No dia 24 passado,
terça-feira, às 23h, a Polícia Federal em São Paulo intimou Luis Cláudio Lula
da Silva, filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no escritório de
quem foi feita uma busca e apreensão na segunda-feira, para prestar depoimento
em inquérito policial. A intimação do suspeito deu-se logo após a saída da
residência do pai, que na ocasião comemorava 70 anos de idade.
Segundo consta,
trata-se da terceira fase da operação zelotes, que investiga suposta compra de
medidas provisórias editadas com o fim específico de favorecer montadoras de
veículos. Conforme notícia, “a empresa LFT Marketing Esportivo, do filho caçula
de Lula, recebeu R$ 2,4 milhões de Marcondes & Mautoni, suspeita de
intermediar a venda de uma medida provisória aprovada durante o governo do
petista que isentou montadoras de veículos” [1].
O fato gerou enorme
revolta no ex-chefe do Poder Executivo, que atribuiu a intimação a uma campanha
de ódio e criminalização que dirigem contra a sua pessoa. De sobra, atribuiu ao
ministro José Eduardo Cardoso, cuja saída do Ministério da Justiça defende [2],
ser culpado porque não tem o controle da Polícia Federal.
O inconformismo do
ex-presidente da República merece algumas considerações, via de regra não
tratadas na doutrina. Vejamos.
A primeira delas é
sobre o horário de a polícia intimar alguém. O Código de Processo Penal
(artigos 370 a 372) e o Código de Processo Civil (artigos 234 a 242), tratando
de ações penais e civis, nada dispõem a respeito. Se não é vedada a citação em
horário noturno, fora do domicílio, com maior razão não poderá ser proibida a
intimação policial.
Da polícia não só se
espera como se exige agilidade. Intimações e citações não são recebidas com
alegria, e é comum que oficiais de Justiça, agentes ou investigadores policiais
tenham grande dificuldade em encontrar as pessoas. É mais fácil ter acesso a um
juiz do que a um CEO de uma grande corporação. Portanto, o uso de estratégias
para cumprir os atos faz parte da ação policial e não constitui abuso de
autoridade.
A segunda é a revolta
do ex-presidente contra a investigação dos atos de seus filhos. Do ponto de
vista familiar, a reação é absolutamente justificável. Pais sofrem com o
sofrimento dos filhos. Nesse foco, há que ser dado o desconto, a revolta é
compreensível. No entanto, do ponto de vista de quem é o investigado — filho de
um ex-magistrado supremo da República —, a reação não tem qualquer justificativa.
No regime
democrático, todos são iguais perante a lei. Todos se submetem a ela e por
ela têm garantido o direito de defesa, no momento e local próprios. Os tempos
são outros, empresários de elevado nível social e econômico, políticos, juízes
encontram-se presos, provisória ou definitivamente. Todos sob a garantia do
devido processo legal e não como sucedia no regime militar, por força de uma
prisão de até 60 dias, decretada pela autoridade que presidia o inquérito
policial militar (artigo 59 do Decreto-Lei 898/69).
A terceira observação
diz respeito à cobrança do ministro da Justiça, que não teria o controle da
Polícia Federal. Essa se reveste de gravidade, porque pressupõe interferência
no andamento de investigações. A Polícia Federal, prevista no artigo 144,
inciso I, da Constituição, tem o dever de apurar eventuais crimes praticados
contra a União. Por força do esforço e do valor de seus membros, muito mais do
que por sua estrutura que é deficitária, vem prestando relevantes serviços ao
país. E é a respeitabilidade por ela conquistada que lhe dá ampla independência
para apurar delitos contra pessoas de elevado nível social, político e
econômico.
Supor que um ministro
da Justiça venha a interceder a favor de suspeitos é acreditar no tráfico de
influências como forma de ditar o rumo das investigações. Tal tipo de atitude
certamente submeteria o titular da pasta da Justiça a uma ação de improbidade
administrativa (Lei 8.429/92, artigo 11, incisos I e II), sem prejuízo de
outros reflexos na área penal (v.g., artigo 319 do Código Penal).
Ademais, o ministro
José Eduardo Cardozo é um professor de Direito (PUC-SP), um acadêmico que faz
doutorado na Universidade de Salamanca, Espanha. Em tempos de radicalização e
ódio, é preciso isenção para observar que o ministro tem se conduzido com
correção nas suas complexas e relevantes funções.
Em entrevista, ele
foi claro ao dizer: “Jamais um ministro da Justiça, num Estado de Direito, deve
orientar investigações, dizendo que os inimigos devem ser atingidos e os amigos
poupados” [3]. O fato de ele ter pedido informações à Policia Federal não altera
o quadro, foi mero dever protocolar.
A quarta observação é
que o interesse do ex-presidente deveria ser a total apuração dos fatos. Com
efeito, o sucesso financeiro de seu filho deve ser-lhe motivo de grande
satisfação e orgulho, visto que a maioria dos jovens está lutando por um
emprego de R$ 2 mil. Uma investigação como a que se realiza pode ser a
oportunidade de mostrar a todos que o sucesso foi alcançado legitimamente. Um
atestado oficial de idoneidade.
Finalmente, há que se
registrar que o combate aos crimes econômicos está mudando, no Brasil e no
mundo. O Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações para Fins
Tributários, em reunião em Barbados, com 128 países, promete fechar o cerco.
Avalia-se que “a coleta de dados financeiros começará em 1º de janeiro de 2016
em cerca de 50 jurisdições. Para isso, os governos estão mudando as legislações
nacionais para cada banco reportar as contas de todos os clientes não residentes
e, de forma automática, enviar as informações a partir de 2017 aos países de
origem desses clientes” [4].
Fácil é ver que no
Brasil os órgãos públicos (DPF, MP, Judiciário, Receita Federal, Bacen, TCU,
CGU e outros), se profissionalizam e adquirem conhecimentos profundos sobre a
matéria. Na mudança de paradigma, também a advocacia irá se adaptar aos novos
tempos, a prevenção será a tônica, sendo a orientação especializada o melhor
caminho. Nessa linha, as alegações de nulidade não terão o sucesso do passado.
Por sua vez, a sociedade se mobilizará cada vez mais, inclusive criando
observatórios na internet para acompanhar os recursos nos tribunais, apontando
nomes dos relatores, datas, tempo da demora e resultados dos julgamentos.
Em suma, as instituições
estão mudando, funcionando, ninguém está fora do alcance da lei. Assim,
pretender que alguém não seja investigado por conta de seu parentesco é
inadmissível no atual estágio democrático que atravessa o Brasil.
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[1] Estado de São Paulo, 29.10.2015, A8.
[2] Folha de S.Paulo
30.10.2008, A4.
[3]
http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,se-achar-que-nao-contribuo-mais–sairei–diz-cardozo,1718279,
acesso 28.10.2015.
[4] Valor Econômico,
30.10.2015, A1.
* Publicado na Revista Consultor Jurídico (1° de novembro de 2015, 8h05)
** Vladimir Passos de
Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi
corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela
Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado
e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da “International Association for
Courts Administration – IACA”, com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente
do Ibrajus.