As malandragens de Barroso passo a passo; melhor ficaria se fosse paço a paço, como diria Vieira num de seus sermões.
Este blog vai esclarecer por partes a
tremenda confusão criada por Luís Roberto Barroso, e legitimada pelos
demais ministros do Supremo Tribunal Federal que seguiram seu voto, na sessão
plenária sobre o rito do impeachment.
I - “Aliás, uma das provas
de que um argumento está correto é a necessidade de desconstruí-lo
com uma falsidade.”
A frase de Barroso no artigo em que
ele tenta culpar a edição do vídeo que o mostra omitindo o trecho final do
inciso III do artigo 188 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados aplica-se
ao próprio ministro no momento em que a usa. Escreve Barroso:
“Voltando ao vídeo, deliberadamente
truncado, cabe rememorar a passagem inteira, que não tem mais do que dois
minutos. Quando eu estava votando, o ministro Teori pediu um aparte e leu
uma passagem do artigo 188, III. Ele supôs que teria aplicação ao caso a parte
inicial do dispositivo e a leu, parando ANTES do final, onde se encontrava a
locução ‘e nas demais eleições’. Enquanto raciocinava para responder a ele (já
que o meu voto sequer mencionava o tal dispositivo), li de novo exatamente a
mesma passagem que ele havia lido. Antes que eu concluísse o meu raciocínio, o
ministro Teori fala: ‘V. Exa. tem razão’. Nessa hora, paro de responder a
ele e volto para o meu voto. Simples assim”.
É uma falsidade. Ou melhor: três
falsidades, como os vídeos da sessão demonstram mais abaixo.
1) Barroso (com expressões
como “Sim, mas olha aqui” e “Peraí”) é quem interrompe o aparte de Teori
Zavascki, que, segurando páginas soltas, havia se atrapalhado na leitura
quando o texto do artigo 188 passara de uma página a outra.
2) ANTES da intervenção de Teori
para endossá-lo, Barroso não apenas omite a locução “e nas demais
eleições” como ainda acrescenta o comentário: “Eu não vislumbro esta
exceção como sendo uma exceção de voto secreto”.
Só no meio desta frase é que o
atrapalhado Teori, aparentemente sem notar a omissão, diz: “V. Exa. tem razão”.
3) O raciocínio de Barroso não é
interrompido com a intervenção de Teori. Tanto que Barroso emenda o ataque
a Eduardo Cunha com uma frase que consta praticamente igual em seu voto
por escrito: “E considero, portanto, que o voto secreto foi instituído por uma
deliberação unipessoal e discricionária do presidente da Câmara no meio do
jogo!”
Repito: Barroso acusa os outros
daquilo que faz, como qualquer militante de esquerda. “Simples assim.”
II - A edição existente
no vídeo do Portal Vox a que Barroso se refere não muda em nada, no fim das
contas, a denúncia da omissão descarada feita pelo ministro, muito menos a
crítica à fragilidade de sua argumentação.
Transcrevo abaixo a fala completa de
Barroso, deixando em vermelho o trecho cortado:
─ Alguém poderia imaginar que o Regimento
Interno da Câmara pudesse prever alguma hipótese de votação secreta legítima. Acho até que poucas.
Mas algumas. Uma que todos reconhecem legítima é, por exemplo, a eleição da
Mesa da Casa. Mas
eu vou ao Regimento Interno da Câmara dos Deputados e quando vejo os
dispositivos que tratam da formação de comissões, permanentes ou temporárias,
nenhum deles menciona a possibilidade de votação secreta.
Eis o vídeo “editado”: https://youtu.be/LLGEAlyMdQA
Eis o vídeo sem cortes: https://youtu.be/W1g1SNFVA2U
Truncada, na verdade, é a fala de
Barroso, assim como seu voto e seu artigo. Mas este blog vai esclarecê-la.
No trecho em vermelho, o
ministro reconhece como legítima uma das votações secretas especificamente
previstas no inciso III do artigo 188, do regimento da Câmara.
Ou seja: o voto oral de Barroso
mencionava, sim, “o tal dispositivo”, embora ele não tenha sido a base da sua
argumentação, como já se verá.
Em seguida, quando Barroso fala em
“dispositivos que tratam da formação de comissões”, ele não diz explicitamente,
mas se refere, na verdade, ao artigo 33 do mesmo regimento (este, sim, a base
da sua argumentação), que não fala em votação alguma – nem secreta nem aberta –
nem especificamente em comissão especial de impeachment.
Neste momento, Teori pediu o aparte,
porque julgou que o inciso III do artigo 188 previa, sim, votação secreta para
o caso de tal comissão – e então se deu o que descrevi no item anterior.
Ou seja: Barroso omitiu que o artigo
188, de fato, previa votação secreta para as “demais eleições” – e restringiu
sua argumentação ao artigo 33 (que vou comentar no próximo item).
“O que a edição do vídeo fez, seguindo o
padrão ético que nós precisamos superar no Brasil, foi cortar a parte inicial e
final do diálogo, criando o erro deliberado na percepção do ouvinte”, acusou Barroso.
Na verdade, a edição foi até
benevolente com o ministro ao deixar de lado que ele tinha conhecimento do
inciso cujo trecho final insistiu em ignorar ao ser confrontado por Teori. E
também foi benevolente com o público, ao privá-lo de ouvir a ladainha de
Barroso por mais tempo que o necessário, como em qualquer edição jornalística
desprovida de má-fé.
O “padrão ético que precisamos
superar no Brasil” é o da obscuridade dos ministros do STF, agravada
pela arrogância que demonstram diante das críticas feitas por pagadores de
impostos, responsáveis por seus imensos salários e benefícios.
III - Agora vamos à
questão crucial: artigo 188 X artigo 53.
Qual deles se aplica ao caso da
comissão especial do impeachment? Se ambos pertencem ao regimento interno da
Câmara, a quem cabe julgar isso? Essas são as perguntas certas, que este blog
vai responder.
Barroso escreveu em sua tentativa de
explicação:
“Em primeiro lugar, o meu voto sequer
citava o art. 188, III do Regimento, por não ser ele aplicável à hipótese. O
art. 58 da Constituição prevê que as comissões serão constituídas ‘na forma’ do
regimento da casa legislativa. E o Regimento da Câmara prevê expressamente
(art. 33) que os membros da comissão serão indicados pelos líderes.
Simplesmente não há eleição alguma. O art. 188, III não tem qualquer
pertinência. Por 7 votos a 4 o Tribunal chancelou esse ponto de vista.”
Esse ponto de vista, claro, requer
determinadas malandragens, que já vou lembrar quais são.
Primeiro, relembro
textualmente o artigo 58 da Constituição: “o Congresso Nacional e
suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma
e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de
que resultar sua criação”.
Segundo, exponho com benevolência o
artigo 33 do regimento, com grifos nos pontos que supostamente embasam a tese
de Barroso:
“Seção III
Das Comissões Temporárias
Art. 33. As Comissões Temporárias
são:
I – Especiais;
II – de Inquérito;
III – Externas.
§ 1º As Comissões Temporárias compor-se-ão do número de membros que
for previsto no ato ou requerimento de sua constituição, designados pelo
Presidente por indicação dos Líderes, ou independentemente desta
se, no prazo de quarenta e oito horas após criar-se a Comissão, não se fizer a
escolha.”
Acontece que há, pelo menos, mais
duas omissões de Barroso aqui:
1) A comissão especial do impeachment
não está incluída de forma específica entre as comissões especiais citadas no
artigo 33 do regimento.
Isto porque a seção III do regimento
é seguida de três subseções sobre cada tipo de comissão citada no artigo 33. A
subseção I trata “das comissões especiais”, especificando seus propósitos no
artigo 34:
“Art. 34. As Comissões Especiais
serão constituídas para dar parecer sobre:
I – proposta de emenda à Constituição e projeto de código, casos em que sua
organização e funcionamento obedecerão às normas fixadas nos Capítulos I e III,
respectivamente, do Título VI;
II – proposições que versarem matéria de competência de mais de três Comissões
que devam pronunciar-se quanto ao mérito, por iniciativa do Presidente da
Câmara, ou a requerimento de Líder ou de Presidente de Comissão interessada.”
Ou seja: o regimento não diz que as
comissões especiais darão parecer sobre pedido de impeachment. O texto,
portanto, refere-se apenas a comissões especiais constituídas para
dar os tipos específicos de pareceres citados.
Aqui, ao contrário do artigo 188, não
há a locução análoga “e nas demais comissões especiais”. Ou seja: Barroso
omitiu no artigo 188 o trecho que legitimava a votação secreta e, na
prática, acrescentou ao artigo 33 um trecho que legitimaria a formação da
comissão especial do impeachment, que não é citada textualmente nem mesmo como
uma hipótese restante.
Como veremos adiante, Barroso faz
exatamente o que acusa Eduardo Cunha de fazer: “estender hipótese inespecífica”
(neste caso, de formação de comissões temporárias prevista no regimento), “por
analogia”, à comissão especial de impeachment.
Ainda que não fosse assim, a lei
abaixo derruba a tese de Barroso e este blog mostra como ele força à mão para
mantê-la de pé.
2) A lei específica sobre o
impeachment fala em “comissão especial eleita”.
a) Relembro o artigo 19
da Lei 1.079 de 1950:
“Recebida a denúncia, será lida no
expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial ELEITA
[grifo meu], da qual participem, observada a respectiva proporção,
representantes de todos os partidos para opinar sobre a mesma”.
Esta foi a lei que embasou a decisão
absolutamente legítima do presidente da Câmara de recorrer ao artigo 188 do
regimento interno que trata das eleições realizadas na Casa – e, também,
de permitir chapa alternativa, sob o argumento igualmente legítimo
que uma eleição pressupõe disputa.
Na sessão do STF, no entanto, Barroso
descartou a única lei específica do país sobre o impeachment e a comissão que
analisa e dá o parecer sobre o pedido, chegando ao cúmulo de alegar que a
palavra “eleita” não subentendia uma eleição, porque teria sido usada no
sentido de “escolhida”.
Só faltou Barroso explicar por que o
legislador então não usou as palavras “escolhida”, “formada”, “indicada”,
“composta”, “estabelecida”, “reunida” ou mesmo nenhuma palavra em lugar de
“eleita”, a única do imenso grupo que pressupõe eleição. O legislador, por
acaso, era formado em ‘barrosês’?
b) Como já escrevi aqui:
“A farsa do ministro também está
embutida em seu voto por escrito. No item em que Barroso
diverge do relator Luiz Edson Fachin sobre a modalidade da votação, ele afirma:
‘No silêncio da Constituição, da Lei
1.079/1950 e do Regimento Interno sobre a forma de votação, não é admissível
que o Presidente da Câmara dos Deputados possa, por decisão unipessoal e
discricionária, estender hipótese inespecífica de votação secreta prevista no
RICD, por analogia, à eleição para a comissão especial de impeachment.”
Em primeiro lugar, como vimos, não há
silêncio do RICD (Regimento Interno da Câmara dos Deputados) sobre a forma
de votação. Em segundo, quem estende ‘hipótese inespecífica’ de votação secreta
não é Eduardo Cunha, é o próprio RICD ao apontar ‘e nas demais eleições’,
depois de especificar as mais comuns.
Inadmissível é que Barroso ignore o
trecho do regimento e transforme em ‘analogia’ o que
já está lá previsto, para então reforçar o discurso
político do governo contra Cunha e salvar Dilma Rousseff com malabarismo jurídico.”
Resumindo:
Barroso preferiu usar o artigo 58 da
Constituição para legitimar a aplicação do regimento da Câmara para a formação
de comissões permanentes e temporárias, só que a literalidade do regimento não
inclui nem mesmo por hipótese a comissão especial do impeachment entre os
tipos de comissões mencionadas no artigo 33 citado pelo ministro.
Como a lei 1.079 fala em
comissão especial eleita, a decisão que mais se ateve à literalidade das
leis e seguiu adequadamente o regimento foi a de Eduardo Cunha, que,
goste-se dele ou não, cumpriu as funções condizentes a seu cargo.
O voto do relator Luiz Edson Facchin, embora prolixo,
aborrecido e condescendente, o que decerto prejudicou sua compreensão e
eficácia, encerra este item de forma memorável, legitimando a votação secreta:
“Diante da razoabilidade de se
considerar que há uma autorização implícita para que votações no âmbito do
Congresso, em especial quando digam respeito ao sufrágio, sejam declaradas
sigilosas pelas regras infraconstitucionais, desde que a finalidade seja
coincidente com as finalidades extraíveis das exceções expressas do texto
constitucional, a intervenção do Poder Judiciário no Poder Legislativo deve, em
homenagem à tripartição dos poderes, submeter-se à autocontenção.
Portanto, não compete ao Poder
Judiciário sindicar atos administrativos do Parlamento, quando as soluções são
múltiplas e constitucionalmente adequadas. Volta-se aqui à noção de autocontenção
do Estado-Juiz perante o Parlamento, em homenagem à tripartição dos poderes, não
cabendo ao Poder Judiciário atuar como intérprete do regimento interno de casa
legiferante.
Por isso, voto pela improcedência do
pedido cautelar incidental do Autor que visava garantir que a votação no
Plenário da Câmara dos Deputados para formação da Comissão Especial fosse
aberta.”
Pois é.
Barroso atropelou o Poder Legislativo
ao intervir na interpretação do regimento interno da Câmara dos Deputados,
ajustando-o ao seu juízo político de conveniência. Sua “explicação” só
convenceu os blogs sujos do PT.