quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A REDE CEGONHA DO BRASIL MARAVILHA - por Celso Arnaldo


O jornalista Celso Arnaldo Araújo viu a notícia no Jornal Nacional. E traduziu num texto irretocável a reação dos brasileiros decentes. Confiram:


"Raimundo Cícero e Vanessa do Socorro pagaram muito caro – duas vidas perdidas antes do primeiro choro, duas outras vidas devastadas pelo choro que será eterno. Só porque não tiveram a iniciativa de recorrer à cegonha reinventada por Dilma nos laboratórios do Brasil Maravilha, em vez de baterem à porta da Santa Casa de Misericórdia do Belém do Pará, na madrugada de ontem.

Grávida de gêmeos e portadora de lúpus, uma complexa doença autoimune, Vanessa fazia questão de seguir à risca a rigorosa rotina de controle da gestação recomendada pelos médicos da própria Santa Casa, onde fazia seu pré-natal. Era uma gravidez de duplo risco: pela moléstia de base e pela gemelaridade.

O casal estava ciente de que os bebês poderiam nascer antes da hora – e a faixa de maior risco era justamente por volta das 32 semanas atuais. Vanessa estava bem e, dadas as circunstâncias, os gêmeos até que se desenvolviam a contento, a esta altura talvez já fossem viáveis com um atendimento adequado – nos últimos anos, a neonatologia fez progressos notáveis em relação a prematuros, se o pré-natal é bem feito e o parto é seguido de cuidados intensivos.

Às 2 horas daquela madrugada, as primeiras pontadas — que às 3 haviam se tornado menos espaçadas e mais violentas. Podia ser a hora. Mas, mesmo se não fosse, Vanessa precisaria do socorro que seu nome chamava. Às 3 e pouco, Raimundo amparou-a em direção ao ponto de ônibus. Do distrito de Outeiro, periferia de Belém, ao centro da capital, foi uma hora e meia de terra batida, na melhor das hipóteses. É possível – sim, é possível – que a viagem tenha agravado as condições da gestação e aumentado o risco dos gêmeos.

Mas, da mesma maneira que entrada de pronto-socorro é o lugar mais perigoso do Brasil para marginais que se confrontam com a polícia – porque quase todos morrem, nos boletins de ocorrência, ao “darem entrada no pronto-socorro” – a entrada da Santa Casa de Misericórdia de Belém do Pará seria o lugar mais perigoso da face da Terra para os gêmeos de Vanessa e Raimundo. Estava amanhecendo em Belém – mas eles nunca veriam seus primeiros raios de luz.

“TUDO LOTADO”

À porta do hospital, o desespero do casal, ele em prantos, ela em dores, não convenceu o porteiro. Não podia deixar mais ninguém entrar porque estava “tudo lotado”, ordem dos médicos. Foi lá dentro confirmar e voltou com a mesma resposta: porteira fechada. Raimundo e Vanessa tinham ido em busca de uma “boa hora” para seus bebês. Era, porém, uma má hora para a Santa Casa. Quando uma maternidade de alto risco, de qualquer lugar do mundo, nega atendimento a uma paciente sua em trabalho de parto de gêmeos, há algo de profundamente errado – profundamente doentio.
O casal se dirigiu então, provavelmente de ônibus, ao Gaspar Viana, hospital da rede pública de Belém, em outro bairro da capital. Na porta, ouviu a mesma explicação dos guardiões da saúde. Não há vagas. E agora, Raimundo? A incerteza e a desesperança consumiram mais uma hora e meia da vida dos gêmeos – foi o tempo que o casal ficou na calçada, atônito. Mas o quadro de Vanessa se agravou, o serviço de resgate dos bombeiros foi acionado. Ciente do impasse, os soldados assumiram uma questão de honra: voltar à Santa Casa com a gestante — para isso, requisitaram uma viatura-ambulância. Parecia óbvio: na Santa Casa, Vanessa já tinha ficha com seu histórico médico, a lotação seria apenas um detalhe a ser superado, de qualquer jeito, numa circunstância tão dramática.

No interior da ambulância, e em frente à Santa Casa, enquanto os bombeiros intercediam pelo atendimento emergencial, a bolsa de água estourou. Um dos bebês nasceu – morto. Mas havia o segundo. Sob a pressão dos bombeiros, a equipe de plantão enfim permitiu a entrada de Vanessa – mas também não conseguiu salvar o irmão gêmeo do primogênito natimorto. Raimundo, auxiliar de cozinha, aos prantos: “Meus filhos morreram do lado de fora do hospital por falta de atendimento. Bateram a porta na nossa cara. Depois que meu filho morreu, fiquei desesperado e entrei. Tinha 15 médicos lá dentro”.

Um desses médicos, a obstetra Cynthia Lins, recebeu voz de prisão de um dos indignados bombeiros. Depois de prestar depoimento, foi solta. Na saída, com o cinismo próprio de funcionários públicos com estabilidade, negou ter havido a omissão que os fatos gritantes demonstram, sem necessidade do “rigoroso inquérito” de praxe. Os bebês podem até ter chegado mortos ao hospital da primeira vez — mas só um obstetra poderia atestar isso. E só um médico teria chance de salvá-los, se houvesse essa chance. A omissão de socorro é sempre potencialmente fatal, em princípio e por princípio.

Mas não foi omissão, repete a médica, foi excesso de gente: “Superlotação que nós se encontramos no momento”, afirmou ela ao Jornal Nacional, com uma gramática que nos soa familiar, quando comparada a uma declaração ouvida semana passada, durante a inauguração de uma unidade de saúde no interior do Ceará, naquele estilo já inconfundível:

“A Rede Cegonha é um tratamento da mãe antes do parto, durante a gravidez, no parto e depois no pós-parto, o tratamento da mãe e da criança. Em todas as fases, a gente olha duas pessoas que são essenciais para a saúde do povo brasileiro: a mãe a criança”.

Raimundo e Vanessa não devem ter escutado o discurso presidencial. Se tivessem ouvido, e conseguissem atravessar essa sequência de ideias tão tortuosa, achariam que a dona Cegonha que presta serviços ao Brasil Maravilha – ao contrário dos maus médicos de Belém, já afastados pelo governador Simão Jatene, e, de resto, do tenebroso serviço de saúde pública do Brasil Real — olharia com todo carinho para as duas pessoas mais essenciais da vida de Raimundo e Vanessa."

(Publicado no blog do Augusto Nunes, em 24-08-2011)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Tópicos de discussão: "Sociedade em Rede"

A Sociedade em Rede: do Conhecimento à Política - Manuel Castells


Aspectos Políticos-Chave na Sociedade em Rede


“As pessoas, os actores sociais, as empresas, os políticos, não têm que fazer nada para atingir ou desenvolver a sociedade em rede. Nós estamos na sociedade em rede, apesar de nem todos, nem todas as coisas estarem incluídas nas redes. Assim, do ponto de vista político, a questão-chave é como proceder para maximizar as hipóteses de cumprir os projectos individuais e colectivos expressos pelas necessidades sociais e pelos valores, em novas condições estruturais. Por exemplo, uma cobertura total de comunicação digital em redes de banda larga, por cabos ou sem fios, é certamente um factor condicionante para os negócios poderem trabalhar dentro de um modelo de redes de empresas ou para a formação virtual ao longo da vida, um aspecto essencial numa organização social baseada no conhecimento. Contudo, a introdução da tecnologia só por si não assegura nem a produtividade, nem a inovação, nem melhor desenvolvimento humano.

Quando, no ano 2000, a União Europeia aprovou uma estratégia conhecida como a Agenda de Lisboa, para acompanhar os EUA em termos de competitividade económica, enquanto fortalecia o modelo social europeu, a ênfase foi colocada principalmente na actualização tecnológica e no melhoramento das capacidades de pesquisa. A infra-estrutura tecnológica europeia melhorou consideravelmente, mas os efeitos na produtividade, na formação, na criatividade e na iniciativa empresarial, foram muito limitados. Isto aconteceu porque agir no desenvolvimento potencial específico da sociedade em rede necessita da combinação de iniciativas em sectores como a tecnologia, os negócios, a educação, a cultura, a reestruturação espacial, o desenvolvimento de infra-estruturas, a mudança organizacional e a reforma institucional. É na sinergia entre estes processos que as acções têm capacidade de mudar os mecanismos da sociedade em rede.

Com esta perspectiva em mente, e observando a experiência europeia e internacional nos primeiros anos do século XXI, alguns aspectos parecem ser condicionantes para o desenvolvimento da produtividade, da criatividade e da equidade numa sociedade em rede. Por outras palavras, as políticas que apoiaram estas estratégias parecem caminhar para políticas-chave a fim de deliberadamente melhorarem o bem-estar humano num novo contexto histórico. De modo muito selectivo e certamente subjectivo, uma vez que abandono a apresentação de pesquisas para entrar no debate político, aqui está o que eu considero factores-chave:

• O sector público é actualmente o actor decisivo para desenvolver e moldar a sociedade em rede. Indivíduos inovadores, comunidades contraculturais e empresas de negócios, já fizeram o seu trabalho ao inventar uma nova sociedade e ao difundi-la por todo o mundo. A moldagem e a condução desta sociedade está, como esteve sempre no caso das outras, nas mãos do sector público, apesar do discurso ideológico que pretende esconder esta realidade. Contudo, o sector público é a esfera da sociedade em que as novas tecnologias de comunicação estão menos difundidas e os obstáculos à inovação e ao funcionamento em rede são mais pronunciados. Assim, a reforma do sector público comanda tudo o resto, no processo de moldagem produtiva da sociedade em rede. Isto inclui a difusão da e-governança (um conceito mais vasto do que o governo electrónico porque inclui a participação dos cidadãos e a tomada de decisões políticas); e-saúde, e-formação, e-segurança, etc.; e um sistema de regulação dinâmica da indústria de comunicação, adaptando-se aos valores e necessidades da sociedade. Todas estas transformações requerem a difusão da interactividade, multiplicando as redes em função da forma organizacional do sector público. Isto é equivalente a uma reforma do Estado. De facto, o modelo burocrático racional do Estado da Era Industrial está em completa contradição com as exigências e os processos da sociedade em rede.

• Na base de todo o processo de mudança social está um novo tipo de trabalhador, o trabalhador autoprogramado, e um novo tipo de personalidade, fundada em valores, uma personalidade flexível capaz de se adaptar às mudanças nos modelos culturais, ao longo do ciclo de vida, porque tem capacidade de dobrar sem se partir, de se manter autónoma mas envolvida com a sociedade que a rodeia. Este inovador ser humano produtivo, em plena crise do patriarcalismo e da família tradicional, requer uma reconversão total do sistema educativo, em todos os seus níveis e domínios. Isto refere-se, certamente, a novas formas de tecnologia e pedagogia, mas também aos conteúdos e organização do processo de aprendizagem. Tão difícil como parece, as sociedades que não forem capazes de lidar com estes aspectos irão enfrentar maiores problemas sociais e económicos, no actual processo de mudança estrutural. Por exemplo, uma das grandes razões para o sucesso do Modelo Finlandês na sociedade em rede reside na qualidade do seu sistema educativo, em contraste com outras zonas do mundo. Outro exemplo são os EUA, onde uma grande parte da população está alheada do sistema de gestão do conhecimento, largamente gerado no seu próprio país. A política educacional é central em todos os aspectos. Mas não é qualquer tipo de educação ou qualquer tipo de política: educação baseada no modelo de aprender a aprender, ao longo da vida, e preparada para estimular a criatividade e a inovação de forma a — e com o objectivo de — aplicar esta capacidade de aprendizagem a todos os domínios da vida social e profissional.

• O desenvolvimento global permite hoje em dia, em grande medida, aos países e às suas populações a possibilidade de funcionar produtivamente na economia global e na sociedade em rede. Isto implica a difusão de tecnologias de informação e comunicação, por todo o mundo, para que as redes cheguem a todo o lado. Mas também implica a produção de recursos humanos necessários para operar neste sistema, e a distribuição de capacidade de gerar conhecimento e informação para a gestão. O novo modelo informacional de desenvolvimento redefine a condição de crescimento partilhado no mundo. De facto, centenas de milhares de pessoas têm beneficiado da competição global motivada pelo dinamismo destas redes. Áreas consideráveis da China, Índia, Leste e Sudeste Asiático, Médio Oriente e algumas zonas da América Latina (o Chile, certamente, mas também algumas regiões de outros países) estão agora integradas produtivamente na rede da economia global. Porém, estão mais pessoas desligadas destas redes do que as que estão incorporadas. A segmentação global da sociedade em rede, precisamente por causa do seu dinamismo produtivo, está a colocar uma parte significativa da humanidade em condições de irrelevância estrutural. Não é apenas a pobreza, é que a economia global e a sociedade em rede trabalham mais eficientemente sem centenas de milhares de coabitantes deste planeta. Temos, assim, a maior das contradições: quanto mais desenvolvemos a elevada produtividade, os sistemas de inovação da produção e da organização social, menos precisamos de uma parte substancial de população marginal, e mais difícil se torna para esta população acompanhar esse desenvolvimento. A correcção deste processo de exclusão massivo requer uma política pública internacional, concertada, que actue nas raízes do novo modelo de desenvolvimento (tecnologia, infra-estruturas, educação, difusão e gestão do conhecimento), em vez de simplesmente providenciar a satisfação das necessidades, que surgem da exclusão social, sob a forma de caridade.


• Criatividade e inovação são os factores-chave da criação de valor e da mudança social nas nossas sociedades — ou melhor, em todas as sociedades. Num mundo de redes digitais, o processo de criatividade interactiva é contrariado pela legislação relativa a direitos de propriedade, herdados da Era Industrial. Muitas vezes, devido a grandes empresas terem criado a sua riqueza e poder graças ao controlo desses direitos de propriedade, apesar das novas condições de inovação, empresas e governos estão a tornar a comunicação da inovação ainda mais difícil do que era no passado. A «caça» da inovação, por um mundo de negócios intelectualmente conservador, pode muito bem travar as novas ondas de inovação das quais a economia criativa e o sistema redistributivo da sociedade em rede dependem ainda mais a um nível planetário, conforme os direitos de propriedade intelectual se tornam um factor-chave para os que só agora chegaram à competição global. Acordos internacionais para a redefinição dos direitos de propriedade intelectual, que começaram com a já enraizada prática do software de fonte aberta, são fundamentais para a preservação da inovação e para a dinamização da criatividade das quais depende o progresso humano, antes e agora.


Dilemas do Nosso Tempo: Criatividade versus Capitalismo de Rendimentos;
Democracia da Comunicação versus Controlo Político

Neste início do século XXI estamos numa encruzilhada do desenvolvimento da sociedade em rede. Estamos a testemunhar uma crescente contradição entre relações sociais tradicionais de produção e a potencial expansão de forças produtivas formidáveis. Esta pode ser a última contribuição da teoria marxista clássica. O potencial
humano envolvido em novas tecnologias de comunicação e de genética, em redes, em novas formas de organização social e de invenção cultural, é verdadeiramente extraordinário. Contudo, sistemas sociais existentes travam a dinâmica da criatividade e, se desafiados pela competição, tendem a implodir. Foi este o caso do sistema estatista da União Soviética (Castells e Kiselyova, 1995). Agora, o capitalismo de rendimentos do tipo da Microsoft parece estar a bloquear o desenvolvimento de uma nova fronteira de expansão e inovação em contraste com outros modelos de negócio do capitalismo, como por exemplo, a recém-nascida IBM. Assim, a reforma do capitalismo também é possível neste domínio, incluindo novos modelos de direitos de propriedade intelectual, e a difusão de um desenvolvimento tecnológico que responda às necessidades humanas de todo o planeta. É por isso que a questão dos direitos de propriedade intelectual, ou direitos de autor, é tão importante em termos estratégicos. Mas há ainda outra coisa: a emergência de comunicação sem obstáculos e auto-organização ao nível sociopolítico, ultrapassando a mediação do sistema de media e desafiando a política formal. Este foi o caso das campanhas políticas de revolta, como a campanha de Howard Dean, nos EUA em 2003-2004, ou das mentiras de José Maria Aznar sobre o terrorismo, expostas por milhares de jovens espanhóis, telemóbilizados com os seus telemóveis, e levando à derrota eleitoral dos conservadores espanhóis em Março de 2004. É por isso que de facto os governos são ambíguos em relação aos usos da Internet e das novas tecnologias. Eles apreciam os seus benefícios, porém temem perder o controlo da informação e da comunicação em cujo poder sempre se apoiaram. Aderindo à democracia da comunicação concorda-se com a democracia directa, algo que nenhum estado aceitou ao longo da história. Admitir o debate para redefinir os direitos de propriedade acerta em cheio no coração da legitimidade capitalista. Aceitar que os utilizadores são produtores de tecnologia desafia o poder do especialista. Então, uma política inovadora, mas pragmática, terá de encontrar o meio caminho entre o que é social e politicamente exequível, em cada contexto, e a promoção das condições culturais e organizacionais para a criatividade na qual a inovação, o poder, a riqueza e a cultura se alicerçam, na sociedade em rede”.

Tradição hebraica e Bill Gates

(O texto abaixo é de autoria do Rabino Nilton Bonder)



WINDOWS 1742 – Bill Gates e Ba’al Shem Tov


“Ein chadash tachat ha-shamesh … ou não há nada de extraordinariamente novo sob o sol, diz o Eclesiastes, Aquele-que-sabe. O que há sempre de novo são os aplicativos, a maneira pela qual aquilo que se sabe pode ser colocado a serviço do humano e da humanidade. Quem reconhece sapiência nesta afirmação guarda com carinho seu chumesh (bíblia) e sua mishna (ensinamento dos ancestrais). Lá estão contidos ensinamentos que se reproduzirão com diferentes aplicativos em diferentes eras.

A tradição judaica sempre primou pelo desejo de dar trato à mídia, o meio do qual fazia uso para transmitir sua cultura e herança. A Torá foi transmitida na mais sofisticada mídia da época – a escrita. As Escrituras se utilizavam de letras impressas em pedra e papiro. O hardware, por mais rudimentar, foi explorado ao máximo através do conceito de um texto que diz o que diz e que também diz o que não diz. Inaugurava-se não apenas o texto, mas o comentário. Mais adiante, na feitura do Talmud, a mídia para passagem da tradição ganharia uma fantástica inovação.

Ainda dispondo de hardwares muito semelhantes, o Talmud foi concebido como a primeira página interativa da história humana. Numa daf (página) encontram-se janelas para comentaristas de várias gerações e séculos distintos. Além das opiniões registradas nos tratados em si, os diversos comentários ao redor da página são diálogos entre indivíduos que viveram em épocas distintas, que jamais se encontrariam no mundo físico, mas no mundo virtual que o Talmud estabelecera. Além disso, o rodapé e as margens (tools) de cada folha trazem um cruzamento de informações que torna possível identificar interfaces de um assunto tratado no Talmud com outras fontes do próprio texto talmúdico ou do texto bíblico.

O Talmud representa um trabalho de design gráfico extremamente arrojado que permite a abertura simultânea de várias “telas” (janelas) que se sobrepõem. A mídia aqui permite não apenas o comentário, mas o comentário do comentário. Assim sendo, possibilita acompanhar o próprio processo mental de decifrar e comentar. A euforia de um estudante de yeshivah que se conecta com o Talmud é semelhante à de quem navega hoje pelas redes da internet. Este pode acessar mentes do passado, de várias diferentes épocas, sem sair de sua página. Uma mente pode levar a outra, um assunto a outro... A teia fantástica que se tece deve-se não apenas ao conteúdo do texto, mas à formatação nova que deu uma nova dimensão ao próprio texto.

Se isso não é o bastante, o texto das orações da tradição hebraica foram imaginados de forma ainda mais espetacular. O grande mestre Ba’al Shem Tov fez uma descoberta fantástica no que diz respeito à mídia. Duzentos anos antes de Bill Gates, o Besht (Ba’al Shem Tov) vislumbrou a mídia das “janelas” (Windows). Mesmo não possuindo a mídia (o hardware) que pudesse contemplar visualmente sua idéia, o Besht concebeu uma relação que se deva ter com o texto das orações muito semelhante ao conceito básico do conhecido programa de computação Windows.

Em um de seus ensinamentos sobre a liturgia, o Besht toma o versículo bíblico no qual D’us instrui Noé para a construção da arca. Tsoar ta’assé la-tevah – E farás uma janela em tua arca, é a instrução divina. Tsoar é na verdade uma palavra que aparece uma única vez em toda a Torá. Seu significado é de uma abertura ou de uma janela, como é comumente traduzida. A novidade do Besht, no entanto, fica por conta da palavra tevah – arca. Em hebraico arcaico esta mesma palavra significa “vocábulo”.

O Besht faz então a seguinte leitura: Tsoar ta’assé la-tevah – E abrirás janelas às tuas palavras. Sua explicação é de que D’us secretamente instruía para que aprendêssemos a olhar o teto litúrgico como se por trás de cada palavra, de cada idéia expressa no teto, pudéssemos abrir novas janelas. Essas janelas de que hoje dispomos visualmente através de telas que se superpõem e que é a grande idéia gráfica do programa Windows, foram imaginadas há duzentos anos pelo Besht. Ele com certeza gostaria de ver um sidur (livro de orações) onde cada palavra pudesse ser um site (ponto de teia que irradia para todos os outros pontos), fazendo da mat’bea tefilar, do texto litúrgico, um ponto de partida para todos os cantos do universo – uma conversa com o Criador.

Não sei se é o caso dos descendentes do Ba’al Shem Tov entrarem na Justiça pedindo participações na Microsoft. Mas, com certeza, nós, herdeiros dessa tradição, devemos sentir grande orgulho, não só por nossas ousadias na dimensão do conteúdo mas, também, na dimensão da forma.”

Publicado no livro "Judaísmo para o Século XXI" - de Nilton Bonder e Bernardo Sorj, da Jorge Zahar Editor, em 2001.