terça-feira, 23 de agosto de 2011

Tradição hebraica e Bill Gates

(O texto abaixo é de autoria do Rabino Nilton Bonder)



WINDOWS 1742 – Bill Gates e Ba’al Shem Tov


“Ein chadash tachat ha-shamesh … ou não há nada de extraordinariamente novo sob o sol, diz o Eclesiastes, Aquele-que-sabe. O que há sempre de novo são os aplicativos, a maneira pela qual aquilo que se sabe pode ser colocado a serviço do humano e da humanidade. Quem reconhece sapiência nesta afirmação guarda com carinho seu chumesh (bíblia) e sua mishna (ensinamento dos ancestrais). Lá estão contidos ensinamentos que se reproduzirão com diferentes aplicativos em diferentes eras.

A tradição judaica sempre primou pelo desejo de dar trato à mídia, o meio do qual fazia uso para transmitir sua cultura e herança. A Torá foi transmitida na mais sofisticada mídia da época – a escrita. As Escrituras se utilizavam de letras impressas em pedra e papiro. O hardware, por mais rudimentar, foi explorado ao máximo através do conceito de um texto que diz o que diz e que também diz o que não diz. Inaugurava-se não apenas o texto, mas o comentário. Mais adiante, na feitura do Talmud, a mídia para passagem da tradição ganharia uma fantástica inovação.

Ainda dispondo de hardwares muito semelhantes, o Talmud foi concebido como a primeira página interativa da história humana. Numa daf (página) encontram-se janelas para comentaristas de várias gerações e séculos distintos. Além das opiniões registradas nos tratados em si, os diversos comentários ao redor da página são diálogos entre indivíduos que viveram em épocas distintas, que jamais se encontrariam no mundo físico, mas no mundo virtual que o Talmud estabelecera. Além disso, o rodapé e as margens (tools) de cada folha trazem um cruzamento de informações que torna possível identificar interfaces de um assunto tratado no Talmud com outras fontes do próprio texto talmúdico ou do texto bíblico.

O Talmud representa um trabalho de design gráfico extremamente arrojado que permite a abertura simultânea de várias “telas” (janelas) que se sobrepõem. A mídia aqui permite não apenas o comentário, mas o comentário do comentário. Assim sendo, possibilita acompanhar o próprio processo mental de decifrar e comentar. A euforia de um estudante de yeshivah que se conecta com o Talmud é semelhante à de quem navega hoje pelas redes da internet. Este pode acessar mentes do passado, de várias diferentes épocas, sem sair de sua página. Uma mente pode levar a outra, um assunto a outro... A teia fantástica que se tece deve-se não apenas ao conteúdo do texto, mas à formatação nova que deu uma nova dimensão ao próprio texto.

Se isso não é o bastante, o texto das orações da tradição hebraica foram imaginados de forma ainda mais espetacular. O grande mestre Ba’al Shem Tov fez uma descoberta fantástica no que diz respeito à mídia. Duzentos anos antes de Bill Gates, o Besht (Ba’al Shem Tov) vislumbrou a mídia das “janelas” (Windows). Mesmo não possuindo a mídia (o hardware) que pudesse contemplar visualmente sua idéia, o Besht concebeu uma relação que se deva ter com o texto das orações muito semelhante ao conceito básico do conhecido programa de computação Windows.

Em um de seus ensinamentos sobre a liturgia, o Besht toma o versículo bíblico no qual D’us instrui Noé para a construção da arca. Tsoar ta’assé la-tevah – E farás uma janela em tua arca, é a instrução divina. Tsoar é na verdade uma palavra que aparece uma única vez em toda a Torá. Seu significado é de uma abertura ou de uma janela, como é comumente traduzida. A novidade do Besht, no entanto, fica por conta da palavra tevah – arca. Em hebraico arcaico esta mesma palavra significa “vocábulo”.

O Besht faz então a seguinte leitura: Tsoar ta’assé la-tevah – E abrirás janelas às tuas palavras. Sua explicação é de que D’us secretamente instruía para que aprendêssemos a olhar o teto litúrgico como se por trás de cada palavra, de cada idéia expressa no teto, pudéssemos abrir novas janelas. Essas janelas de que hoje dispomos visualmente através de telas que se superpõem e que é a grande idéia gráfica do programa Windows, foram imaginadas há duzentos anos pelo Besht. Ele com certeza gostaria de ver um sidur (livro de orações) onde cada palavra pudesse ser um site (ponto de teia que irradia para todos os outros pontos), fazendo da mat’bea tefilar, do texto litúrgico, um ponto de partida para todos os cantos do universo – uma conversa com o Criador.

Não sei se é o caso dos descendentes do Ba’al Shem Tov entrarem na Justiça pedindo participações na Microsoft. Mas, com certeza, nós, herdeiros dessa tradição, devemos sentir grande orgulho, não só por nossas ousadias na dimensão do conteúdo mas, também, na dimensão da forma.”

Publicado no livro "Judaísmo para o Século XXI" - de Nilton Bonder e Bernardo Sorj, da Jorge Zahar Editor, em 2001.

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