"Quem poderia imaginar que na quarta campanha
presidencial posterior ao aparecimento do cadáver do prefeito de Santo André
licenciado para coordenar o programa de governo da candidatura vitoriosa de
Luiz Inácio da Silva, do PT, o fantasma de Celso Daniel deixaria o limbo para
assombrar seus companheiros? E, pelo visto, o espírito vindo do além não se
limitou a puxar o dedão do pé de uns e outros em sono solto, mas deixou-os a
descoberto em pleno inverno. Para sorte deles, este inverno não tem sido tão
gélido assim. Mas a alma é fria que só. E como é!
Sábado, em reportagem assinada por Andreza Matais,
de Brasília, e Fausto Macedo, este jornal noticiou que a Polícia Federal (PF)
apreendeu no escritório da contadora Meire Poza, que prestou serviços ao
famigerado doleiro Alberto Youssef, contrato de empréstimo de R$ 6 milhões. O
documento, assinado em outubro de 2004, reconhece dívida de tal valor, a ser
paga em prestações em 2004 e 2005 pelas empresas Expresso Nova Santo André e
Remar Agenciamento e Assessoria à credora, a 2S Participações Ltda. A primeira
pertence a Ronan Maria Pinto, empresário do ABC e personagem do sequestro e
morte de Celso Daniel, cujo cadáver foi encontrado no mato em Itapecerica da
Serra em janeiro de 2002. A 2S pertencia ao publicitário mineiro Marcos Valério
Fernandes de Souza, condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por formação
de quadrilha, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, peculato e evasão de
divisas a pena de 37 anos, quatro meses e seis dias e multa de R$ 3,062
milhões.
O elo encontrado pelos federais entre o assassinato
do principal assessor de Lula na campanha presidencial de 2002, o escândalo de
corrupção do mensalão e as denúncias apuradas na Operação Lava Jato,
protagonizadas pelo doleiro acusado de lavar R$ 10 bilhões de dinheiro sujo,
estava numa pasta identificada como "Enivaldo" e
"Confidencial". A PF supõe que este seja Enivaldo Quadrado, condenado
no mensalão.
A investigação em que o juiz federal Sérgio Moro
encontrou provas suficientes para mandar prender o ex-diretor da Petrobrás
Paulo Roberto Costa, que substituiu Sérgio Gabrielli na presidência da empresa
24 vezes, apurou que a corretora Bônus Banval não era de Enivaldo Quadrado,
mas, sim, de Alberto Youssef. Costa, que o ex-presidente Lula, conforme testemunhos
citados no noticiário do escândalo, chamava de Paulinho e teria oferecido ajuda
nas investigações em troca de alívio na pena (pelo visto, ele conta até com a
eventual liberdade), tem sido motivo de aflição de gente poderosa na República,
temendo que suas revelações cheguem a comprometer a realização das eleições
gerais de outubro.
O que já se sabe sem sua ajuda é grave. E a entrada
em cena do espectro de Celso Daniel - que não é Hamlet, mas já expôs parte
considerável da podridão que reina nestes tristes trópicos -, se não alterar o
calendário eleitoral, abalará significativamente a imagem de vários figurões
que disputam o posto mais poderoso de nossa velha e combalida República.
Em depoimento ao Ministério Público (MP) em
dezembro de 2012, também revelado pelo Estado, Valério, chamado pejorativamente
de "carequinha" pelo delator Roberto Jefferson, seu colega no banco
dos réus do mensalão, contou que dirigentes do PT lhe pediram R$ 6 milhões a
serem destinados ao empresário Ronan Maria Pinto. Conforme o depoente, o
dinheiro serviria para calar Ronan, que estaria chantageando Lula, o secretário
da Presidência, Gilberto Carvalho, e o então chefe da Casa Civil de Lula, José
Dirceu. Gilberto Carvalho, conforme se há de lembrar quem ainda não perdeu a
memória, tinha sido secretário de Celso Daniel e foi acusado pelos irmãos deste
de transportar malas com as propinas cobradas de empresários de ônibus em Santo
André para Dirceu, à época presidente do PT.
De acordo com a reportagem do Estado no sábado, há
20 meses "o PT não se manifestou oficialmente, mas dirigentes declararam
que ele não merecia crédito". Com a descoberta do documento, contudo,
parte da versão de Valério - a que se refere à "dívida", embora não
se possa afirmar o mesmo em relação ao motivo desta - deve ter passado a
merecer crédito, se não do PT, ao menos da PF. Crédito similar, por exemplo, ao
dado pelo partido no poder federal ao chamado "operador do mensalão"
quando o mineirinho emergiu como o gênio do esquema de distribuição de dinheiro,
que o relator do processo no STF, Joaquim Barbosa, desvendou de maneira lógica
e implacável.
O documento assinado por Valério nos papéis da
contadora do doleiro acaba com qualquer dúvida, se é que alguém isento e de
boa-fé possa ter tido alguma, de que nada há a imputar de político ou fictício
à condenação de Dirceu, Valério, José Genoino e outros petistas de escol a
viverem parte de sua vida no presídio da Papuda, em Brasília. Isso bastaria
para lhe garantir a condição de histórico no combate à corrupção. Mais valor
terá se inspirar o MP estadual a exigir da Polícia Civil paulista uma
investigação mais atenta e competente sobre a morte de Daniel.
Ao expor a conexão entre o assassinato do prefeito,
a compra de apoio ao governo Lula e a roubalheira desavergonhada na Petrobrás,
a dívida contraída por Ronan põe em xeque todos quantos, entre os quais
ministros do Supremo, retiraram a "formação de quadrilha" da lista de
crimes cometidos por vários réus do mensalão. Negar a prática continuada por
mais de dez anos de um delito em bando formado pelos mesmos personagens
conotaria cinismo e até cumplicidade.
A delação de Paulo Roberto merecerá um prêmio, sim,
se ele for capaz de informar quem são os verdadeiros chefões nos três delitos.
Acreditar que possam ser um menor da favela, um publicitário obscuro e um
doleiro emergente seria como nomear Papai Noel ministro dos Transportes."
(José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor)