sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

SEM MEDO DO PASSADO (Fernando Henrique Cardoso)

(Artigo publicado em 7-02-2010 no jornal Estado de São Paulo)


"O presidente Lula passa por momentos de euforia que o levam a inventar inimigos e enunciar inverdades. Para ganhar sua guerra imaginária, distorce o ocorrido no governo do antecessor, autoglorifica-se na comparação e sugere que se a oposição ganhar será o caos. Por trás dessas bravatas está o personalismo e o fantasma da intolerância: só eu e os meus somos capazes de tanta glória. Houve quem dissesse “o Estado sou eu”. Lula dirá, o Brasil sou eu! Ecos de um autoritarismo mais chegado à direita.

Lamento que Lula se deixe contaminar por impulsos tão toscos e perigosos. Ele possui méritos de sobra para defender a candidatura que queira. Deu passos adiante no que fora plantado por seus antecessores. Para que, então, baixar o nível da política à dissimulação e à mentira?

A estratégia do petismo-lulista é simples: desconstruir o inimigo principal, o PSDB e FHC (muita honra para um pobre marquês…). Por que seríamos o inimigo principal? Porque podemos ganhar as eleições. Como desconstruir o inimigo? Negando o que de bom foi feito e apossando-se de tudo que dele herdaram como se deles sempre tivesse sido. Onde está a política mais consciente e benéfica para todos? No ralo.

Na campanha haverá um mote – o governo do PSDB foi “neoliberal” – e dois alvos principais: a privatização das estatais e a suposta inação na área social. Os dados dizem outra coisa. Mas os dados, ora os dados… O que conta é repetir a versão conveniente. Há três semanas Lula disse que recebeu um governo estagnado, sem plano de desenvolvimento. Esqueceu-se da estabilidade da moeda, da lei de responsabilidade fiscal, da recuperação do BNDES, da modernização da Petrobras, que triplicou a produção depois do fim do monopólio e, premida pela competição e beneficiada pela flexibilidade, chegou à descoberta do pré-sal. Esqueceu-se do fortalecimento do Banco do Brasil, capitalizado com mais de R$ 6 bilhões e, junto com a Caixa Econômica, libertados da politicagem e recuperados para a execução de políticas de Estado.

Esqueceu-se dos investimentos do programa Avança Brasil, que, com menos alarde e mais eficiência que o PAC, permitiu concluir um número maior de obras essenciais ao país. Esqueceu-se dos ganhos que a privatização do sistema Telebrás trouxe para o povo brasileiro, com a democratização do acesso à internet e aos celulares, do fato de que a Vale privatizada paga mais impostos ao governo do que este jamais recebeu em dividendos quando a empresa era estatal, de que a Embraer, hoje orgulho nacional, só pôde dar o salto que deu depois de privatizada, de que essas empresas continuam em mãos brasileiras, gerando empregos e desenvolvimento no país.
Esqueceu-se de que o país pagou um custo alto por anos de “bravata” do PT e dele próprio. Esqueceu-se de sua responsabilidade e de seu partido pelo temor que tomou conta dos mercados em 2002, quando fomos obrigados a pedir socorro ao FMI – com aval de Lula, diga-se – para que houvesse um colchão de reservas no início do governo seguinte. Esqueceu-se de que foi esse temor que atiçou a inflação e levou seu governo a elevar o superávit primário e os juros às nuvens em 2003, para comprar a confiança dos mercados, mesmo que à custa de tudo que haviam pregado, ele e seu partido, nos anos anteriores.

Os exemplos são inúmeros para desmontar o espantalho petista sobre o suposto “neoliberalismo” peessedebista. Alguns vêm do próprio campo petista. Vejam o que disse o atual presidente do partido, José Eduardo Dutra, ex-presidente da Petrobras, citado por Adriano Pires, no Brasil Econômico de 13/1/2010. “Se eu voltar ao parlamento e tiver uma emenda propondo a situação anterior (monopólio), voto contra. Quando foi quebrado o monopólio, a Petrobras produzia 600 mil barris por dia e tinha 6 milhões de barris de reservas. Dez anos depois, produz 1,8 milhão por dia, tem reservas de 13 bilhões. Venceu a realidade, que muitas vezes é bem diferente da idealização que a gente faz dela”.

O outro alvo da distorção petista refere-se à insensibilidade social de quem só se preocuparia com a economia. Os fatos são diferentes: com o Real, a população pobre diminuiu de 35% para 28% do total. A pobreza continuou caindo, com alguma oscilação, até atingir 18% em 2007, fruto do efeito acumulado de políticas sociais e econômicas, entre elas o aumento do salário mínimo. De 1995 a 2002, houve um aumento real de 47,4%; de 2003 a 2009, de 49,5%. O rendimento médio mensal dos trabalhadores, descontada a inflação, não cresceu espetacularmente no período, salvo entre 1993 e 1997, quando saltou de R$ 800 para aproximadamente R$ 1.200. Hoje se encontra abaixo do nível alcançado nos anos iniciais do Plano Real.

Por fim, os programas de transferência direta de renda (hoje Bolsa-Família), vendidos como uma exclusividade deste governo. Na verdade, eles começaram em um município (Campinas) e no Distrito Federal, estenderam-se para Estados (Goiás) e ganharam abrangência nacional em meu governo. O Bolsa-Escola atingiu cerca de 5 milhões de famílias, às quais o governo atual juntou outras 6 milhões, já com o nome de Bolsa-Família, englobando em uma só bolsa os programas anteriores.

É mentira, portanto, dizer que o PSDB “não olhou para o social”. Não apenas olhou como fez e fez muito nessa área: o SUS saiu do papel à realidade; o programa da aids tornou-se referência mundial; viabilizamos os medicamentos genéricos, sem temor às multinacionais; as equipes de Saúde da Família, pouco mais de 300 em 1994, tornaram-se mais de 16 mil em 2002; o programa “Toda Criança na Escola” trouxe para o Ensino Fundamental quase 100% das crianças de sete a 14 anos. Foi também no governo do PSDB que se pôs em prática a política que assiste hoje a mais de 3 milhões de idosos e deficientes (em 1996, eram apenas 300 mil).

Eleições não se ganham com o retrovisor. O eleitor vota em quem confia e lhe abre um horizonte de esperanças. Mas se o lulismo quiser comparar, sem mentir e sem descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer".

Carnavalescos, por favor, errem!

(Publicado na Folha de São Paulo em 12-02-2010)

"CARO CARNAVALESCO , caro turista que vai desfilar neste Carnaval, eu gostaria de lhe fazer um pedido. Durante o desfile de sua escola de samba nos próximos dias, por favor, erre. Erre de propósito. Cometa bobagens imprevistas, saia do ritmo, embole a coreografia de seu grupo. Faça de tudo para que sua escola de samba ganhe notas péssimas dos jurados. É um pedido estranho, mas que não tem o objetivo de sabotar a festa. Pelo contrário. Para que a diversão volte a acontecer, para que ela seja de fato um Carnaval, é preciso urgentemente errar mais na avenida. O pedido se baseia na história. Por séculos e séculos, o Carnaval significou inversão de papéis, de julgamentos e de atitudes. Em outras palavras, significou fazer tudo ao contrário. Nas festas pagãs da Roma Antiga, que deram origem ao Carnaval cristão, escravos e seus senhores trocavam de posição: por um dia, eram os servos que mandavam. Já os europeus medievais faziam missas e procissões cômicas, desafiando a Igreja Católica, autoridade temerosa e indiscutível daquela época.
Uma festa parecida acontecia no Brasil. Durante as festas conhecidas como entrudos, as pessoas atiravam bolas de cera nos outros e faziam guerrinhas d'água pela rua, impressionando quem não estava habituado. Em 1832, o jovem Charles Darwin, ao visitar o Carnaval de Salvador com dois tenentes da Marinha britânica, escreveu assustado: "Achamos muito difícil manter a nossa dignidade enquanto caminhávamos pelas ruas". Essa algazarra deliciosamente sem noção foi silenciada na década de 30. Por influência de costumes e governos fascistas, a festa se aproximou de um desfile patriótico, com regras, jurados e horários marcados. Os foliões passaram a desfilar diante de autoridades do governo e de jurados, que avaliavam a disciplina, o figurino e a média de acertos dos grupos, dando notas até dez. Instituiu-se a obrigatoriedade de sambas com letras em prol da nação. Os instrumentos de sopro, que não remetiam à "cultura nacional", foram proibidos. As primeiras apresentações do Rio de Janeiro aconteceram na avenida Rio Branco, o mesmo local dos desfiles militares do dia 7 de setembro. A Deixa Falar, escola de samba mais antiga, desfilou em 1929 usando na comissão de frente cavalos da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Três anos depois, o samba-enredo da escola era A Primavera e a Revolução de Outubro, em homenagem à tomada de poder de Getúlio Vargas em outubro de 1930. A apresentação contou com participantes vestidos de militares. Os sambas das escolas também foram atração nas primeiras edições da "Hora do Brasil", programa criado pelo governo Vargas. Em 29 de janeiro de 1936, uma edição especial com a Estação Primeira de Mangueira foi transmitida para a rádio nacional da Alemanha nazista.
Criou-se nessa época o evento metódico que existe até hoje, com notas, vencedores, regras de conduta e, o que é mais incrível, uma trajetória retilínea. É injusto que o Carnaval brasileiro seja simbolizado por um desfile tão contrário ao espírito carnavalesco. Por isso, precisamos afastar o Carnaval brasileiro de seus tempos fascistas. Você pode fazer isso tomando atitudes simples durante o desfile. Basta praticar qualquer ação que irrite os dirigentes das escolas preocupados não com a sua diversão, mas com pontuações e patrocínios. Há diversas opções interessantes. Uma delas: pare diante dos jurados, dê de ombros a eles, chame-os para invadir a avenida (se eles não estiverem dormindo). Ou então, em vez de cantar sambas politicamente corretos patrocinados por Hugo Chávez ou por mineradoras, deite no meio do desfile e finja-se de morto. Empurre o carro alegórico para o lado contrário. E, por favor, livre-se daquelas penugens horríveis: já foi o tempo em que os brasileiros tinham que oferecer macumba para turistas, fingir-se de exóticos bem comportados para ganhar pontos ou atrair atenção. Já podemos deixar a Sapucaí de lado e dar mais atenção aos blocos de rua, onde algum Carnaval sobrevive. Repleta desse comportamento irresponsável, sua escola de samba se tornaria muito mais fiel ao Carnaval. Durante todo o ano corremos para seguir ordens, ritmos e horários, lutamos para ser aprovados, atingir o grupo especial ou tirar dez. O Carnaval é um pequeno momento do ano destinado ao oposto. Nesses quatro dias, você está liberado para errar, para não ser aceito e se esforçar em tirar zero. Por favor, aproveite. Bons carnavalescos, em vez de torcer por graves notas dez na quarta-feira de cinzas, festejam o rebaixamento. E, se os dirigentes das escolas reclamarem de seus erros, não se importe. Eles não sabem o que é Carnaval.

LEANDRO NARLOCH, 31, é jornalista. Foi repórter do "Jornal da Tarde" e da revista "Veja" e editor das revistas "Aventuras na História" e "Superinteressante". É autor do livro "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" (LeYa)."