quinta-feira, 10 de maio de 2012

O STFe o mensalão - Almir Pazzianotto Pinto

(Publicado em O Estado de São Paulo, em 07 de maio de 2012)


“A história do Supremo Tribunal Federal (STF) - como sucede com toda instituição criada e operada por seres humanos - registra altos e baixos. Longos são os capítulos de grandeza e raras as manifestações desabonadoras. Não devemos ignorar, no entanto, a frase implacável de João Mangabeira, encontrada na obra Ruy: o Estadista da República: "O órgão que, desde 1892 até 1937, mais falhou à República não foi o Congresso. Foi o Supremo Tribunal Federal".

Leda Boechat Rodrigues e o ministro Edgard Costa estão entre os grandes historiadores da Suprema Corte. A primeira cuidou, em dois volumes, do período compreendido entre 1891 e 1910. O segundo, em quatro volumes, transcreve julgamentos ocorridos de 1892 a 1966. Entre tantos se destaca o mandado de segurança, cumulado com habeas corpus, em benefício de João Café Filho, afastado da Presidência da República pelo general Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra.

Não cabe aqui analisar os motivos de Lott. Vou-me ater ao voto do ministro Nelson Hungria, quando diz: "Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente uma contrainsurreição com maior força. E esta, positivamente, não poderia ser feita pelo Supremo, que não iria cometer a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípios, expedir mandado para cessar a insurreição. Aí está o nó górdio que o Poder Judiciário não pode cortar, pois não dispõe da espada de Alexandre. O ilustre impetrante, ao que me parece, bateu em porta errada".

Não há paralelo entre essa causa e o "mensalão". Afinal, o País não se encontra às voltas com nenhuma insurreição armada. Tampouco se põe em questão o desassombro e a independência dos srs. ministros do STF. Além da complexidade da matéria, inexiste, contudo, dúvida quanto à estreita ligação política dos acusados com o governo federal da época. Não fosse por isso, seria apenas mais um dos feitos submetidos ao julgamento do Supremo, que, no caso, é foro único e privilegiado.

A causa tramita desde 2006, quando o então procurador-geral da República, dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, denunciou ao STF 40 acusados no maior escândalo político das últimas décadas.

A lentidão é inimiga pertinaz do Judiciário. Para certos magistrados, o tempo inexiste, ou não conta. É da morosidade, todavia, que o crime e a impunidade se alimentam. Ignora-se melhor fermento para a corrupção do que a certeza de que o tempo agirá como solvente e fará cair no esquecimento a conduta ilícita.

Algumas justificativas são apresentadas com o propósito de isentar de culpa os juízes vagarosos: a fadiga, o acúmulo de serviço, a impermeabilidade da magistratura a pressões externas. Convenhamos, porém, que dos integrantes do Poder Judiciário se espera disposição para tarefas que, ao se candidatarem ao cargo, sabiam extenuantes.
Quanto ao acúmulo, a morosidade é das maiores responsáveis, por se deixar para amanhã o que se deveria ter feito ontem. A Constituição da República de 1988 assegura, entre os direitos e garantias fundamentais, a razoável duração do processo. A carga mais pesada de trabalho, em qualquer julgamento, incumbe ao relator, cuja tarefa é suplementada pelo revisor. Compete-lhes submeter ao plenário do tribunal relatório que condensará as principais ocorrências registradas no andamento da causa, a fim de facilitar a proferição dos votos restantes.

A informatização facilitou a tarefa de julgar. Além do revisor, os membros do tribunal têm imediato acesso ao relatório, pela rede interna de comunicação. Considero excessivo o prazo de cinco anos, decorridos do recebimento da denúncia, em março de 2012. Não houve escassez de tempo para que os ministros da Suprema Corte se sentissem em condição de julgar.

O egrégio Supremo Tribunal Federal está sob pressão, mas voltado para o interesse geral no julgamento da causa. Pressão legítima, que resulta do sentimento coletivo de cidadania, rogando ao Supremo o cumprimento do dever de se pronunciar.

A nossa mais Alta Corte está farta de saber que não goza de imunidade diante do correr dos dias. Já se ouve dizer que o "mensalão" será julgado somente no segundo semestre deste ano, mas sem definição de data.

Ora, no segundo semestre haverá o recesso judiciário do mês de julho, paralisando os trabalhos da Corte. Em seguida virão as eleições em 5.564 municípios. Dois dos 11 ministros do Supremo Tribunal participam do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com as atenções divididas entre o STF e o TSE, Suas Excelências terão tempo para se dedicar ao "mensalão"?

Não bastasse, o ministro Carlos Ayres Britto vai se aposentar em novembro, fato que exigirá do Supremo a escolha de novo presidente. Logo depois teremos o recesso de Natal e as férias de janeiro. Essas e outras circunstâncias somadas, não será improvável que o julgamento seja deixado para 2013.

Prescrição é contagem regressiva. A cada hora mais se avizinha o momento em que os acusados serão agraciados pela inércia. A denúncia formulada pela Procuradoria-Geral da República cairá, então, no vazio. Tornar-se-á inútil. Os acusados ficarão livres das acusações pela inexorável ação do tempo. E voltarão a ter ficha limpa, aptos a disputar mandato ou a exercer cargos de confiança.

Não é ao que aspira a Nação vigilante. O povo aguarda que irrecorrível decisão do STF identifique culpados e inocentes. É o mínimo a se esperar do órgão máximo do Poder Judiciário, sobretudo porque os réus o têm como foro único e privilegiado.
Neste momento histórico, os olhos dos brasileiros estão concentrados em três ministros: Ayres Britto, presidente, Joaquim Barbosa, relator, e Ricardo Lewandowski, revisor. Deles se espera que ingressem e permaneçam, com honras e glórias, na História do Poder Judiciário”.


(ALMIR PAZIANNOTTO PINTO É ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO, PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Discurso de Lula ou de Goebbels?

É claro que o discurso é de Goebbels. Mas Luiz Inácio da Silva e seus pensadores não fariam pior. Eles poderiam mesmo plagiar sem dificuldades o que vai abaixo escrito. O "movimento Nacional Socialista" soa, aos ouvidos de hoje, algo parecido com o MST. Aliás, não por acaso o partido nazista tinha o nome oficial de Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Já os judeus daquela época são os mesmos judeus de hoje. O jargão se alterou um pouco: de imprensa e rádio passou-se à expressão Mídia.
A natureza totalitária, entretanto, como um cacoete imutável, flui naturalmente com idêntica ferocidade. Três meses depois do discurso de Goebbels, em maio, os nazistas deram seu primeiro espetáculo público em homenagem às suas concepções: promoveram gigantesca queima de livros, em Berlim, de autores como Thomas Mann, Freud, Einstein, Kafka e outros renegados. A imitação cabocla, sob a liderança de uma professora membro do Conselho Nacional de Educação fez sua parte. Em março de 2010 transformou em cinzas, em plena avenida Paulista, na cidade de São Paulo, livros variados vistos como símbolos do mal. Piromaníacos que queimam livros mudam de alvo facilmente, e começam depois a queimar pessoas. Esta última observação é de Heine, grande poeta alemão, em 1843, em lúcida profecia.

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"Quando a imprensa judaica reclama que o movimento Nacional Socialista tem a permissão de falar em todas as rádios alemãs por causa de seu chanceler, podemos responder que só estamos fazendo o que vocês sempre fizeram no passado. (…)

Há alguns anos, não falávamos da boca pra fora quando dizíamos que vocês, judeus, são nossos professores e que só queremos ser seus alunos e aprender com vocês. Além disso, é preciso esclarecer que aquilo que esses senhores conseguiram no terreno da política de propaganda durante os últimos 14 anos foi realmente uma porcaria. Apesar de eles controlarem os meios de comunicação, tudo o que conseguiram fazer foi encobrir os escândalos parlamentares, que eram inúteis para formar uma nova base política. (…)

Se hoje a imprensa judaica acredita que pode fazer ameaças veladas contra o movimento Nacional-Socialista e acredita que pode burlar nossos meios de defesa, então, não deve continuar mentindo. Um dia nossa paciência vai acabar e calaremos esses judeus insolentes, bocas mentirosas! (…)

E se outros jornais judeus acham que podem, agora, mudar para o nosso lado com as suas bandeiras, então só podemos dar uma resposta: “Por favor, não se dêem ao trabalho! (...)

Esta insolência judaica tem mais passado do que terá futuro. Em pouco tempo, ensinaremos os senhores da Karl Liebnecht Haus [sede do Partido Comunista], o que é a morte, como nunca aprenderam antes. Eu só queria acertar as contas com os [nossos] inimigos na imprensa e com os partidos inimigos e dizer-lhes pessoalmente o que quero dizer em todas as rádios alemãs para milhões de pessoas".

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São trechos do discurso que Goebbels fez em Berlim no dia 10 de fevereiro de 1933.

(Transcrito do blog do Reinaldo Azevedo, de 9-05-2010)

terça-feira, 8 de maio de 2012

Política e Moral - Fernando Henrique Cardoso


"Sem a distinção entre Bem e Mal não há política verdadeira. É esse o desafio para quem queira renovar.

Acabo de ler o mais recente livro de Alain Touraine, Carnets de Campagne (Cadernos de Campanha), sobre a campanha de François Hollande. Sem entrar no mérito das apostas políticas do autor, é admirável a persistência com que Touraine vem estudando as agruras da sociedade contemporânea como resultado da crise da "sociedade industrial".

Ele refuta análises baseadas numa sociologia dos sistemas e não, como lhe parece mais apropriado, numa sociologia dos "sujeitos históricos" e dos movimentos sociais. O livro vai direto ao ponto: não é possível conceber a política apenas como uma luta entre partidos, com programas e interesses opostos, marcados por conflitos diretos entre as classes.

A globalização e o predomínio do capital financeiro-especulativo terminaram por levar o confronto a uma pugna entre o mundo do lucro (como ele designa genericamente, com o risco de condenar toda forma de capitalismo) e o mundo da defesa dos direitos humanos e de um novo individualismo com responsabilidade social, temas que Touraine já tratara em 2010 no livro Após a Crise, fundamentados em outra publicação, Penser Autrement, de 2007.

A ideia central está resumida na parte final de Após a Crise: ou nos abandonamos às crises, esperando a catástrofe final, ou criamos um novo tipo de vida econômica e social.

Neste é preciso reviver o apelo aos direitos universais da pessoa humana à existência, à liberdade, aos pertencimentos sociais e culturais - portanto, à diversidade de identidades -, que estão sendo ameaçados pelo mundo desumano do lucro.

É preciso contrapor os temas morais ao predomínio do econômico. Há uma demanda crescente de respeito por parte dos cidadãos. Estes aderem a valores não como decorrência automática de serem patrões, empregados, ricos, pobres, pertencerem a esta ou àquela organização, mas por motivos morais e culturais.

Com essa perspectiva, Touraine responde categoricamente que não é com os partidos que a política ganhará outra vez legitimidade. As instituições estão petrificadas. Só os movimentos sociais e de opinião, movidos por um novo humanismo expresso por lideranças respeitadas, pode despertar a confiança perdida.

Só assim haverá força capaz de se opor aos interesses institucionais do capitalismo financeiro-especulador, que transformou o lucro em motor do cotidiano. Daí a importância de novos atores, de novos "sujeitos sociais", portadores de uma visão de futuro que rejeite o statu quo.

A partir daí, Touraine, sociólogo experimentado, não propõe uma prédica "moralista", mas sim novos rumos para a sociedade. Estes, no caso da França, não podem consistir numa volta à "social-democracia", ou seja, ao que representou na sociedade industrial o acesso aos bens públicos pelos trabalhadores; muito menos ao neoliberalismo gerador do consumismo que mantém o carrossel do lucro.

Trata-se de fazer o mundo dos interesses ceder lugar ao mundo dos direitos e à luta contra os poderes que os recusam às populações. É preciso libertar o pensamento político da mera análise econômica.

Os exemplos de insatisfação abundam, e não só na França. Vejam-se os "indignados" espanhóis, os rebeldes da Praça da Paz Celestial de Pequim ou os atores da Primavera Árabe. Falta dar-lhes objetivos políticos que, acrescento eu, criem uma nova institucionalidade, mais aberta ao individualismo responsável e à ação social direta que marcam a contemporaneidade.

Por que escrevo isso aqui e agora? Porque, mutatis mutandis, também no Brasil se sentem os efeitos dessa crise. Não tanto em seus aspectos econômicos, mas porque, havendo independência relativa entre as esferas econômicas e políticas, a temática referida por Touraine está presente entre nós.

Se me parece um erro reduzir o sentimento das ruas a uma crise de indignação moral, é também errado não perceber que a crise institucional bate às nossas portas e as respostas não podem ser "economicistas".

A insatisfação social é difusa: é a corrupção disseminada, são as filas do SUS e seu descaso para com as pessoas, é o congestionamento do trânsito, são as cheias e os deslizamentos dos morros, são a violência e o mundo das drogas, é a morosidade da Justiça, enfim, um rosário de mal-estar cotidiano que não decorre de uma carência monetária direta - embora também haja exagero quanto ao bem-estar material da população -, mas constitui a base para manifestações de insatisfação.

Por outro lado, cada vez que uma instituição, dessas que aos olhos do povo aparecem como carcomidas, reage e fala em defesa das pessoas e dos seus direitos, o alívio é grande. O Supremo Tribunal Federal, numa série de decisões recentes, é um bom exemplo.

No momento em que o Brasil parece mirar no espelho retrovisor das corrupções, dos abusos e leniências das autoridades com o malfeito, corre-se o risco de crer que tudo dá no mesmo: os partidos, as instituições, as lideranças políticas, tudo estaria comprometido.

É hora, portanto, para um discurso que, sem olhar para o retrovisor e sem bater boca com "o outro lado", até porque os lados estão confundidos, surja de base moral para mobilizar a população.

Quem sabe, como na França, a palavra-chave seja outra vez igualdade. Na medida em que, por exemplo, se vê o Tesouro engordar o caixa das grandes empresas à custa dos contribuintes via BNDES, uma palavra por mais igualdade, até mesmo tributária, pode mobilizar. Para tal é preciso politizar o que aparece como constatação tecnocrática e denunciar os abusos usando a linguagem do povo.

Está na moda falar sobre as "novas classes médias", muitas vezes com exagero. Se até agora elas vão ao embalo da ascensão social, amanhã demandarão serviços públicos melhores e poderão ser mais críticas das políticas populistas, pois são fruto de uma sociedade que é "da informação", está conectada.

Crescentemente, cada um terá de dizer se está ou não de acordo com a agenda que lhe é proposta. As camadas emergentes não são prisioneiras de um status social que regule seu comportamento.

Aos líderes cabe politizar o discurso, no melhor sentido, e com ele tocar a alma dos recém-vindos à participação social, não para que entrem num partido (como no passado), mas para que "tomem partido" contra tanto horror perante os céus.

Isso só ocorrerá se os dirigentes forem capazes de propor uma agenda nova, com ressonância nacional, embasada em crenças e esperança. Sem a distinção entre bem e mal não há política verdadeira. É esse o desafio para quem queira renovar".



(Fernando Henrique Cardoso é ex-presidente da República)

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Doutor Honoris Causa

A capacidade de bajulação dos intelectuais chapa branca é surpreendente, mesmo para aqueles mais céticos com a natureza humana. Ponderando-se, é claro, a qualidade do produto oriundo do barro ruim que foi utilizado pelo Criador em Sua obra magna. Ainda agora, as universidades federais do Rio de Janeiro, agindo em concurso, fizeram um pacotão, e homenagearam o ex-presidente Luiz Inácio da Silva com o título de Doutor Honoris Causa coletivo. Pois, então, não é que o verdadeiro comandante-em-chefe da quadrilha do mensalão recebeu uma espécie de HC simbólico da elite pensante carioca? HC aí é sigla de habeas corpus.

É uma incrível vontade de servir! La Boétie, caso vivesse hoje, teria incontáveis exemplos para sua tese. Inscrevem-se, portanto, os autores da homenagem, no mesmo panteão daqueles que honraram Getúlio Vargas e Adelita (este era o curioso pseudônimo de um poetastro, almirante de alma cândida, membro da junta militar de tempos idos e sofridos), aprovando-os para a Academia Brasileira de Letras. Ficaram todos em boa companhia. Até Sarney tem assento na Casa. Mas não devem ficar preocupados os ilustres puxa-sacos. Há coisas piores na nossa história. As recentes festividades de Cabral e seus acólitos, em exuberantes performances em Paris, não acabaram de lançar a dança do guardanapo? Nem o baile da ilha Fiscal foi tão criativo.

O que, talvez, cause espanto a um observador é o silêncio de outras instituições, certamente doidinhas para passar pelo ritual de submissão ao grande líder, em rapapés ridículos e salamaleques meio afrescalhados.

Nas histórias em quadrinhos de Tarzan, relata-se o tratamento que os nativos devotavam a manda-chuva eventual, em obrigatória genuflexão: sim, buana; não, buana; estamos a seu dispor, buana! A fabulação do ficcionista não estava, ao que parece, descolada da realidade; era tão somente um decalque. A bugrada dos sertões brasileiros também se encantou aparvalhada com os sortilégios do Anhanguera, ao botar fogo numa cuia d'água, ardente, truque que aqueles nunca desconfiaram.

É uma pena que no Brasil não exista a tradição operística. O libreto seria fácil de construir; bastaria ler os jornais diários. Só falta compor as músicas e providenciar os arranjos. Nem precisava contratar atores. Há inumeráveis artistas à disposição, canastrões refinados, aptos a representar a si próprios.

La scienza è mobile - João Ubaldo Ribeiro


(Publicado em O Estado de São Paulo, de 06 de maio de 2012)



"Escrevi esse título aí sem pensar em nada além de aproveitar a célebre ária do Rigoletto para o assunto sobre o qual acho que vou escrever hoje. Não vejam nesta incerteza, queridos leitores, irresponsabilidade, leviandade ou escassez de disciplina profissional. É que, pelo menos para certos escritores, assunto é assim: o sujeito pensa que escolheu um, mas logo outro se intromete, toma a frente e às vezes cria situações difíceis. Em todos os romances que escrevo, sempre há algum personagem que eu quero matar e ele não morre, alguém que eu quero casar e ele se recusa. Com assunto é a mesma coisa e receio que algo do gênero está acontecendo no momento.

Sim, porque eu ia (ou ainda vou, quem sabe) escrever sobre como a ciência, de um certo ponto de vista, parece mais volúvel que a mulher retratada na ária. Aí, viva meu anjo da guarda, me ocorreu que enfrentamos tempos perigosos, há ciladas por toda parte. Talvez vocês nem tenham pressentido, mas vejam a fria em que eu ia entrar. Ia atribuir um aspecto, digamos, negativo da ciência à semelhança desta com a mulher. Não sacaram, não? Eu ia desmerecer a ciência usando a figura da mulher, ou seja, Deus me defenda, fazer da condição de mulher um insulto. Isso é do tempo em que os guerreiros gregos, no cerco de Troia, menosprezavam seus companheiros, chamando-os de "mulheres acaias", coisa de mais de dois mil anos atrás, vá ser atrasado assim na Coroa do Limo, lá na ilha.

Como pude quase cair nessa? Choveriam cartas e e-mails inflamados, talvez artigos de protesto, me acusando de misoginia, machismo, sexismo, heterofobia e talvez até assédio sexual, sei lá, também está na moda. E não duvido nada que já exista alguém do Ministério Público tocaiando o primeiro infeliz que entre nessa esparrela. Não pude sopitar um calafrio, mas logo me recuperei do choque e descortinei atrás dele todo um novo horizonte. Meus olhos se abriram para o mal que nos acomete de todos os lados, a ponto de não sabermos mais por onde começarmos a nos defender.

Lembrei a ária que motivou este palavrório todo. Não a sei de cor, mas já a ouvi e li a letra várias vezes, assim como muitos de vocês. E quem quiser pode pegá-la no Google, a erudição ao alcance de todos. E escandalizar-se, meus caros amigos, escandalizar-se! Faz praticamente dois séculos que essa ária está aí e ninguém se deu conta! Meu caso é típico, só fui notar agora, por feliz coincidência. Como se pode permitir que palavras tão depreciativas, tão desdenhosas, tão agressivas, tão cheias de ódio disfarçado em sarcasmo, tão criminosas mesmo, sejam proferidas - e de forma tão glorificada, cantadas por um grande tenor e obra de um dos mais consagrados compositores da História? É esse o retrato da mulher que se quer ver perpetuado? No momento em que tantas nações importantes são lideradas por mulheres, inclusive a nossa, não se faz nada para impedir a renitência do preconceito, e através de uma das vias mais importantes para a consciência humana, que é a arte?

A arte, parafraseando alguém aí (vejam no Google), é importante demais para ser deixada na mão dos artistas. E o pensamento, mais ainda, é importante demais para ser deixado na mão dos que pensam. Isso vem ficando cada vez mais claro e acho até que ocupamos um lugar de destaque no mundo. Assistimos, aqui no Brasil, a um episódio recente, envolvendo problemas raciais numa obra de Monteiro Lobato. Não sei em que é que deu, mas lembro que se favorecia a "contextualização" do romance. Isso nada mais é que tutelar a leitura, ou seja, ensinar como ela deve ser apreendida ou compreendida. "Onde você está lendo 'isso', não é bem 'isso'." Vá lá que não se reescreva o texto original, para adequá-lo à nossa época e a nossos valores, evitando ainda o risco de ver ressuscitados conceitos nocivos e cientificamente inaceitáveis, mas pelo menos baixemos normas para seu correto entendimento.

Não vejo como escapar disso, na construção da sociedade perfeita que almejam para nós, o mais possível fundada em inatacáveis, porque reais e inalteráveis, verdades científicas. Sei que é difícil, mas não custa sonhar. E é passo a passo que se chega ao objetivo, nenhuma área é mais importante que a outra e a prioridade é ditada pelo momento histórico (não tem nada a ver, mas hoje estou todo cheio de parênteses mesmo: alguém se lembra de "momento histórico"? Antigamente a esquerda falava muito em momento histórico, nunca mais ninguém falou).

Por que não aproveitamos o embalo e criamos a Agência Nacional da Contextualização da Arte, que, pelo porte que deverá ter, melhor ficaria se ministério? Tirando pela fertilidade cunicular (vamos lá, nunca mais fiz a brincadeira do dicionário, e esta é boa, não tem no Aurélio nem no Houaiss) na gestação de ministérios, demonstrada pelos últimos governos, uns quatro ministérios. E a Agência Nacional de Controle Social da Arte e da Cultura, junto à qual talvez finalmente consigam encaixar a tão ansiada Agência de Controle Social da Mídia. Aos melhoramentos culturais se aliariam os socioeconômicos, a geração de empregos, as novas profissões ("Explicador das Intenções do Artista", "Contextualizador Credenciado", "Esclarecedor Juramentado") - as possibilidades chegam a entontecer, roam-se e mordam-se os pessimistas.

Perdão, leitores mas, como temia, fui vítima de um assunto enxerido. Eu só queria comentar como é volúvel a ciência e como, cada vez a menores intervalos, o que ontem matava hoje rejuvenesce, o que hoje emagrece ontem engordava. Ia falar na retumbante redenção do coco ora em curso, matéria com que, baiano sendo, tenho algum envolvimento emocional. Mas aí fui botar mulher no meio e me enrolei todo. Domingo que vem, tento desenrolar."