sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Ética e educação - Prof. Roberto Romano

(Entrevista ao Instituto Millenium – 22-11-2011)


“Instituto Millenium – EXISTE UMA CRISE ÉTICA EM TODO O MUNDO; QUAL É A ESPECIFICIDADE DO QUADRO BRASILEIRO?

Sempre existiu e sempre existirá crise ética no mundo. A ética resulta do equilíbrio instável entre os comportamentos (reforçados pelos valores estabelecidos) e as novas formas de agir e pensar. Ela, portanto, supõe a crise, cujo significado original vem do grego krisis, “instante de passagem, de escolha, de prova, decisão”. A cada átimo os nossos hábitos sofrem o teste maior: eles preservam a nossa vida e a existência da sociedade que nos acolhe? Formas tradicionais de comportamento, caso não permitam responder positivamente a tal pergunta, inevitavelmente perdem vigência em médio ou longo prazo.

Importa recordar o significado original do termo “ética”. Na semântica histórica o termo ressalta o sentido de “postura” (hexis). Como a sociedade grega era guerreira, os jovens deviam aprender as posições corretas para a corrida, o uso das lanças etc. Tal aprendizado se fazia nas disputas, sob orientação de instrutores ou no próprio campo de batalha (Platão diz que os meninos deveriam sentir o cheiro do sangue, nas guerras). Era vital correr certo, pois o uso inadequado dos pés, das pernas, de todo o corpo, faria o exército perder tempo, podendo ser vencido. Ora, quem aprende a andar errado, repete o erro automaticamente. Idêntico automatismo ocorre quando se adquire a posição correta. Hexis, assim, é algo vital para a sociedade grega, sendo por semelhante motivo valorizada a sua prática certa. O automatismo traz o problema. Quando alguém anda ou corre erradamente, com muita dificuldade poderá corrigir o erro que, de tanto ser repetido, torna-se inconsciente. É preciso aprender o certo desde a mais tenra infância, daí o fato de a ética ser ligada diretamente à educação. Com o tempo, por metáfora, a postura passou a ser empregada para a atividade da mente. Assim como se aprende um bom gesto físico, também se aprende um bom raciocínio. Ou, em caso oposto, uma péssima postura na forma de pensamento. Também aqui é estratégico que a criança aprenda a boa postura desde a mais tenra idade, caso contrário ela aprenderá formas erradas de imaginar, calcular, agir diante dos valores imateriais.

O problema é que a sociedade grega, apesar de sua elevação filosófica, artística, científica, assumiu o automatismo de sua cultura, a que dizia aos cidadãos da polis que eles eram os únicos dignos de ostentar o título de homens, seres plenamente racionais e valorosos. Assim nasceu o mito da autoctonia e da supremacia grega sobre os orientais e os ocidentais do Norte europeu. Aristóteles, na “Política”, diz que os homens do Oriente têm inteligência aguda, mas são covardes. Os europeus do Norte são bravos, mas pouco brilhantes no pensamento. Os gregos, bem, eles reuniriam a coragem à mente lúcida. E seriam, propriamente, homens. Os demais povos, os bárbaros (palavra produzida com uma onomatopeia, que imita sarcasticamente os estrangeiros ignorantes da língua grega, sendo portanto alheios ao Logos, à razão), tinham como destino ser dominados pelos helênicos.

Surge aí um automatismo que persegue a ética ocidental até hoje, impedindo sua plena cooperação com outras éticas. Tal postura pode ser grosseiramente racista, mas pode ser traduzida em pensamentos etnocêntricos, embora refinados intelectualmente. É o caso do brilhante historiador da cultura guerreira grega, Victor Davis Hanson em livros como “Porque o Ocidente venceu?”. Mas a superioridade auto-atribuída pelos ocidentais não vai além da imagem idealizada. Na realidade, mesmo a Grécia entra no movimento geral das éticas mediterrâneas. Ela muito aprendeu com o Egito e demais impérios do Oriente Médio e do Mediterrâneo.

Mais adiante, a partir do século XIV (era cristã) a ética européia foi se transformando, a cada século mais rapidamente, no trato com as do Oriente Médio, da África, das Américas, do Extremo Oriente. O mesmo ocorre com as últimas diante da européia. No século XX as trocas entre as éticas regionais do planeta se tornaram a cada passo mais aceleradas, devido, sobretudo, às tecnologias da comunicação. Do telégrafo à Internet, o comércio espiritual entre as éticas se complexificou, tornando-se sempre mais amplo, emaranhado, contraditório. Os movimentos retrógrados, que insistem em conservar valores e hábitos inadequados à nova configuração do planeta, tendem a se definir como quistos que apenas preparam o isolamento de seus praticantes, ou seja, elas trazem a morte próxima ou lenta de sua cultura, formas políticas, econômicas, religiosas, estéticas e tecnológicas.

Sigo o pensamento do etnólogo André Leroi-Gourhan. Para ele, a cultura técnica – base da ordem ética – para se reproduzir, exige das sociedades duas forças aparentemente contrárias: a primeira é a capacidade de inventar instrumentos, valores, hábitos; a segunda reside na aptidão para emprestar de outras sociedades instrumentos, valores, hábitos. Quem não consegue emprestar é incapaz de inventar e vice-versa.

É o que vemos no planeta, sobretudo após o século XVI. Os europeus emprestaram da China, da Índia, do Japão ciências e técnicas em todos os domínios da vida. E inventaram, a partir daí, novas técnicas, ciências, hábitos. No campo estético tomemos, no século XVIII, no rococó, a quantidade de formas e traços conhecidos como “chinoiserie”, ou seja, empréstimos do Japão e da China, nas artes plásticas. No século XX, temos o movimento amplo chamado Art Nouveau. Ele é uma síntese de elementos orientais e do Ocidente.

O mesmo pode ser dito de toda a cultura e da ética. Gourhan mostra, após muitas pesquisas sobre a origem e a vigência da tecnologia desde os nossos alvores como humanidade, que nosso corpo é produto de nossa técnica, que desde o princípio vivemos em tecnosfera.

Moldamos nosso corpo inteiro, dos pés à caixa craniana, o que possibilitou as técnicas de manipulação e a linguagem. Mas o principal é que o nosso corpo, base da ética, se prolonga no universo dos objetos técnicos que produzimos, mas não criamos. É bom recordar a diferença entre “criação” e “produção”. No pensamento judaico-cristão, existe a ideia de um ser onipotente que gera a natureza do nada. No pensamento grego, a natureza já está ao dispor dos deuses, que a controlam, e dos homens que imitam os deuses, ou desafiam os deuses como Prometeu. Assim, nesta forma de raciocinar, não existe criação, mas produção a partir e, não raro, contra a natureza que deve ser submetida pelos nossos atos técnicos. Se não existe criação absoluta, também não existe autoctonia técnica plena. Cada sociedade inventa sua técnica (e nela, a sua ética) emprestando traços de outras sociedades. Só é capaz de inventar, retomo, quem se tornou competente para emprestar.

Ou seja, a técnica é um movimento perene de Krisis, de decisão, escolha, teste. O mesmo para a ética. Uma cultura presa em si mesma, sem choques com outras, nada acrescenta, nada inventa no seu trato com a natureza e consigo mesma. Daí, o fato de que a crise, longe de ser algo nocivo, é essencial para a sobrevivência correta, a expansão e o desenvolvimento da técnica e da ética. Outra noção de Krisis dá bem a medida da coisa: para os médicos dos tratados hipocráticos (outra fonte rica das elaborações éticas do Ocidente), a crise da doença é o momento em que ainda não foi vencida a moléstia (a morte pode vir) e já surgem sinais de recuperação da saúde. A crise, portanto, pode seguir para a morte ou para a vida. Tudo depende da perícia técnica do médico, da cooperação do adoecido, das forças que se chocam no seu corpo. Ocorre com a crise o mesmo que se passa no plano do remédio. Os médicos gregos nomeiam como Pharmakon os medicamentos, que podem ser remédios ou venenos, muitas vezes dependendo da dose, do saber técnico no seu emprego, do corpo adoecido. Assim também na ética: ficar muito tempo na indecisão sem usar medidas técnicas para sair da crise, significa aceitar o desaparecimento. Mas não se deve ser precipitado, pois apressar o fim da crise antes do tempo pode ser desastroso. Esta é a lição política ensinada pelos médicos aos teóricos da política, de Aristóteles até Maquiavel. Trata-se da noção do Kayrós, o tempo oportuno. Quem deseja solucionar uma crise ética ou política deve saber qual o instante certo para decidir as coisas. Um minuto antes, um minuto depois, pode ser a ruína de uma sociedade ou Estado. O comércio praticado entre as éticas, desde a era antiga até a moderna, supõe a noção de crise, de tempo oportuno, de empréstimo e invenção. Falar em “choques” ou “guerra” de culturas e de éticas significa tomar as coisas pela rama, ignorar o principal, a perene crise de todas as formas culturais, aceleradas na modernidade.

O Brasil… bem, o Brasil é o amálgama de uma ética absolutista europeia com elementos dinâmicos da modernidade. Nossa ética se enquistou no absolutismo que ignora e mesmo combate a democracia real (pensemos no privilégio de foro, excrescência do século XVII em pleno século XXI brasileiro), no menosprezo pelas técnicas de ponta, na desconfiança diante das conquista políticas mundiais, bastando ver o ódio votado aqui à liberdade de imprensa, no veto à existência de uma oposição efetiva, no conúbio entre o público e o privado. Emprestamos apenas alguns elementos do processo de mundialização técnica e ética. Somos ainda incapazes de inventar novas éticas, o que não nos assegura um futuro invejável, apesar de todas as nossas potencialidades e riquezas. Se continuarmos ignorando a geração técnica, se não investirmos em inovação em nossas indústrias e direção de empresas, se persistirmos em viver sob uma forma de governo anacrônica (o absolutismo dos operadores do Estado, que se julgam e agem como se não devessem prestar contas a ninguém, sobretudo ao “cidadão comum”), setores vitais de nossa sociedade e de nossa ética serão ainda mais fossilizados, no mesmo passo em que outras sociedades agilizam e aproveitam com sentido certo de tempo oportuno as suas crises, assumem novos rumos, inventam novos valores e geram novos horizontes.

Imil – OS CONSTANTES CASOS DE CORRUPÇÃO NO PAÍS SÃO FRUTO DE FALHAS INSTITUCIONAIS? É POSSÍVEL CORRIGIR ESSAS FALHAS APRIMORANDO AS INSTITUIÇÕES?

Romano – São fruto de nossa ética, na qual a postura de governados e governantes permite a diferença entre “ser do poder”e “ser gente comum”. Tal resquício do absolutismo torna possível uma classe especial de seres, os poderosos, que tudo fazem em detrimento dos cofres públicos e em favor de seus bolsos. Vivemos até data recente com a admiração popular diante de personagens que, se dizia, “roubam, mas fazem”. Esta complacência, ou cumplicidade das massas, é algo preparado com muita técnica e ardilosidade, e tem como datas principais as mesmas que indicam o nascimento do Estado absoluto. Neste último, as fontes públicas de recurso se concentram nas mãos dos governantes, que as direcionam no interesse do governo, sem ouvir os que pagam impostos. Estes, por sua vez, não têm direitos a reclamar nas políticas públicas.

Mesmo porque a essência do poder absolutista reside na razão de Estado que é co-natural ao segredo de Estado. Os impostos, a polícia, as guerras, a administração, tudo é razão e segredo de Estado no absolutismo. Certa feita o rei francês pediu um aumento de imposto à Assembléia dos Estados (nobreza, clero, terceiro estado). Sua desculpa era a guerra. Os representantes do terceiro estado pediram para inspecionar as contas reais. O clero, setor mais influente na época, em seu voto disse que as finanças do rei eram como o Santíssimo Sacramento no cofre sagrado. Apenas os que tinham poder divino poderiam saber o que nelas se escondia… Segredo e razão de Estado são sinônimos, em todos os sentidos. E o governante absolutista distribuía privilégios para se manter no comando do Estado. Dentre os privilégios, contemos os recursos financeiros, as terras etc. O clero e os nobres eram os mais agraciados com tais privilégios, pagos à custa dos contribuintes. Rei, clero, nobres, nenhum deles julgava ter de prestar contas de seus atos e dos dinheiros. Ora, quando as revoluções modernas, republicanas e democráticas, já tinham sido efetivadas (a inglesa ainda no século XVII, a norte-americana e a francesa no XVIII), no Brasil do século XIX se reitera o absolutismo sob comando do príncipe Dom João, mantendo-se os fundamentos do privilégio, do segredo, da irresponsabilidade no manejo dos recursos públicos.

Aliás, fugido de Napoleão, que bem ou mal representava um avanço democrático quando comparado ao Antigo Regime absolutista, Dom João fez do Brasil um país refratário às “doutrinas infernais” da república, da democracia etc. Foi assim que o Príncipe fez o Banco do Brasil, que imprimiu papéis sem lastro e foi obrigado a fechar. O governante viu apenas as suas necessidades, sem cuidar nem um pouco da accountability.

A justificativa do Poder Moderador, na Carta de 1824, encontra-se nesta ressurreição, nos trópicos, do absolutismo. Com o Império, concentraram-se na Corte os impostos, que os distribuía pelas províncias e municípios conforme a sua obediência aos ditames do poder imperial. Assim, cidades ficaram séculos sem serviços públicos elementares. É quando os poderosos regionais se unem em oligarquias para arrancar meios do poder central, oferecendo como troca o controle das populações e apoio aos projetos do governo. Algo mais grave ocorre ainda no plano ético. Como as cidades são desprovidas de recursos, os fazendeiros (candidatos a oligarcas) que têm lugar nas Câmaras de Vereadores e nas Prefeituras, emprestam o seu próprio dinheiro (além da mão de obra escrava que lhes pertencia e dos materiais, comprados no Rio ou São Paulo) aos cofres municipais para obras públicas. O fato surge aos olhos dos cidadãos como um favor prestado à coletividade. Mas breve surge a contrapartida.

A professora Maria Sylvia Carvalho Franco mostra que, tempos após a instauração de tal prática, os vereadores e prefeitos imaginaram o processo como rua de mão dupla: “se quando o município precisa, eu empresto, quando eu preciso…”. Temos aí o uso de confundir o dinheiro público com o privado, usando o primeiro para ascender socialmente, comprar postos de mando, alianças políticas, etc. Em “Homens Livres na Ordem Escravocrata”, todo o sistema é exposto com detalhes e provas. Importa sublinhar que a passagem do “favor” ao uso do dinheiro público, ocorre com aprovação ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a origem do “‘é dando que se recebe” e do “rouba, mas faz”.

Mantida a concentração do poder no palácio presidencial, em detrimento dos Estados e municípios, mantido o sistema concentrador de impostos no poder “federal”, as populações não têm outra escolha senão votar nos poderosos regionais, os oligarcas, que trazem obras para as cidades. Ou seja, elas aprendem uma ética contrária à república e à democracia. Nem os proprietários do poder central, nem os oligarcas, imaginam ter obrigação de prestar contas de recursos aos contribuintes. Mas exigem cada vez mais impostos para prestar “serviços” ineficientes na saúde, educação, segurança, cultura, ciência e técnica. Eles julgam ter direito a colocar no bolso próprio, ou de seu partido, parte do butim, para manter os “favores”, ou seja, a realização de obras públicas nas urbes.

E agora vem a pior parte: desafio qualquer pessoa a lançar um candidato ético, respeitador dos dinheiros públicos, em qualquer eleição brasileira. Se ele provar que trará, ou trouxe, obras públicas para os eleitores, será eleito tantas vezes quanto possível o que trouxer obras públicas. Caso contrário, receberá parcos votos.
O eleitor que, diante dos jornais, rádio ou TV diz ter nojo da corrupção política, não sabe ou não quer saber o que os políticos “eficientes”devem fazer, no Congresso, para conseguir os recursos. O mínimo é praticar o “é dando, que se recebe, o toma lá dá cá”. Ou seja, a corrupção é tridimensional: existe o corruptor de obras públicas, o corrompido dos poderes, o eleitor… Sem uma efetiva democratização que obrigue os gestores a prestar contas, sem uma abolição dos privilégios (em especial o de foro), sem uma federalização que permita maior autonomia (sobretudo financeira) aos Estados e Municípios, a fábrica da corrupção ética e financeira estará funcionando em pleno vapor. Tenho alguns escritos sobre o problema. Em especial, gostaria de indicar um texto meu saído na Revista de Economia Mackenzie, cujo título é “Impostos e Razão de Estado”.

Imil – QUAL É O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA MUDANÇA DESSE QUADRO?

Romano – O Judiciário está inserido na estrutura do Estado brasileiro, ou seja, mesmo que boa parte de seus integrantes queira exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e democráticos, a instituição é homóloga à dos outros setores, com agravantes. O Executivo e o Legislativo seguem regras de transparência e são submetidos à opinião pública, à imprensa, ao voto. Quando perdem seus cargos, perdem a remuneração e, quando seus processos judiciais não recebem o sinal do segredo de justiça, sua vida inteira se transforma em objeto de análise pública. Não é assim com os magistrados. Quando perdem seu cargo, guardam seu pagamento, são julgados pelos pares em plano sigiloso e, quando fica evidente a sua ausência de ortodoxia ética no cargo, não recebem punição a tempo e a hora.

O debate nacional ao redor do CNJ, as tentativas de enfraquecer o trabalho da Corregedoria daquela instituição que deveria controlar a prática dos juízes, tudo mostra que dos três poderes o judiciário é o mais arredio aos elementos democráticos da transparência e da accountability. Existem exceções, com certeza, mas a regra não é passível de aplausos unânimes.

Modo geral, os que operam no campo do direito manifestam um alto teor de corporativismo e, em muitos casos, de desprezo pelos “estranhos”, os “leigos”, os “cidadãos”comuns. Eles esquecem que, num mundo altamente dividido em especializações, o jurista também é leigo para o médico, o engenheiro, o arquiteto, o economista, o físico, o químico, o administrador de empresas, etc. Existem questões que vão além das especialidades. Tais questões não admitem donos da verdade nem ditadores da ciência, seja ela jurídica. Muitos operadores do direito, aqui incluindo advogados e promotores além de juízes, não admitem o ponto. Além disso, o judiciário não tem exercido o papel que lhe cabe de morigerar os outros poderes. Haja vista a facilidade com a qual é aplicado o privilégio de foro, sem um questionamento protocolar: ele fere o princípio da igualdade de todos perante a lei. Quando os que praticam improbidade com os recursos públicos fogem do juiz natural, o da primeira instância, e são supostamente colocados sob o julgamento dos tribunais superiores (quantas penalidades foram mesmo aplicadas até hoje?) temos a ruptura com o regime ordenado na Constituição e referendado pela cidadania. Esta última recusou a forma da monarquia (com tudo o que ela implica no Brasil de privilégios, lembremos que mesmos em países monárquicos do mundo atual, os políticos não gozam dos privilégios que lhes são outorgados aqui), mas a justiça passa ao largo, aceitando um ordenamento evidentemente injusto, escandaloso, inconstitucional. O privilégio de foro não cria a corrupção, mas a reforça e torna os ímprobos mais arrogantes, sem tomarem sequer nos dias de hoje a cautela de esconder suas manobras fraudulentas. O que se praticava dissimuladamente tempos atrás, se comete hoje em plena praça pública.

Imil – QUAL É O IMPACTO DOS CONSTANTES CASOS DE CORRUPÇÃO NO ALTO ESCALÃO DO GOVERNO?

Romano - Acho mais adequado perguntar sobre o impacto da corrupção sobre o Estado e a sociedade como um todo. O primeiro e mais deletério é o sumiço da fé pública. E sem tal elemento não existe Estado de direito. Se não é possível confiar nos gestores do Estado (nos três poderes), não há motivo para obedecer a lei, pagar impostos, servir militarmente, viver segundo as regras civilizadas. Investir recursos privados em setores que dependem da administração pública, quando é sabido que tais recursos irão parar nos cofres dos partidos e dos indivíduos que operam na política, é tarefa que beira a falta de sentido.

As pesquisas que indicam a perda progressiva de fé da cidadania no sistema democrático deveria ser um alerta aos que ainda buscam um modo de vida pautado pelos valores da democracia. Mas quantos, na camada política, valorizam a república, a democracia, a responsabilidade, o respeito às leis vigentes? Quando legisladores quebram a lei, como ocorre com frequência terrível no Brasil, perde sentido se falar em Estado, ou mesmo Estado de Direito.

A violência que grassa em nossa sociedade (basta ver o trânsito, 40 mil morte por ano, mais do que em muitas guerras tremendas ocorridas nos últimos anos no planeta), mostra os efeitos da corrupção de maneira clara. Basta dizer que os assassinos do trânsito, como os ímprobos, escapam das malhas da justiça de modo fácil. É bom recordar o dito de Diógenes: “A lei é uma teia de aranha que prende os insetos pequenos, e não resiste à força dos grandes”, pois nela fazem buracos confortáveis. Pelo que ocorre no Brasil, haja conforto!

Imil – COMO O SENHOR AVALIA A BAIXA ADESÃO DA POPULAÇÃO NAS MANIFESTAÇÕES CONTRÁRIAS À CORRUPÇÃO?

Romano - Nosso sistema leva a população a aceitar “favores” dos que operam o Estado. Se ela não identifica favores nos oligarcas, os encontra em ações governamentais. Antes, valia como arma política de controle o bico de pena. Hoje, o cartão magnético do Bolsa Família e outros mais. E os setores da classe média e dos mais bem aquinhoados temem perder algo conquistado após muito desespero, ou seja, a inflação razoavelmente baixa e a estabilidade econômica.

Imil – EXISTE NO PAÍS UM CLIMA DE OTIMISMO, COPA DO MUNDO, OLIMPÍADAS, UMA CRISE ECONÔMICA QUE PARECE DISTANTE...TAL QUADRO DIFICULTA O EXERCÍCIO E A REPERCUSSÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO NO PAÍS?

Romano - Não podemos pensar que apenas a conjuntura poderia explicar semelhante apatia popular diante da corrupção. Devemos, antes de tudo, dizer que o alheamento não é absoluto, pois cerca de dois milhões de pessoas se movimentaram para conseguir a lei da Ficha Limpa. Esta, apesar de tudo, marca o desejo dos cidadãos de combater o processo corrosivo que anula o Estado de direito entre nós.

Para compreender o motivo da suposta passividade do povo brasileiro diante da corrupção, precisamos refletir sobre o peso da inflação na vida nacional, de 1954 até o Plano Real. Um processo inflacionário como o vivido em nossa terra corrompe valores, quebra resistências éticas, abre caminho para o desespero de indivíduos, grupos, classes.

Permitam que eu cite um dos autores mais relevantes na análise política e antropológica do século XX, Elias Canetti. Em sua obra lúcida e profunda chamada “Massa e poder”, existe um capítulo fundamental intitulado “A inflação como fenômeno de massa”. Em outros livros e textos ele comenta o impacto da inflação na ordem social e política. Tanto sua autobiografia (“Die Fackel im Ohr” ou “A tocha no ouvido”), quanto “Auto-da-fé” (“Die Blendung”) trazem situações vividas durante o tremendo processo inflacionário de Weimar. Como seu contemporâneo Georg Simmel, que publicou um monumento teórico chamado “Filosofia do Dinheiro” (“Philosophie des Geldes”, 1900, existe tradução inglesa da obra, “The Philosophy of Money”), Canetti presta atenção ao papel do dinheiro na ordem cultural moderna e na geração da identidade psicológica das pessoas.

Ele parte de um fato incontestável: “Pode-se afirmar que nas nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações”. Canetti mostra como há um nexo entre o corpo do homem, a sua mão sobretudo, e a moeda. Com o enfraquecimento deste vínculo, após o papel moeda (embora o padrão ouro ainda garanta a confiabilidade de uma economia), ainda permaneceu um ponto de estabilidade e confiança nos governos democráticos. Trata-se da cifra que indica o “milhão”. Como designação de um número, o “milhão” tanto pode referir-se ao dinheiro como aos homens. E Canetti nos reconduz à íntima passagem entre a inflação verbal e a econômico-política. Milhão: “O caráter duplo da palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é característico dos discursos de Hitler. Em geral, ele se refere aos milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich que ainda precisam ser redimidos”.

Importa sublinhar: no mundo atual, massa e milhão relacionam-se imperativamente. No processo inflacionário, entretanto, “a unidade monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma na massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida que aumenta a massa. Os milhões, que tanto se quis possuir, estão repentinamente em nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se chamam assim.

Na inflação, ocorre um elemento perverso e perversor: “O que cresce toma-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco é agora dez mil, depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem individual com seu dinheiro é abolida desta forma”. O homem, que antes confiava na sua moeda ou bilhete, não “pode evitar sentir seu rebaixamento como um rebaixamento dele próprio. (…) A inflação não abala apenas tudo externamente; nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; em virtude da inflação, ele mesmo, o homem, diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada”.

A inflação, desse modo, pensa Canetti, é uma “desvalorização dupla (…), o indivíduo sente-se desvalorizado, porque a unidade na qual confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar para baixo. A massa sente-se desvalorizada. (…) Como pouco se vale sozinho, igualmente pouco se vale unido aos demais. Quando os milhões aumentam, todo um povo de milhões se converte em nada”.
A massa, entretanto, não se esquece de sua desvalorização. “A tendência natural, a partir daí, é a de encontrar algo que valha ainda menos do que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da mesma forma como se foi desprezado antes.” A massa, digamos, busca um bode expiatório onde descarregar o sentimento de ser nada. Canetti aponta para o vínculo entre a inflação alemã e os milhões de judeus, supostamente inferiores aos arianos empobrecidos pela inflação, mortos nos campos de extermínio.
A lição trazida pelo processo inflacionário de Weimar não foi aprendida o bastante pelas sociedades ocidentais. O descontrole da economia traz inflação e, com ela, massas dispostas a seguir os mais diversos Messias, cobrando de supostos culpados toda a insegurança e humilhação vividas. Basta ver o que se passa na suposta União Européia nos últimos tempos. Recomendaria modestamente a leitura de um livro relevante para os nossos políticos, magistrados, universitários, jornalistas. Penso no volume publicado por Bernd Widdig (“Culture and inflation in Weimar Republic”), onde inclusive existe um capítulo inteiro dedicado às análises de Elias Canetti.
No caso brasileiro a população, desacostumada aos procedimentos democráticos (no século XIX, os nossos governantes dificilmente poderiam ser postos entre os campeões da democracia), algo piorado por dois regimes de exceção no século XX, e também afeita aos favores que espera dos que operam o Estado, não teve oportunidade de exercitar ativamente a crítica e a cidadania. Se na Alemanha, onde o nível da participação política das multidões foi elevado, sobretudo após 1848 (a era das revoluções) aconteceu um descontrole econômico e político desastroso como a inflação, conduzindo à fé cega num redentor, no caso Adolf Hitler, não é de espantar que no Brasil tenham medrado arremedos messiânicos como o de Jânio Quadros, José Sarney (recordemos a histeria dos “fiscais do presidente” que invadiam supermercados, prendiam gerentes, penetravam em fazendas na caça aos bois gordos, com base na lei delegada etc), Fernando Collor… A cada nova onda de fé no salvador presidencial, seguia uma onda de humilhação, perda da autoestima, desespero diante do presente e do futuro.

Com o Plano Real, se estabelece a racionalidade política que atenuou a inflação, conduzindo-a a níveis suportáveis. De imediato, veio a popularidade imensa de Fernando Henrique Cardoso que o levou ao Planalto e o elegeu novamente. Na mesma onda de fé no Salvador, foi eleito Luis Inácio da Silva que, à diferença de Fernando Henrique Cardoso, não apenas se adequou ao papel de redentor, como o exacerbou com poderosa ajuda de Duda Mendonça e João Santana. “Nunca antes neste país”, é o slogan que une a salvação da economia à pessoa do Presidente providencial. “Marolinha” é o modo pelo qual o próprio governante procurou exorcizar um impasse do qual ainda desconhecemos o real perigo. E apesar dos exorcismos, a inflação cresce a olhos vistos.

A apatia que hoje se observa nas massas urbanas brasileiras tem várias faces, sendo que a primeira é justamente a segurança econômica, da qual fala a propaganda oficial necessariamente. Protestar contra a corrupção parece ser algo menor, se comparado ao pesadelo vivido antes do Plano Real. Acrescente-se que a mesma propaganda “sequestrou” o peso dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique na construção daquela segurança: “nunca, antes neste país…”. A segunda face, mais triste, é o conúbio dos eleitores com os corruptos que lhes fazem “favores” pessoais ou coletivos (trazem obras para as cidades etc). A terceira é o controle quase absoluto do governo federal sobre as obras públicas no país inteiro, facilmente transformando-as em instrumento político eleitoral. E temos várias outras faces. Mas digamos, para encerrar esta longa resposta, que um povo que viveu sob a inflação e foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega total a um líder populista. E tal fato traz muitas preocupações com o futuro da democracia.”


(Roberto Romano é professor da UNICAMP)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

"O texto ensolarado... por Augusto Nunes

(Publicado no blog do Augusto Nunes, em 23-11-2011)

O texto ensolarado de Reinaldo Azevedo reduziu a cinzas os vampiros de chanchada


"Já registrei neste espaço que meu amigo e vizinho Reinaldo Azevedo é o Pelé da internet. Brilha em qualquer campo, coleciona lances de gênio com a naturalidade de quem bate um lateral, faz um gol de placa por jogo. Ou mais. Seja qual for o adversário, está sempre inspirado. E entra em estado de graça quando enfrenta seleções que representam as muitas nações do continente dos canalhas. Escaladas pelo critério da sordidez, aparecem de tempos em tempos ─ sempre agressivas, ressentidas, brutais ─ para outra derrota desmoralizante. Foi assim nesta quarta-feira. Desta vez, o cracaço liquidou o jogo com a obra-prima batizada de “Meus heróis não morreram de overdose. Alguns dos meus amigos de infância é que morreram no narcotráfico! E foi uma escolha“.

O texto ensolarado de Reinaldo devassou as catacumbas da USP que abrigam o barracão da Acadêmicos da Vigarice. Surpreendidas nos sarcófagos pela luminosidade intensa, as criaturas das trevas foram reduzidas a cinzas como vampiros de chanchada. Órfãos de todas as ditaduras, gigolôs de presos políticos assassinados, torturadores desempregados, professores com QI de ministro, estudantes com doutorado em cretinice, aduladores de platéias infantilizadas, cafetões de bolsas de estudos, nostálgicos do século 18, velhotes com tênis nos pés e fraque no cérebro, jovens envelhecidos já no berçário por rugas mentais, colunistas que recitam a Teoria do Bom Ladrão num deserto de leitores ─ nenhuma dessas abjeções multiplicadas pela Era da Mediocridade escapou da devastação.

Pela cacofonia que produzem, eles poderiam parecer ameaçadores. Ficou evidente que só conseguem matar de rir. Amparado na decência, no brilho intelectual e na verdade, Reinaldo Azevedo mostrou que os integrantes da Acadêmicos da Vigarice são muitos, mas não valem nada."

Meus heróis não morreram de over dose... Reinaldo Azevedo

"Meus heróis não morreram de overdose. Alguns dos meus amigos de infância é que morreram no narcotráfico! E foi uma escolha!"

"Este será um texto difícil, leitores! Avançarei por um trilho que sempre evitei porque tenho tal horror à demagogia que o risco remoto de que nela pudesse resvalar sempre me impediu de continuar. Mas chega a hora, como disse o poeta, em que os bares se fecham. E então restamos com nossas verdades. E elas precisam ser não exatamente anunciadas, mas enunciadas. Chegou a hora de vocês saberem um pouco mais deste escriba. Mas vamos devagar nesta longa viagem noite adentro.
Enganam-se aqueles que supõem que tenho debatido, nestes dias, a formação de chapas para disputar o DCE da USP, da Unirio ou da UFPR. A questão, entendo, é bem mais ampla: trato aqui de regras de civilidade, da democracia e do estado de direito. Espanta-me que seja justamente nas universidades — em particular nas públicas — que direitos essenciais garantidos pela Constituição sejam aviltados; direitos que custaram os esforços de gerações de brasileiros. Modestamente, fiz parte dessa trajetória e corri riscos, desde bem menino, por isso. Constato, não surpreso, mas nem por isso menos indignado, que a defesa da lei no Brasil pode ser, sim, uma atitude perigosa, daí que eu tenha sido obrigado a tomar medidas para a minha proteção. Nem por isso vou desistir. Releiam o título deste post. Eu vou chegar lá.
Ontem, enquanto alguns leitores de Vladimir Safatle, o professor pró-invasão, liam a sua corajosa fuga do debate (ver post abaixo), um panfleto era distribuído na USP, com tiragem anunciada de 3 mil exemplares. Ataca-me com impressionante violência. Mais do que isso: incita o ódio, a agressão. Acusa-me, em última instância, de interferir numa questão que seus autores parecem considerar privada. Isto mesmo: eles privatizaram a Universidade de São Paulo e rejeitam por princípio a crítica. O curioso é que, em sua não-resposta, Safatle me acusava — este rapaz precisa tomar cuidado com seu eventual lado mitômano — de promover a violência retórica. Escreveu em sua “não-resposta” que ele pertence àquela categoria de pessoas que “nunca responderão a situações nas quais a palavra escrita resvala para o pugilato, nas quais ela flerta com as cenas da mais tosca briga de rua com seus palavrões e suas acusações ‘ad hominen‘. Seria, simplesmente, ignorar a força seletiva do estilo.” Bem, noto à margem que o latim de Safatle não é melhor do que seu português, sua filosofia, seus argumentos e seu talento de polemista. O certo é “ad hominem”, com “m”. A alternativa é não recorrer ao latim.

Não, eu não desferi um só palavrão contra este rapaz. Em compensação, aqueles aos quais ele dá suporte — costuma ministrar “aulas” em áreas públicas ocupadas, como já fez em Salvador! — percorrem todo o vocabulário da desqualificação para me atacar, com impressionante vulgaridade e boçalidade. Em suma: acusam-me de promover aquilo que eles próprios promovem. Quando um delinqüente intelectual divulga um panfleto asqueroso, que faz a apologia da pancadaria e da tortura, em vez de pedirem cadeia para o autor, preferem jogá-lo nas costas de seus adversários. É uma gente, parece, para a qual o crime sempre é útil, os próprios ou os alheios.

1) Ataques e povo consumidor

Nos ataques que prosperam na rede, as Mafaldinhas e os remelentos mimados me acusam, ora vejam!, de ser um representante da “classe dominante” — ou de estar a serviço dela — e fechar os olhos e tapar os ouvidos ao sofrimento do povo, de que eles seriam os procuradores. Se o povo os ignora e, na verdade, repudia a sua pauta, então é porque está ainda esmagado pela opressão do capital e pelas artimanhas da ideologia dominante, que lhe incute uma falsa consciência que o impede de ter clareza de seu papel revolucionário. É aí que entra, então, o partido — o deles — com o seu papel de vanguarda e de organizador da luta. Escrevo isso e dou um meio-suspiro. Imaginem vocês se Marx estabeleceria esse encadeamento se os “revolucionários” em questão fossem estudantes universitários…

O que essa gente sabe “do povo”, Deus Meu? No máximo, tem notícia dele por intermédio de suas respectivas empregadas, certamente mais “reacionárias” do que eles próprios. Esses radicais, que hoje se querem à esquerda do PT — os petistas assistem aos absurdos da USP pensando apenas em como tirar proveito eleitoral do episódio —, explicam por que foi um operário meio ignorantão, Luiz Inácio Lula da Silva, a empurrá-los para a absoluta indigência intelectual e para o flerte com o banditismo.
Se Lula e seu PT têm promovido o que considero um contínuo rebaixamento institucional do Brasil por conta do aparelhamento do estado e de sua vocação para se estabelecer como partido único, o que certa esquerda considera “progressista”, é fato que o sucesso do Apedeuta, desde quando era sindicalista, se deve justamente a aspectos de sua pregação que esses radicalóides consideram “conservadores”, até mesmo reacionários. Desde quando era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Lula prega a uma platéia de consumidores, não de revolucionários. As três campanhas eleitorais vencidas pelo PT exercitaram, todos sabemos, à farta a lógica do “nós” contra “eles” — aquela bobajada tipicamente esquerdista —, mas sempre ancoradas na democratização das conquistas do capitalismo. Há, sim, uma vasta literatura de esquerda que provaria que Lula é um grande “reacionário”.
O ponto, meus caros, é que o povo vive o, como chamarei?, “malaise” da carência, enquanto esses esquerdistas enfatuados conhecem o “malaise” da abastança. PCO, LER-QI, PSOL e assemelhados oferecem “consciência revolucionária” aos pobres, e estes querem é geladeira nova. Os extremistas do sucrilho e do toddynho lhes propõem utopias, e eles estão de olho no computador. Os delirantes, em suma, lhes acenam com o socialismo, e eles só esperam que o capitalismo também lhes sorria. Foi Lula quem conduziu esses delinqüentes intelectuais para o hospício da política. Em certa medida, ninguém foi, segundo a ótica deles, mais contra-revolucionário do que o ex-presidente — o que não quer dizer que ele seja um democrata convicto. Eu não considero.

2) Desconhecem o povo

Esses extremistas de terceiro grau, sejam alunos, professores ou funcionários, não sabem o que é o povo, quem é o povo, o que quer o povo — e o resultado que logram nas urnas deixa isso muito claro. E então virá a pergunta fatal: “E você, Reinaldo, conhece?” Pois é, conheço, sim! SEM ME CONSIDERAR SEU REPRESENTANTE PORQUE NÃO FUI ELEITO POR NINGUÉM, DEIXO CLARO! E agora começa o caminho um tanto pedregoso, que sempre evitei, porque tenho verdadeiro asco de certas parvoíces sociologizantes. Mais do que isso: a cada vez que vi Lula tentando justificar algumas de suas escolhas equivocadas por causa de sua infância pobrezinha, meu estômago deu alguns corcovos. O Lula que mobilizou os consumidores, se querem saber, merece o meu respeito. O Lula que tenta fazer da pobreza uma cultura merece o meu solene desprezo.
Vamos lá, Reinaldão, coragem! Sabem os meus familiares, sabem os meus amigos próximos, alguns deles jornalistas (sim, os tenho, e queridos!), que fui muito pobre, muito mesmo! E nunca dei uma de coitadinho porque não pode haver poder mais discricionário e asqueroso do que o das vítimas — de quaisquer vítimas — se transformado em categoria de pensamento. A pobreza não existe nem para culpar nem para enobrecer ninguém. Vamos lá ao título. Não! Os meus heróis não morreram de overdose porque isso é luxo que não se consente a determinadas faixas de renda. Essa “overdose” sempre supõe que o tal “herói” foi uma espécie de paladino da luta contra a opressão. Qual opressão? Qualquer uma que possa servir de pretexto para enfiar o pé na jaca.

Se meus heróis não morreram de overdose, tive, isto sim, amigos de infância e pais de amigos que se meteram com a bandidagem e o narcotráfico e que hoje estão mortos. Morreram de “overbalas”. Meu pai trocava molas de caminhão; minha mãe chegou a trabalhar como doméstica. Não me orgulho da profissão que tiveram. Orgulho-me das pessoas que eram — minha mãe, felizmente, viva, forte e ainda mais cheia de opiniões do que eu, hehe. Orgulho-me de seu caráter. Orgulho-me de seu senso de honra. Morei em dois cômodos de madeira até os 5 anos; depois, em dois cômodos de alvenaria até os 15. No fundo do terreno, corria um rio fétido. Nas chuvas, a água invadia a casa. O que isso me ensinou? Digo daqui a pouco. E talvez surpreenda muita gente!

3) Eu era livre para escolher

Tive todas as oportunidades de delinqüir, às quais alguns sucumbiram, numa periferia aonde o asfalto chegou tardiamente, para ter um “Kichute” novo (ainda existe?), uma calça “Lee Americana”, como chamávamos à época, uma “vitrola” para os bailinhos — faziam-se “bailinhos” então. E sempre disse “não!” E fiquei sem o Kichute, a Lee Americana e a vitrola. Eu tenho uma novidade para esses delinqüentes encapuzados e seus professores picaretas: OS POBRES TAMBÉM FAZEM ESCOLHAS MORAIS. Não são umas bestas à espera da iluminação que vocês possam proporcionar. Aliás, eles as fazem mais freqüentemente do que os abastados porque, de fato, suas carências são maiores e maiores as chances de tentação de encontrar um caminho mais curto para obter o desejado.
Disse “não” muitas vezes — e não vai nisso heroísmo nenhum! Não fui o único. Sempre que leio textos de supostos especialistas a demonstrar como os pobres da periferia são vítimas passivas das circunstâncias, sou tentado a pegar um chicote. Porque essa gente não sabe O que nem DO que está falando.
Não, eu não acho que essa minha origem me qualifique para isso ou para aquilo. Não me liguei a grupos socialistas porque quisesse subir na vida (claro!) ou porque achasse que o estado tinha a obrigação de me dar moradia ou o que fosse. A minha questão, desde sempre, tinha a ver com a democracia. Achava, e ainda acho, inaceitável que um governo possa decidir o que devemos pensar, o que devemos dizer, o que devemos calar. Nem governos nem milícias comuno-fascistas da USP ou de qualquer outro lugar.
A propósito da ignorância dos extremistas. Lembro-me, eu tinha 15 anos, de uma “aula” com um “intelequitual” da Convergência Socialista (que está na pré-história do PSTU) a esculhambar o então apenas “sindicalista” Lula, em começo de carreira, porque este seria um “reformista”, empenhado “apenas” em conquistar salários melhores, o que, entendi, era ruim para a libertação dos trabalhadores. O que aquela gente sabia do povo, Deus Meu? Nada! O que sabe ainda hoje? Nada!
Todos os dias, recebo centenas de comentários mais ou menos assim: “Você, que nunca andou de ônibus…”; “Você, que nunca andou de trem…”; “Você, que nasceu em berço de ouro…” Costumo ignorar porque tenho outra novidade para os delinqüentes encapuzados: a abastança pode ser tão opressora quanto a carência! Os que não sabem o que fazer dos benefícios que herdaram podem ter um destino tão ou mais duro do que os que não sabem o que fazer das carências que herdaram. O ponto, desde sempre, não é o que fizeram de você, mas o que você vai fazer do que fizeram de você, compreenderam?

4) Ignorância com efeitos trágicos

Essa ignorância do que são e do que querem os pobres tem efeito terrível na vida dos próprios pobres. A cada vez que vejo ONGs nas favelas do Rio ou na periferia de São Paulo ensinando criança pobre a batucar, a fazer rap, a fazer funk (lá vem chiadeira…), vem-me de novo a vontade de pegar o chicote. Por que pobre tem de batucar? Aos 14 anos, eu já tinha lido toda a poesia de Cecília Meireles e boa parte do que sei de Drummond, por exemplo. Ali, na cozinha de casa. Não porque eu fosse um gênio, o que não sou, mas porque há pobres que se interessam por literatura e não estão dispostos a representar o papel de pobres para satisfazer os anseios dos remelentos e das Mafaldinhas revolucionárias. E não estão dispostos pela simples e óbvia razão de que… JÁ SÃO POBRES. NÃO PRECISAM REPRESENTAR!
Eu conheço o povo, aqueles alunos e professores remelentos não conhecem. Para a chateação e a fúria deles todos, conheço também os textos que lhes servem de referência, com a ligeira diferença de que os li. Safatle, aquele rapaz do cinturão do agronegócio, a esta altura, deve estar radiante: “Eu sabia! Esse Reinaldo é um pobre que se tornou reacionário para subir na vida; um arrivista!” E se sentirá, então, pacificado. Ele, das classes abastadas, se regozijará com a generosidade de sua entrega à causa popular, mesmo vindo das camadas superiores. Já eu, vejam que desastre!, em vez de estar na rua, carregando bandeira; em vez de estar empenhado na libertação da minha classe; em vez de estar exercendo o papel que me foi reservado pelo marxismo sem imaginação dessa canalha, eu, olhem que coisa!, estou aqui a dizer para Safatle que sua citação de um texto de referência é descabida. Corrijo também o seu português. Corrijo, para arremate dos males, o seu latim. Pobre reacionário é mesmo uma merda, né, Safatle? É só ler alguma coisinha, já sai corrigindo os ricos progressistas…

5) Por que isso tudo?

Por que isso tudo? Para tentar ganhar algumas credenciais junto à escumalha moral que anda me satanizando por aí? Eu quero mais é que essa gente se dane. Mas não venha, como se dizia na minha vila, “botar panca” (sim, o certo é “banca”) pra cima de mim, tentando me dar aula do que é povo, do que é pobreza, do que é carência. Eu lhes ensino, seus delinqüentes, como transformar dois ovos e um tomate numa refeição para quatro pessoas, com o acréscimo de farinha de rosca numa omelete sem queijo e sem presunto. A boa notícia para nós é que era gostoso. Fiz Dona Reinalda preparar o prato dia desses. Ficou bom, mas não era a mesma coisa, porque, para citar um trecho que decorei de “No Caminho de Swann, de Proust (só trechinhos, viu? Não quero passar falsas impressões, hehe), “tentamos achar nas coisas, que, por isso, nos são preciosas, o reflexo que nossa alma projetou sobre elas, e desiludimo-nos ao verificar que as coisas parecem desprovidas, na natureza, do encanto que deviam, em nosso pensamento, à vizinhança de certas idéias”. No caso, a omelete de farinha de rosca estava ali, mas as circunstâncias eram outras, como a água do rio que não passa duas vezes pelo mesmo lugar.
A minha história não me faz nem mais nem menos qualificado para coisa nenhuma! Também a pobreza pregressa não é categoria de pensamento. Eu espero que aqueles vagabundos que ficam demonizando meu nome por aí me desprezem ainda mais por isso. Têm a chance de descobrir que as nossas diferenças não estão apenas nas escolhas, mas também nas origens. A pobreza não me ensinou nada de especial. Cabe a cada um de nós o esforço ao menos de tomar a rédea do nosso destino, feito muito mais de opções do que freqüentemente supomos. Mas isso não é uma particularidade da pobreza. Também os ricos, reitero, podem ser oprimidos pela riqueza. “Mas qual opressão é melhor?”, pode perguntar um cínico.
Olhem aqui, minhas caras, meus caros, é claro que governos e políticas públicas têm de se ocupar da melhoria das condições de vida do povo. Com uma escola melhor, uma saúde melhor, uma segurança melhor, aumentam as chances de felicidade. Negá-lo seria uma estupidez. Chances de felicidade, no entanto, não são felicidade garantida. Na pobreza ou na abastança, o que quer que nos faça infelizes sempre está dentro de nós. E não há revolução que dê jeito.
Ah, sim: algum anseio insatisfeito da pobreza ainda me assalta hoje, já que “o menino é o pai do homem”, como escreveu Wordsworth, frase depois retomada por Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”?
Um ferrorama lindão, gigantesco, cheio de traquitanas. No mais, nada faltou, nada excedeu. Cada vida existe na sua exata medida.

Beijo do Tio Rei."

(Publicado no blog de Reinaldo Azevedo)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A USP e a corrosão do caráter - Prof. Roberto Romano

(Publicado no ESP, de 23 de novembro de 2011)

“Acadêmicos brasileiros pouco afeitos à cultura imaginam que noções éticas, morais, científicas surgem apenas em textos considerados relevantes nas seitas universitárias. A preguiça e a pressa na publicação, unidas, logo brotam juízos "definitivos" sobre algum campo do pensamento. Assim ocorre com o tema antigo sobre a presença ou ausência de caráter nas pessoas. Os supostos pesquisadores consideram que o conceito de uma corrupção do caráter aparece com o sociólogo norte-americano Richard Sennett. Esse teórico, é certo, muito ajuda a entender a vida moderna. Seu livro sobre o caráter corrompido integra uma série de textos que narram, com olhar clínico, as mudanças e o estilhaçamento de valores na sociedade urbana ocidental. Com a flexibilização do trabalho e a insegurança resultante, temos a massa dos que perderam a confiança nos governos e nos mercados. Outra obra de Sennett indica a crise da sociedade e do Estado. Trata-se do monumental O Declínio do Homem Público. Ali, ele demonstra o quanto as formas do Estado foram enfraquecidas, após o século 18, em proveito das "intimidades tirânicas", os movimentos que prometem às minorias a defesa de seus direitos sem passar pelos mecanismos do poder público.

Baseando-se na "identidade" assumida pelos indivíduos, tais movimentos assumem formas repressivas das quais é quase impossível escapar. Antes de ser um cidadão, o sujeito pertenceria à sua "comunidade", cujas causas importam mais do que as coletivas. A primeira vítima da corrosão do caráter é a vida pública. Movimentos como os descritos por Sennett conduzem milhões às ruas para exercer pressão sobre a sociedade e o Estado. Mas pouco ou nada fazem diante de descalabros ocorridos na economia, no Judiciário, no Executivo, nos Parlamentos. A identidade maior deixa de ser a cidadania e se transfere para instâncias que defendem particularidades. Sennett respeita os referidos modelos intimistas, mas também mostra o quanto sua pauta é unilateral e autoritária, tiranizando seus adeptos. A corrosão do caráter é potencializada quando os grupos e indivíduos assumem o perfil da militância. O militante padrão, por mimetismo, sacrifica normas éticas, sociais e políticas em proveito de seu movimento, visto por ele como a fonte última dos valores. Todos os demais âmbitos seriam movidos por interesses escusos. A maior parte do material histórico e sociológico usado por Sennett vem dos EUA e da Europa.

No Brasil, temos um campo mais complexo. Aqui, longe de permanecerem distantes e hostis aos poderes públicos, lutando contra eles na concorrência para dominar indivíduos e grupos, movimentos sociais mantêm excelentes tratos com os governos e Parlamentos. Eles sabem aplicar ventosas nos cofres estatais (as ONGs...) de modo a expandir suas forças, mas guardam a retórica contrária ao Estado. A busca de verbas põe a militância ao dispor de partidos políticos hegemônicos. O militante exerce seu fervor de tal modo que, em pouco tempo, pratica o que suas doutrinas condenavam ou condenam. O militante, cujo caráter foi corroído, julga que os interesses sociais alheios à sua pauta são "burgueses", "abstratos", "conservadores". Ele se imagina autorizado a manter em lugares estratégicos oligarcas exímios na arte de roubar os cofres públicos. Na superfície, movimentos como a UNE (e suas subsidiárias) arvoram palavras de esquerda. Mas dão suporte às mais retrógradas forças políticas. Líderes estudantis que ontem lutavam contra a corrupção, ao subirem ao poder de Estado, guardam excelentes relações com oligarcas truculentos.

Entre as manifestações contra Fernando Collor e o realismo de hoje não existiria, para a esquerda oficial, nenhum elo. Os valores antes repetidos qual ladainhas são ditos "bravatas" pelos que aderiram à razão de Estado corrompida. A militância é processo corrosivo a ser notado em todas as profissões. Em todos os setores da vida social e política ela dissolve valores efetivos em prol dos dirigentes demagógicos e de suas alianças em proveito próprio.

A que assistimos na USP nos últimos dias? Lutas contra o arbítrio autoritário dos oligarcas? Denúncias de corrupção política (que lesa milhões de brasileiros em termos de educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia)? Batalhas contra a falta de democracia nos grandes partidos, nos quais os dirigentes são donos das alianças, das candidaturas, dos cofres, sem ouvir as bases? Movimentos contra o privilégio de foro, algo que faz de nosso Estado um absolutismo contrário à República? A pauta dos militantes, professores e alunos é alienada em todos os sentidos, da marijuana ao populismo rasteiro. Militantes fazem sua revolução em escala micrológica contra o reitor, mas os dirigentes nacionais do movimento estudantil negociam apoio aos donos do poder, os verdadeiros soberanos.

Aviso aos bajuladores do petismo: a noção de caráter é velha como o saber humano e foi estudada, sobretudo, por um pensador "burguês", Immanuel Kant. Para ele, o caráter é "marca distintiva do ser humano como racional, dotado de liberdade". O caráter "indica o que o ser humano está preparado para fazer a si mesmo". Dentre as técnicas para a corrosão do caráter, as drogas são as piores. É irresponsabilidade ética afirmar que elas não prejudicam os usuários ou "ajudam a melhorar a imaginação nas artes e nas ciências". A leitura de pesquisas como a de Alba Zaluar, sobre a indústria das drogas, traria prudência aos seus apologetas nos câmpus. Militantes sempre ignoram e combatem a liberdade e a dignidade alheias, basta ver as multidões que apoiaram tiranias modernas, do fascismo ao stalinismo. Hoje, na USP, a militância aposenta a busca de "mudar o mundo". Sobram os coquetéis Molotov para a defesa do nada, da irrelevância absoluta, da morte.”

(Roberto Romano, filósofo, professor de Ética e Filosofia na Unicamp)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Miséria institucional, pobreza nacional - Aldo Pereira

"Mexicano entra nos Estados Unidos e consegue emprego clandestino. Instantaneamente, sua produtividade aumenta cinco vezes.

Isso ocorre porque ele: a) levou consigo alguns quilos de cocaína; b) tornou-se astro do cinema pornô; c) matou-se de trabalhar para um fazendeiro desalmado.
As opções não são de todo implausíveis, mas falta aí uma alternativa correta: nenhuma das outras três. Também faltam outras que, mais a sério, decerto ocorreriam a você: o mexicano ter imergido em ambiente econômico marcado por superioridade tecnológica, infraestrutura mais eficiente, urbanização mais extensa, melhor proveito dos recursos naturais.

Mas, segundo o Banco Mundial, a verdadeira razão deve ser buscada na superioridade do "capital intangível" dos valores institucionais: menos corrupção e inépcia nas instituições, maior eficiência e responsabilidade delas, maior confiança da nação nos seus três Poderes.

Daí a riqueza intangível dos EUA ser 12 vezes a do México (crédito ao jornalista Ronald Bailey, que, ao citar essa diferença num artigo da revista "Reason", inspirou a caricatura do emigrante mexicano).

O estudo que produziu essa conclusão saiu publicado primeiramente no best-seller (acadêmico) de 2006, "Where is the Wealth of Nations?: Measuring Capital for the 21st Century", mas a versão atualizada que o Banco Mundial publica neste ano confirma a tese.

Na busca de resposta para a pergunta do título, especialistas do departamento de economia ambiental do banco computaram, em cada país estudado, recursos como minerais (inclusive petróleo), florestais e agrícolas, maquinário, infraestrutura, patrimônio urbano etc.

E coçaram a cabeça: quando não computado o capital intangível das instituições do Estado, o nível de renda apurado na maioria deles não se mostrava compatível com o valor corrente dos bens acima.

Conclusão do banco: Estado eficiente e eticamente íntegro é o mais importante fator de riqueza em todos os países do mundo.

"Em larga medida, país rico o é em razão da competência técnica de suas populações e da qualidade das instituições que sustentam a atividade econômica." O estudo demonstrou ainda que 57% do capital intangível de um país advém da qualidade de seu sistema judicial; e 36%, da qualidade do ensino.

A cada assalto ou intimação de esmola que sofre, você decerto se pergunta por que o Brasil carece tanto de segurança, saúde, educação, conforto e dignidade. Afinal, somos um dos três ou quatro países mais ricos do mundo em recursos naturais e outros fatores de riqueza, como clima, estabilidade geológica e sossego geopolítico.
Mas, dados de 2010: somos o 91º país no ranking de Renda Nacional Bruta (ex-Produto Nacional Bruto) per capita do Banco Mundial. O México está na 89ª posição.

Valendo a correlação, classificamos aí a qualidade de nossas instituições? Pergunte a um parlamentar. A um governante. A um juiz."
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ALDO PEREIRA é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.

O erro de Foucault - Luiz Felipe Pondé

(Publicado na Folha de São Paulo, em 22 de novembro de 2011)


"Você sabia que o pensador da nova esquerda Michel Foucault foi um forte simpatizante da revolução fanática iraniana de 1979? Sim, foi sim, apesar de seu séquito na academia gostar de esconder esse “erro de Foucault” a sete chaves.

Fico impressionado quando intelectuais defendem o Irã dizendo que o Estado xiita não é um horror.

O guru Foucault ainda teve a desculpa de que, quando teve seu “orgasmo xiita”, após suas visitas ao Irã por duas vezes em 1978, e ao aiatolá Khomeini exilado em Paris também em 1978, ainda não dava tempo para ver no que ia dar aquilo.

Desculpa esfarrapada de qualquer jeito. Como o “gênio” contra os “aparelhos da repressão” não sentiu o cheiro de carne queimada no Irã de então? Acho que ele errou porque no fundo amava o “Eros xiita”.

Mas como bem disse meu colega J. P. Coutinho em sua coluna alguns dias atrás nesta Folha, citando por sua vez um colunista de língua inglesa, às vezes é melhor dar o destino de um país na mão do primeiro nome que acharmos na lista telefônica do que nas mãos do corpo docente de algum departamento de ciências humanas. E por quê?

Porque muitos dos nossos colegas acadêmicos são uns irresponsáveis que ficam fazendo a cabeça de seus alunos no sentido de acreditarem cegamente nas bobagens que autores (como Foucault) escrevem em suas alcovas.

No recente caso da USP, como em tantos outros, o fenômeno se repete. O modo como muito desses “estudantes” (muitos deles nem são estudantes de fato, são profissionais de bagunçar o cotidiano da universidade e mais nada) agem, nos faz pensar no tipo de fé “foucaultiana” numa “espiritualidade política contra as tecnologias da repressão”.

E onde Foucault encontrou sua inspiração para esse nome chique para fanatismo chamado “espiritualidade política”?

Leiam o excelente volume “Foucault e a Revolução Iraniana”, de Janet Afary e Kevin B. Anderson, publicado pela É Realizações, e vocês verão como a revolução xiita do Irã e seu fascínio pelo martírio e pela irracionalidade foram importantes no “último Foucault”.

As ciências humanas (das quais faço parte) se caracterizam por sua quase inutilidade prática e, portanto, quase impossibilidade de verificação de resultados.

Esse vazio de critérios de aplicação garante outro tipo de vazio: o vazio de responsabilidade pelo que é passado aos alunos.

Muitos docentes simplesmente “lavam o cérebro” dos alunos usando os “dois caras” que leram no doutorado e que assumem ter descoberto o que é o homem, o mundo, e como reformá-los. Duvide de todo professor que quer reformar o mundo a partir de seu doutorado.

Não é por acaso que alunos e docentes de ciências humanas aderem tão facilmente a manifestações vazias, como a recente da USP, ou a quaisquer outras, como a dos desocupados de Wall Street ou de São Paulo.

Essa crítica ao vazio prático das ciências humanas já foi feita mesmo por sociólogos peso pesado, em momentos distintos, como Edmund Burke, Robert Nisbet e Norbert Elias.

Essa crítica não quer dizer que devemos acabar com as ciências humanas, mas sim que devemos ficar atentos a equívocos causados por essa sua peculiar carência: sua inutilidade prática e, por isso mesmo, como decorrência dessa, um tipo específico de cegueira teórica. Nesse caso, refiro-me ao seu constante equívoco quanto à realidade.

Trocando em miúdos: as ciências humanas e seus “atores sociais” viajam na maionese em meio a seus delírios em sala de aula, tecendo julgamentos (que julgam científicos e racionais) sem nenhuma responsabilidade.

Proponho que da próxima vez que “os indignados sem causa” ocuparem a faculdade de filosofia da USP (ou “FeFeLeCHe”, nome horrível!) que sejam trancados lá até que descubram que não são donos do mundo e que a USP (sou um egresso da faculdade de filosofia da USP) não é o quintal de seus delírios.

Agem com a USP não muito diferente da falsa aristocracia política de Brasília: “sequestram” o público a serviço de seus pequenos interesses.

No caso desses “xiitas das ciências humanas”, seus pequenos delírios de grande “espiritualidade política”.