindicalismo industrial do ABC, no seio do qual se constituíra, não para converter-se à idéia da democracia parlamentar, mas para adotar uma perspectiva política corporativista, patrimonialista e estatizante, própria das classes médias clientelísticas, tributárias do emprego público e do setor estatizado da economia.Num artigo publicado em março de 1989, “A composição social das lideranças do PT”, Leôncio Martins Rodrigues definiu-o como “um partido de classe média assalariada, notadamente de profissionais liberais e outras profissões intelectuais, sendo minoritária tanto a proporção de trabalhadores manuais como a de membros das classes altas, e praticamente inexistente a de proprietários (pequenos, médios ou grandes)”.

Com a rápida e profunda liquidação do setor público da economia e com a deterioração da educação e do serviço públicos, que se operaram ao longo dos anos 90, essas classes médias forma submetidas à dolorosa erosão dos fundamentos do seu modo de vida, tornando-se ainda mais sensíveis e receptivas aos apelos do voluntarismo revolucionário insurrecional contido na simbiose de leninismo e trotskismo que parecia ter sido deixada de lado. Como conseqüência, o pragmatismo sindicalista inicial, que poderia ter cedido lugar à política social-democrática, foi substituído, no comportamento do PT, por uma versão nativa da estratégia da dualidade de poder, originariamente concebida por Trotski e Lenine: ao ocuparem o Estado pela via das eleições e do emprego público, os quadros daquele partido buscam a fragilização e, logo, a destruição revolucionária da ordem político-institucional burguesa, pressionando-a por dentro e de cima, pela via da representação parlamentar e da ocupação de governos (federal, estadual e municipal), e ao mesmo tempo por fora e de baixo, por obra da hegemonia que detêm, através da militância, sobre a participação política popular.

Entretanto, precisamente porque se situou no coração da concepção teleocrática da política e da concepção totalitária da democracia, o Partido dos Trabalhadores atraiu para si, explorando-as, algumas variedades telúricas de cristianismo. Engels, Kautski, Bloch e os historiadores marxistas, em geral, haviam concluído que a religião – que Marx percebera como ópio do povo – convertera-se, com o cristianismo quiliástico, numa poderosa fonte de excitação revolucionária. Nos anos 80, os trotskistas, leninistas e sindicalistas revolucionários que fundaram, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores, deram-se conta imediatamente de que a imagem quiliástica da realização terrena do Reino de Deus e da Justiça, difundida pelo clero católico das pastorais da terra e das comunidades eclesiais de base, teria a propriedade de ativar, entre os despossuídos do campo e da cidade, uma compulsão psicossocial e uma energia ilimitada para a guerra revolucionária.A síntese do quiliasmo das pastorais da terra encontra-se em Frei Betto. “A salvação”, afirma, “não é alguma coisa que se restrinja ao outro mundo ou a outra vida. Ela começa a se efetuar aqui, onde o Reino de Deus já se fez presente em Jesus e permanece entre os povos. No tecido da história, a salvação de Deus se traduz em libertação dos homens. Não basta uma libertação pessoal e interior do homem, que não transforme as estruturas eivadas de pecado em que ele vive e pelas quais se sente condicionado. Por isso esta libertação tem necessariamente um alcance político, dentro de um contexto econômico e social”.

Mas Frei Betto vai muito além do quiliasmo medieval ao propor que “do trabalho de organização popular feito em torno das comunidades eclesiais de base é necessário passar à mobilização política centrada num instrumento de representação dotado de uma proposta programática menos genérica que a da pastoral e mais imediatamente vinculada à mudança de poder na sociedade. Esse instrumento é o partido político, conduto entre a sociedade civil e a sociedade política – o aparelho de Estado”.

Num livro sobre Fidel Castro, o frade reproduz com aprovação entusiasmada a sentença do ditador, segundo o qual “os ensinamentos de Cristo são altamente revolucionários e coincidem totalmente com o objetivo de um socialista, de um marxista-leninista”. Não se trata apenas do equívoco cômico de um sacerdote tão despreparado quanto atrevido. Ao contrário, pronunciamentos dessa natureza tiveram um papel político importante. Graças ao envolvimento do clero católico progressista o PT conseguiu emergir do enclave sindicalista do ABC, no qual esgotara toda a sua possibilidade, nacionalizando a sua base eleitoral e expandindo-a às classes médias.

Os motivos em virtude dos quais o PT concorre às eleições sem um programa específico de governo são bem m ais profundos do que freqüentemente se supõe. Num documento de 1980, contraditoriamente intitulado “Pontos para a Elaboração do Programa”, esse partido reconheceu que, a rigor, “nem pode nem deve ter um programa de governo para quando chegue ao poder porque a proposta do PT não é administrar o capitalismo e suas crises supostamente em nome da classe trabalhadora”.

Em texto publicado na revista oficial do partido – Teoria e Debate – o então coordenador do Plano de Ação Governamental de Luiz Inácio da Silva admitiu que o PT ainda não resolvera a “questão crucial de saber se o programa estaria voltado para assegurar a governabilidade, para ser cumprido de fato e atingir os objetivos de governo, ou se seria um programa sabidamente irrealizável, que apenas ajudaria a mobilizar as massas e preparar o governo e os trabalhadores para a ruptura que inevitavelmente iria acontecer.”Do ponto de vista do PT, a idéia de um programa de governo é contraditória porque os seus objetivos não são realizáveis por meios governamentais mas apenas por meios revolucionários. Em outros termos, porque não possui objetivos de governo mas de revolução.É esse fenômeno mais profundo que explica o fato de que, quando no governo, como no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (e outras situações), o Partido dos Trabalhadores parece movido, em seu núcleo organizacional e ideológico, por uma compulsão interna irresistível para a ação extraconstitucional, para a violação sistemática da Constituição e das Leis e para o desprezo pela representação legislativa e pelas decisões do Poder Judiciário. Nos caso em que, eleito pelo PT, o governo dele se autonomiza ou distancia, inaugura-se um conflito impredictível entre um e outro.

No PT, tão importante quanto as seitas em que se divide é o enfrentamento interno recorrente e com desfechos sempre imprevisíveis entre a frente parlamentar, socializada pelo convívio com as instituições políticas, para o comportamento constitucional, e o aparato autoritário da organização, refratário à democracia”.

(José Giusti Tavares – O Totalitarismo Tardio)

domingo, 13 de setembro de 2009

LIÇÃO DE HISTÓRIA BRASILEIRA: "O assassino chamado Clemente era da Paz no sobrenome"

(Publicado no blog do Augusto Nunes, em 12/09/2009)

"Ele chegou da rua no começo da noite, hasteou-se diante do irmão mais velho sentado na poltrona da sala, esperou a pausa na leitura do jornal e recitou: “Fiz a minha opção político-ideológica definitiva. Sou marxista-leninista.” Desconcertou-se ao notar que a expressão do primogênito exibia a placidez de quem ouvira o caçula avisar que estava de saída para tomar algumas no bar da esquina.
“Você já leu muita coisa sobre isso?”, perguntou em tom displicente o alvo da notícia formidável. “Li o necessário”, mentiu naquele outubro de 1968 o estudante de 19 anos que, em janeiro, trocara a cidade interiorana pelo Rio para cursar a Faculdade Nacional de Direito. “Não vai mais piorar a imagem do Brasil no Exterior?”, quis saber o irmão com um sorriso de Mona Lisa.
Pelo projeto original, a faculdade era só a primeira escala na trajetória que o levaria ao Instituto Rio Branco, depois ao Itamaraty e, se Deus ajudasse, à embaixada do Brasil em Paris. Com cara de ofendido, avisou que não queria nada com a aristocracia decadente, nem com a burguesia emergente. “O dever de um revolucionário é fazer a revolução e não tenho dúvidas sobre o que devo fazer na vida”, resumiu.
“Que bom!”, ouviu. “Tudo o que eu queria era ter menos de 20 anos e nenhuma dúvida. Estou com 25 e cheio delas”. Ambos em silêncio, só o caçula escutou o estrondo das interrogações soterrando o poço de certezas inaugurado horas antes. As 19 palavras induziram o revolucionário de 19 anos a passar quatro ou cinco dias flagelando-se com perguntas. As respostas o aconselharam, no fim de 1969, a recusar a adesão à luta armada. Só por isso não enveredou pela trilha à beira do penhasco.
Quem começasse a percorrê-la, constatou-se na virada da década, teria de avançar até a chegada - ainda que não houvesse chegada. Quem tentasse desviar-se do caminho ou propor mudanças de rota estaria exposto aos castigos reservados pelo código penal da luta armada aos traidores, vacilantes ou desertores. Os julgamentos eram sempre sumários e os jovens, assombrosamente severos.
Márcio Leite de Toledo tinha 19 anos quando foi enviado a Cuba pela Aliança Libertadora Nacional, para fazer um curso de guerrilha. Ao voltar em 1970, tornou-se um dos cinco integrantes da Coordenação Nacional da ALN. Também com 19 anos, lá já estava Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz. Em outubro, durante uma reunião clandestina, o quinteto de generais soube do assassinato de Joaquim Câmara Ferreira, que em novembro do ano anterior substituíra o chefe supremo Carlos Marighela, fuzilado numa rua de São Paulo. Márcio propôs uma pausa na guerra antes que fossem todos exterminados.
Não era a primeira vez que divergia dos companheiros, lembrou Carlos Eugênio. Desconfiado, decidiu que algo havia por trás daquilo. Em duas horas, convenceu-se de que o dissidente estava prestes a traí-los e entregar à polícia o muito que sabia. Em dois dias, convenceu o restante da cúpula a subscrever a dedução. Com o endosso dos companheiros, montou o tribunal revolucionário, propôs a sentença de morte e ajudou a executá-la.
Convidado para uma reunião de rotina com os carrascos, Márcio saiu para o encontro com a morte, no centro de São Paulo, no fim da tarde de 23 de março de 1971. Antes de sair do apartamento onde se escondia, o condenado escreveu que “nada o impediria de continuar combatendo”. Não podia imaginar que seria impedido por oito tiros.
O assassino hoje sessentão admite que o crime foi “um erro”, mas não se arrepende do que fez. Na guerra, explica o justiceiro, coisas assim acontecem. Depois do crime, ele se tornou muito respeitado pelos companheiros, que o conheciam pelo codinome talvez sugerido pelo Paz do sobrenome: Clemente.
Neste fim de semana, o ministro Tarso Genro voltou a defender a revisão da Lei da Anistia. Os parentes de Márcio Leite de Toledo, que vivem em Bauru, esperam que seja efetivamente ampla, geral e irrestrita. Tarso divide o Brasil dos anos 70 entre comparsas da ditadura e heróis da resistência, Como nunca abriu a boca sobre o caso, não se sabe se o jovem assassinado figura na ala dos sergios fleurys ou no bloco dos cesares battistis. Carlos Eugênio é companheiro, claro. Tem todos os atributos necessários para envelhecer em sossego numa assessoria especial do Ministério da Justiça".