sábado, 17 de janeiro de 2015

A liberdade de expressão não pode ter limites (Flemming Rose)


“Era fim de tarde de uma terça-feira, há seis anos, quando o telefone tocou. Uma voz que havia se tornado familiar, do Serviço de Segurança e Inteligência da Dinamarca, disse que dois homens que planejavam me assassinar tinham sido presos em Chicago. O FBI havia frustrado outro ataque planejado ao meu jornal, Jyllands-­Posten, que tinha como alvos específicos a mim e o cartunista Kurt Westergaard. Os terroristas eram um americano e um canadense, ambos de origem paquistanesa. Um estava ligado a atrocidades no ano anterior em Mumbai. Ele já havia visitado a Dinamarca duas vezes em missões de planejamento e comprado sua passagem de volta a Copenhague. Um ano depois, Westergaard teve a sorte de escapar de outra ameaça a sua vida. O artista, de 73 anos, estava assistindo a um filme com sua neta pequena quando um somali com um machado invadiu sua casa para matá-lo. Ele se refugiou em um quarto de segurança que se vira obrigado a construir.

Durante uma década, nós tivemos de viver à sombra de tais ameaças, depois que encomendei uma dúzia de charges retratando Maomé. Foi essa decisão que provocou uma tempestade ao redor do mundo, com a republicação das charges em vários outros jornais. Apesar das tentativas de assassinato, era muito fácil, à medida que a vida seguia, ser levado a acreditar que a ameaça era abstrata.

Tudo isso mudou há duas semanas. Pessoas foram mortas em Paris por causa de charges que ridicularizam o Islã. Nosso pior pesadelo tornou-se realidade. Esses assassinatos desafiam democracias da maneira mais doentia. Representam uma ameaça terrível à liberdade de expressão, que é a base da verdadeira democracia. Os trágicos acontecimentos também expõem nossas próprias hipocrisias, as ilusões e subterfúgios que adotamos para manter a paz a curto prazo, aliados à destrutiva cultura de acusações avidamente exploradas pelos políticos.

Quase que por acaso, eu me envolvi no início do que veio a ser conhecida como a “crise das charges”, que desencadeou tumultos e dezenas de mortes em todo o mundo. Eu havia assumido um cargo de editor cultural em meu jornal depois de anos na estrada como correspondente estrangeiro em Moscou. A crise começou em 2005 de modo bastante inocente. Um autor de livros infantis não conseguia encontrar um ilustrador para um livro sobre Maomé. Vários ilustradores se recusaram a fazer o trabalho por medo. Aquele que concordou em fazê-lo insistiu no anonimato. Havia ainda vários outros casos similares. Teatros, comediantes, tradutores e museus estavam censurando a si mesmos quando o assunto era o Islã. Meu objetivo não era provocar nem zombar de ninguém, mas simplesmente começar um debate a respeito de autocensura em nosso tratamento do Islã em comparação com outras religiões. Ao propormos uma demonstração prática — “Mostre, não conte”, um princípio jornalístico —, queríamos deixar que os leitores formassem as próprias opiniões. Como constatamos, temores de violência pela ridicularização de um símbolo religioso estavam longe da fantasia.

Jamais poderia conceber que seria condenado como racista e que seria incluído em uma lista de alvos da Al Qaeda. Pediam-me que me desculpasse por eventos subsequentes. Fui considerado culpado pela reação exagerada e letal de outros. Depois da tragédia francesa, perguntaram seguidamente qual fora a minha reação. Acho estranho que pessoas que acolhem a diversidade quando o assunto é cultura, religião e etnia não consigam acolher a mesma diversidade quando se trata de nos expressarmos. Essas pessoas estão basicamente dizendo que, quanto mais multicultural a sociedade se tornar, menos liberdade de expressão será necessária. Parece-me uma posição deturpada. Deveria ser o contrário. Quanto mais diferentes formos, mais precisaremos do intercâmbio de opiniões aberto e livre.

Infelizmente, os governos defendem restrições à liberdade de expressão com a desculpa de manter a paz e evitar conflitos entre grupos diferentes. Assim, banem discursos que consideram de ódio e blasfêmia. Em 2004, Theo van Gogh foi morto, em Amsterdã, depois de fazer um filme sobre a cultura islâmica. O ministro da Justiça da Holanda respondeu dizendo que a vida dele poderia ter sido salva se no país houvesse leis mais severas sobre discursos de ódio. Mas não são apenas os governos que defendem essa abordagem equivocada. A indústria dos direitos humanos também defende limitações. Uma vez me pediram para participar de um painel de discussão organizado pela Anistia Internacional sob a bandeira “Vítimas da liberdade de expressão”. Sugeri que só havia vítimas de crime em uma sociedade baseada no Estado de direito e que a ideia de que pessoas que exerciam direitos legais de longa data eram vítimas não fazia sentido. Meus comentários despertaram raiva.

A charge de Maomé feita por Westergaard tem sido criticada por ser racista ou por estigmatizar os muçulmanos. Discordo totalmente. Ele retratou Maomé como representante do Islã, da mesma forma que imagens de Jesus se referem à cristandade, de Karl Marx ao marxismo, de Tio Sam aos Estados Unidos. Retratar Karl Marx com sangue nas mãos, o Cristo crucificado segurando uma cerveja ou o Deus cristão armado com uma bomba não significa que você pensa que todos os marxistas são assassinos sedentos de sangue ou que os cristãos são beberrões ou terroristas. A charge de Westergaard ataca uma doutrina religiosa linha-dura, não um grupo particular da sociedade.

Uma vez perguntaram a Philippe Val, antigo editor-chefe do Charlie Hebdo, se eles não haviam passado dos limites com charges que satirizavam Maomé. “Que tipo de civilização é a nossa se não podemos ridicularizar aqueles que soltam bombas em trens e aviões e cometem assassinatos em massa de civis inocentes?”, respondeu Val. Essa é uma pergunta crucial. Queremos viver em uma tirania de silêncio ou defender o direito de ofender? Esses tipos de charge podem ser ofensivos para alguns. São pensados para agitar o debate. Mas rotular essas imagens como racistas é enganoso e perigoso. Se alguém coloca raça e religião no mesmo patamar, corre o risco de apoiar aquelas forças sinistras que afirmam que a apostasia (a renúncia da fé) é impossível e que o abandono da religião é um delito grave. Muitos muçulmanos acreditam que nascem dentro de sua fé e que seria um crime sério abandonar o Islã. Tratam a religião como se fosse uma raça. Não podemos aceitar essa lógica.

Parece que como sociedade estamos mais preocupados em proteger a sensibilidade de grupos do que em defender os direitos democráticos históricos aos quais faremos jus como seres humanos. Os assassinos de Paris acreditavam sinceramente que os seres humanos do Charlie Hebdo mereciam morrer por causa de suas charges ofensivas. Sentiam que isso era justificado por sua interpretação militante do Islã. Mas os assassinatos também aconteceram em meio a uma cultura de injustiça que incita as pessoas a se ofender cada vez que alguém diz alguma coisa da qual não gostam. O pressuposto é que não existe nenhuma diferença real entre palavras e atos, entre um insulto verbal e a violência física. Em um artigo meu de dez anos atrás, escrevi que nenhuma religião poderia exigir direitos especiais em uma sociedade secular e que os indivíduos devem estar preparados para sofrer desprezo, zombaria e ridicularização. Em vez de exigirmos que as pessoas façam treinamentos de sensibilidade quando dizem algo ofensivo, talvez devêssemos todos ser mandados para treinos de insensibilidade. Precisamos criar pele mais grossa para garantir que a liberdade de expressão possa sobreviver num mundo multicultural".

(Publicado na revista VEJA)

- Flemming Rose é editor do Jyllands-Posten e autor do livro The Tirany of Silence (A Tirania do Silêncio)

O papa boxeador e as liberdades gêmeas (Carlos Graieb)

"Numa conversa com jornalistas nesta quinta-feira, durante uma viagem do Sri Lanka às Filipinas, o papa Francisco foi indagado sobre o massacre no jornal francês Charlie Hebdo. A primeira parte da resposta foi a esperada: ele repudiou o uso da religião para justificar atrocidades. A segunda parte fugiu um tanto do script. Francisco apontou um auxiliar e disse que, se ouvisse dele um palavrão contra sua mãe, seria natural que lhe aplicasse um murro. “Dou esse exemplo para mostrar que na liberdade de expressão há limites”, afirmou Francisco. Ele ainda lamentou que existam “provocadores” – gente que fala mal das religiões.

Pouco mais tarde, o Vaticano julgou prudente esclarecer que as declarações do papa boxeador foram feitas em tom “coloquial e amigável” e não pretendiam de maneira nenhuma incitar a violência. Seria mesmo absurdo comparar a pilhéria infeliz do papa com a fala dos clérigos radicais que dizem aos seus seguidores, com sangue nos olhos, que é um dever pegar em armas e aniquilar os infiéis. Francisco não chamou à Guerra Santa nem pregou a intolerância. Mas é fato que, ao dizer o que disse, ele se juntou ao coro dos que “compreendem” que alguém reaja com a força física quando zombam de uma crença religiosa. 

Há todo tipo de voz nesse coro. Há líderes religiosos, intelectuais e gente comum na internet. Há os tolos, os covardes, os de má fé. Falemos apenas dos "homens de boa vontade": aqueles que sinceramente acreditam que a sensibilidade dos religiosos merece uma proteção especial nos debates públicos — que ela deve ser posta a salvo dos espíritos sarcásticos ou debochados.

Os cartunistas do Charlie Hebdo pagaram com a vida por discordar dessa ideia. Mas eles não discordavam por mero espírito de porco. Em 2012, em meio a um intenso debate que se desencadeou na França depois que outra série de charges do jornal fez chacota do islamismo e do profeta Maomé, Stéphanne Charbonnie – Charb, editor-chefe do semanário e um dos assassinados no ataque à publicação – perguntou: “Quando as religiões invadem o espaço da política, elas não se tornam alvo para críticas e charges, como acontece com os políticos?”

A pergunta pressupõe toda uma herança: a herança da separação entre Igreja e Estado, um dos esteios da cultura democrática que floresceu nos últimos duzentos anos.
É curiosa a formulação de Charb. Ele não aponta o dedo contra a religião propriamente dita, mas contra a religião “que invade o espaço da política”. Esse tipo de religião é aquele que nega que alguma esfera da vida humana possa existir à margem dos preceitos de um livro sagrado (ou, com mais frequência, daquilo que algum fanático alega ser a pregação de um livro sagrado). É a religião que mata para impedir a pesquisa científica, para eliminar os não-convertidos ou para construir um novo califado no século XXI.

Na formulação de Charb, a religião como questão da alma continua inteiramente preservada. E aqui é importante lembrar que a doutrina da separação entre Igreja e Estado não surgiu na Europa do século XVIII como inimiga da religião, mas, ao contrário, para proteger minorias de serem obrigadas a adotar uma fé contra a sua vontade. No mesmo século, ao promulgar sua constituição e sua Carta de Direitos, os Estados Unidos deram um passo além: lá, pela primeira vez, o direito de rezar para quem se quisesse, da forma como se quisesse, nasceu de um acordo entre os cidadãos, e não da outorga de um rei "benévolo”. 

O mundo moderno respeita e protege a fé porque inscreve nas constituições as liberdades de religião e de culto. Mas há uma contrapartida: a política tem de ser protegida de qualquer imposição da crença, seja ela uma crença específica ou o "espírito religioso” tomado de forma genérica. Isso não significa que argumentos de inspiração religiosa não possam ser usados no debate público. Significa apenas que eles estão sujeitos ao mesmo escrutínio, à mesma crítica e à mesma eventual erosão pelo humor que qualquer outro raciocínio derivado de uma doutrina política ou de uma “religião secular” (era assim que o intelectual francês Raymond Aron se referia às ideologias). Para garantir que seja dessa maneira, a liberdade de expressão também está inscrita nas constituições. São duas liberdades gêmeas, como fica evidente na primeira emenda à constituição americana — onde se estabelece um pacto feliz entre o espírito das Luzes e a Fé. 

Sociedades democráticas e pluralistas têm uma arquitetura engenhosa, mas delicada. Quem aceita que uma liberdade seja cerceada, logo pode se ver sem todas elas. As ditaduras de esquerda do século XX amordaçaram seus cidadãos e também lhes impuseram o ateísmo. Fascistas do Corão como os irmãos Kouachi, que invadiram a redação do Charlie Hebdo com seus rifles Kalashnikov e mataram doze pessoas não são muito diferentes. Dizer que eles eram inimigos da liberdade de expressão é um pedaço da verdade. O mundo onde os irmãos Kouachi gostariam de viver só tem espaço para o comando autoritário da versão radical do islamismo que os seduzia. Eles eram também, e antes de mais nada, inimigos da liberdade de religião. Os homens de boa vontade que julgam correto silenciar os irreverentes e os debochados para não ferir a suscetibilidade dos crentes deveriam pensar sobre isso". 


(Publicado em VEJA de 16/01/2015)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Islã: a ameaça totalitária

É necessário voltar ao assunto do assassinato de jornalistas numa redação, e de judeus inocentes dentro de uma mercearia  em Paris. Sem concordar com os atos abomináveis, é possível entender os atentados ao jornal Charlie Hebdo. As habituais críticas cultivadas pelo semanário, ainda mais contundentes quando recheadas de corrosiva ironia, tem um efeito explosivo. Somente uma sociedade aberta é capaz de dar guarida a tal tipo de manifestação. Mas, e os judeus comuns que morreram fuzilados na mercearia, homens e mulheres que estavam somente a comprar comida, coisa corriqueira no normal da vida de todo cidadão? Qual a justificativa para este ato de barbárie se não o mais rombudo anti-semitismo? Haveria uma lógica (torta, é verdade) nas represálias às quais os terroristas julgavam ter direito contra os caricaturistas. A ironia fere. Fere mais quando está lastreada em fatos da realidade. E os judeus vítimas de seus ataques? Como justificar tal conduta criminosa? Por determinação do Eterno? Islã significa submissão à vontade de Deus. Seria vontade de Allah os homicídios de judeus? Quem faz tal interpretação dos livros sagrados e transmite-a para os devotos a fim de ser seguida? Numa sociedade aberta tais conjunções seriam inimagináveis.

Os aiatolás e outros potentados muçulmanos se incomodam com as ironias porque sabem, no fundo no fundo, que suas confusas e cruéis formulações possuem algo de risível no seu meio. Há coisa mais ridícula, por exemplo, que o jeitão das tais lideranças jihadistas que vivem aparecendo nos meios de comunicação? O tal comandante da Al Qaeda no Iemen (o mesmo que assumiu a autoria da ordem de matança parisiense), já é, em si, uma caricatura viva, com seu olhar insano e sua longa barba tricolor (preta, branca e amarela). Faria sucesso no carnaval do Rio de Janeiro. O problema é que ele gosta de andar armado, e se julga no direito de decidir quem pode viver e quem deve morrer. Ele, no entanto, não pode ser considerado um psicopata ou portador de algum distúrbio mental, alguém digno de ser mandado ao manicômio. Não. Esse sujeito é normal, dentro dos parâmetros dos devotos do Islã. Gente como ele acha perfeitamente correto jogar bombas em inocentes ou atirar em judeus desarmados, pelo simples fato de serem judeus, como fizeram no último 7 de janeiro.

A grande questão a ser debatida nos dias de hoje tem a ver com os fundamentos totalitários de determinadas organizações, religiosas ou políticas. Mais que nunca, é fundamental retomar o debate proposto por Karl Popper em sua obra "A sociedade aberta e seus inimigos". O mundo da democracia constitucional (onde há divisão de poderes e respeito aos direitos humanos), é incompatível com o mundo dos adeptos de religiões como o islamismo. No Islã não cabe o conceito de "indivíduo", que foi a grande conquista obtida pelas sociedades ocidentais após a Reforma Protestante.

Decifra-me ou te devoro. Continua valendo o desafio milenar.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O monólogo vermelho (Arnaldo Jabor)

Como se fora um intelectual petista, Arnaldo Jabor tece delicioso texto distópico. O delírio da narrativa se encerra com a imagem da tumba de Lula, em Brasília, similar à de Lenine, em Moscou.

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“Eu sou de esquerda. E tenho muito orgulho disso. Eu sou bom, minha consciência é limpa. Eu sou tão superior a esta população de idiotas, alienados, que inflo o peito com alegria ao ver-me pairando acima da massa de babacas tanto da pequena burguesia quanto da elite branca, que deve ser arrasada para que impere a verdadeira elite vermelha, que sou eu, somos nós. Como será maravilhoso o fim da propriedade privada, mesmo que para isso seja necessário enquadrar, prender, até matar reacionários como fizeram nossos chefes tão criticados pelos social-democratas, os maiores inimigos da Revolução. Lembro sempre as palavras de Trotski: ‘Quem foi que disse que a vida humana é sagrada?’.
Claro que os dirigentes terão direito a apartamentos duplex ou triplex, automóveis oficiais, porque afinal ter o controle dos meios de produção, limitação da mídia, dá muito trabalho — e não são privilégios, não; são direitos nossos de comandantes na construção do futuro. Desde que entrei no Partido, sou parte de um olimpo de pessoas extraordinárias. Nos olhamos com o doce sentimento de pairar acima das multidões. Ai, que bom... participar de comitês revolucionários com discussões ideológicas que se estendem até o cu da madrugada, sair ao amanhecer e ver a multidão de operários indo para o trabalho, enquanto nós decidíamos seu futuro. Mesmo as brigas internas me emocionavam, aquela luta pela fome de subir no Partido, a vigilância do outro, o silêncio sobre os erros, as falsas autocríticas, até mesmo a alegria de injustiças feitas em nome do Bem.
Eu sou um elo da cadeia que vai desde a revolução soviética, em 1917, até hoje, na grande reconstrução da Venezuela feita pelos nossos irmãos bolivarianos. Ainda bem que o Putin está refazendo tudo que a URSS perdeu por obra dos agentes do imperialismo ianque, pois todos sabemos que o canalha do Gorbatchov foi treinado na CIA. Depois que eu virei um revolucionário do Partido, faço sucesso com as companheiras e mesmo as reacionárias, o que me dá, ao comê-las, uma mistura de prazer com vingança. Mas, o grande prazer é sentir-se na ‘linha justa’, é saber que nada é culpa nossa, mas do imperialismo americano, este dragão do mal que até instilou câncer no corpo do comandante Chávez, como ele próprio denunciou, na forma de um passarinho no ouvido do comandante Maduro.
Aí, ficam os neoliberais nos acusando de roubo das companhias estatais, como a Petrobras. Mas, nós temos o direito de desapropriar instituições para financiar nosso futuro. A Petrobras sempre foi nossa, sempre foi um tesouro dos amantes do povo, sempre esteve ali como um motor para mover a revolução nacionalista. Armar grandes fontes de propinas que caem em nosso partido é um gesto revolucionário. Tudo bem que o valor da Petrobras tenha caído de R$ 700 bilhões para R$ 150 bilhões por causa dos escândalos, dos roubos, mas nos consola saber que esse dinheiro desviado foi para o Bem do povo que professamos, pois não há Bem sem verba.
Aliás, nem só a Petrobras, mas qualquer companhia pública do país nos favoreceu: aeroportos, portos, fundos de pensão (oh... maravilha!) podem ser desapropriados (ou predados, como dizem os neoliberais), pois estamos a criar um novo país. Ainda não sabemos como será, mas certamente queremos que o Estado seja dono de tudo, inclusive do desejo das pessoas, livres da sociedade alienada onde se acoitam os inimigos do povo.
Esse papo de democracia é muito sem ‘design’, muito falatório, muitas opiniões, muita liberdade e uma insuportável multiplicidade de desejos. Bom é o ‘um’, em vez do burburinho de opiniões diversas. Por isso eu amo a Coreia do Norte. Tudo bem que eles sejam um pouco radicais, mas há que reconhecer que vibro com o universo controlado que o Kim armou para organizar tudo. Os passos de ganso dos desfiles patrióticos, toda a população chorando e fingindo teatralmente quando morreu o pai do Kim. Como é belo tudo isso; parece haver só um homem, todos iguais ao próprio presidente Kim, com seu cabelinho cortado que todos devem copiar...
Ah... que saudades dos velhos tempos de 1963... Agora estamos voltando a essa época. Por isso desenterramos o Jango para revigorar a boa ‘teoria da conspiração’, afirmando que ele foi envenenado pelo imperialismo. Minha fé no Partido me deixa muito feliz, porque o comunista não morre nunca; somos seres sociais como as formigas, e por isso, a morte individual pequeno-burguesa não me atingirá — sinto-me eterno.
Agora estamos sob ataque das forças da elite conservadora. Muitos supostos crimes foram delatados e nos chamam de organização criminosa. Nada disso. Não temos medo das consequências jurídicas, porque sei que essas revelações são tantas que cairão na vala comum do Poder Judiciário, que não tem como julgar tanta coisa. Com chicanas e recursos e ministros petistas vai se criar um congestionamento de processos que vão virar uma massa informe que tem como aliada o esquecimento.
E mesmo que isso tudo signifique o desprestígio total do Brasil no mundo, me consola a certeza de que mudamos o Brasil, mesmo transformando-o num lixo porque, afinal, não acreditamos no conceito de ‘país’— somos um sistema.
E tem muita gente que me pergunta como vejo o futuro do país. Bem, eu imagino Brasília tomada de uma vez por todas. As praças e prédios do poder invadidos e aparelhados, com multidões na Praça dos Três Poderes aclamando os líderes do nosso futuro, protegidos pelas milícias do MST e pela guarda pretoriana dos intelectuais orgânicos das universidades e pelos pelotões do Bolsa Família.
Já vejo com emoção a brancura dos monumentos e dos palácios cobertos de milhares de bandeiras vermelhas ao vento e o grande pendão da esperança vermelha tremulando no mastro central”.
E mais: onde era o monumento do JK estará o grande caixão de cristal onde jazerá o Lula, embalsamado para toda a eternidade!”




Raqqa, aqui (Demétrio Magnoli)

(Publicado em 12/12/2015 em O Globo)

"Enquanto, na França, dezenas de milhares saíam às ruas para dizer “Eu sou Charlie”, professores universitários brasileiros saíam de suas tocas para celebrar o terror. Não começou agora: é uma reedição das sentenças asquerosas pronunciadas na esteira do 11 de setembro de 2001. São sinais notáveis da contaminação tóxica de nossa vida intelectual e, especificamente, da célere conversão de departamentos universitários em latas de lixo do pensamento.

A mensagem dos franceses foi um tributo à vida e à civilização. “Eu sou Charlie” não significa que concordo com qualquer uma das sátiras do Charlie Hebdo.

Significa que concordo com a premissa nuclear das sociedades abertas: a liberdade de expressão é, sempre, a liberdade daquele com quem não concordo. Isso, porém, nunca entrará na cabeça de nossos mensageiros da morte.

Seu discurso padrão começa com uma condenação ritual do ato terrorista: “É claro que não estou defendendo os ataques”, esclareceu de antemão uma dessas tristes figuras, antes de entregar-se à defesa, na forma previsível da condenação das vítimas “justiçadas”.

“Não se deve fazer humor com o outro”, sentenciou pateticamente Arlene Clemesha, que ostenta o título de professora de História Árabe na USP, para concluir com uma adesão irrestrita à lógica do terror jihadista. É preciso, disse, “tentar entender” o significado do ataque: “um atentado contra um jornal que publicou charges retratando o profeta Maomé, coisa que é considerada muito ofensiva para qualquer muçulmano”.

Clemesha é só uma, numa pequena multidão acadêmica consagrada à delinquência intelectual. No mesmo dia trágico, Williams Gonçalves, professor de Relações Internacionais na Uerj, esqueceu-se do cínico aceno prévio para expor logo sua aguda visão sobre o “controle social da mídia” e, de passagem, candidatar-se a porta-voz oficial do Estado Islâmico: “Quem faz uma provocação dessas”, explicou, referindo-se aos cartunistas assassinados, “não poderia esperar coisa muito diferente”.

O curioso, nas Clemeshas e nos Gonçalves, é que eles rezam pela mesma cartilha que Marine Le Pen, apenas com sinal invertido. O nome dessa cartilha é “choque de civilizações”.

Na onda de islamofobia que varre a França, surfam dois lançamentos recentes. O livro “Le suicide français”, do jornalista ultraconservador Éric Zemmour, alerta contra a destruição da cultura francesa por vagas sucessivas de imigração muçulmana.

O romance “Soumission”, de Michel Houellebecq, imagina a França governada por um partido islâmico no ano agourento de 2022. Segundo a gramática do “choque de civilizações”, o Islã não cabe na França: um muçulmano só pode ser um francês se, antes, renunciar à sua fé.

Os nossos Gonçalves e Clemeshas estão de acordo com isso –mas preferem que, para acolher os muçulmanos, a França renuncie a suas leis e a seus valores, entre os quais a laicidade do Estado. E, no entanto, apesar de Zemmour, Houellebecq, Clemesha, Gonçalves e Le Pen, milhares de muçulmanos franceses exibiram nas ruas os cartazes com a inscrição “Eu sou Charlie”…

Karl Marx escreveu cartas elogiosas a Abraham Lincoln. Leon Trostsky contou com a colaboração inestimável do filósofo liberal John Dewey para demolir as falsificações dos Processos de Moscou. Entre um evento e outro, o socialista August Bebel qualificou o antissemitismo como “o socialismo dos idiotas”.

Em outros lugares e outros tempos, o pensamento de esquerda confundiu-se com o cosmopolitismo e produziu as mais comoventes defesas das liberdades civis. No Brasil de hoje, com honoráveis exceções, reduziu-se a um pátio fétido habitado por “black blocs” iletrados, mas fanaticamente antiamericanos e antissemitas.

“Não se deve fazer humor com o outro”, está escrito na lápide definitiva que cobre o túmulo do humor. Raqqa, a sede do califado, é aqui. “Eu sou Charlie”.


domingo, 11 de janeiro de 2015

Perguntas para Maha Abdelaziz, professora do Centro Islâmico de Brasília

O jornalista Gabriel Garcia fez quatro perguntas para Maha Abdelaziz, professora do Centro Islâmico de Brasília. Quem se espantar, deve ler novamente as respostas dadas. A dama merece ganhar uma burka.
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1)    Como a comunidade muçulmana avalia os ataques radicais, como o ocorrido na França?
Claro que eu não sou favorável ao terrorismo, à matança, ao derramamento de sangue, mas morrem nove pessoas e o mundo vira de ponta a cabeça. Morreu um milhão de pessoas no Egito, na Síria, na Palestina, em Borno (Nigéria), mas ninguém fala nada. Um dia antes do acontecimento na França, morreram milhares de muçulmanos em Borno. Os muçulmanos estão sendo perseguidos.
2)    Qual a orientação a respeito das críticas feitas à religião?
Não pode haver agressão, não aceitamos que se agrida moralmente ninguém. Isso é uma agressão. Eles (jornalistas do Charlie Hebdo) tiveram um ato violento moralmente. Foi uma crítica moral ao nosso profeta.
3)    Ataques radicais não comprometem a credibilidade muçulmana?
Claro. A religião muçulmana é uma religião da paz. Quando respondi a primeira pergunta, demonstrei indignação com a opinião do mundo. Quando morre meia dúzia de não muçulmanos, o mundo vira de ponta a cabeça, sendo que estão morrendo milhares de muçulmanos e o mundo fica olhando de camarote.
4)    Como separar os muçulmanos fieis, aqueles pacíficos, dos radicais?

Tais termos são plantados para denegrir a imagem dos muçulmanos. Não existe terrorista, radical. Todo mundo tem o sangue quente. Como massacram os muçulmanos no mundo inteiro e não querem uma reação? Cada ação tem uma ação do mesmo tamanho e no sentido contrário. Seria tolo e idiota tanta violência, tanto massacre e ficarmos olhando. Esses ataques que vocês chamam de terrorista é uma resposta a tanta barbaridade que acontece contra os muçulmanos. Nossa religião não incentiva violência, jamais incentiva derramamento de sangue, só que infelizmente essa é a resposta à crueldade. Vocês podem esperar coisa pior.
(Publicado no blog do Noblat, em 11/01/2015)