sábado, 20 de março de 2010

"A VERDADE COLETIVA DE LULA" - Estadão, em 20-03-2010


"No episódio que abalou a imagem do presidente - o símile entre presos cubanos em greve de fome e bandidos - não sigo os revoltados pelas suas frases. Agradeço por ele usar uma verdade insofismável sobre a sua atitude mental. Desconfio dos que, na tentativa de manter aparências, dizem ter Luiz Inácio da Silva cometido um "escorregão". Se falam de escândalo, talvez acertem. O termo "escândalo" vem do grego "skadzein", cujo significado é "mancar". Ninguém nega que o presidente tenha "mancado" ao perder o freio decoroso na língua. Ele, no entanto, abriu sua alma, exibindo diante do Brasil e do mundo a ideologia que de fato o move.

O público já testemunhou outras distrações do hoje presidente. Em histórica fala a um jornal paulista, ele proclamou que "a liberdade individual está subordinada à liberdade coletiva. Na medida em que você cria parâmetros aceitos pela coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não há razão para a defesa da liberdade individual. O que você precisa é criar mecanismos para que a grande maioria da comunidade possa participar das decisões" (Lula, 4/1/1986). E acrescentou: "A capacidade de você atender aos desejos individuais sem que isso prejudique os interesses coletivos é uma questão sobre a qual tenho dúvidas. Precisamos promover esta discussão dentro do PT."

Segundo os debates partidários, amigos transformam-se em inimigos do coletivo ideado pelos petistas. "Você pode excluir o grande empresário, a multinacional, mas você precisa discutir se vai excluir o pequeno e médio proprietário do campo e da cidade."

"Eu não quero", disse o sindicalista, "ser o dono da verdade, o senhor da razão". A tolice torna-se ameaçadora no complemento da frase: "Eu tenho uma verdade que está subordinada à verdade coletiva." Treblinka, Auschwitz, o Gulag e Cuba resultam de tais "verdades coletivas". Segundo aquela doutrina, um preso político cubano só pode ser bandido, pois vai contra a verdade, propriedade do Estado.

A exclusão dos inimigos (todos os que não se encontram no partido) se enraíza na cultura petista. Mas após derrotas acachapantes, aconselhado por especialistas em marketing político, Lula maquiou a fala dogmática. Chegaram as alianças eleitorais, a persuasão dirigida aos setores médios e, last but not least, o elo com setores da imprensa. Assustar o grande empresário, a multinacional, além do pequeno e médio proprietário do campo e da cidade, perceberam os petistas, era receita de fracasso. Surgia o esboço do "Lulinha paz e amor" e da Carta ao Povo Brasileiro.

Líderes como Antônio Palocci ensaiaram privatizações "neoliberais" em seus domínios. O aço totalitário se cobria com o chantilly propagandístico. Era superada a era das pizzarias e padarias para o PT. Começava o tempo dos bons restaurantes, das garrafas de Romanée Conti. Oligarcas passaram a ser convidados de honra no convescote: Antonio Carlos Magalhães, José Sarney e outros receberam novos títulos, pois garantiam a governabilidade...

A encenação convenceu. Grandes empresas, multinacionais, pequenos e médios proprietários, boa parte da imprensa, todos azeitados pelos dividendos de uma política econômica antes execrada no petismo, aplaudiram o "novo PT". Com as loas ao suposto bom senso, carisma e quejandos de Luiz Inácio da Silva, entoadas no Congresso pela oposição, veio o apoio às iniciativas governamentais na economia e adjacências. Quanto maior o sucesso entre os antigos inimigos, maior o cinismo dos petistas em relação a si mesmos. Discutir a divida externa, romper com o Fundo Monetário Internacional (FMI), controlar o capital estrangeiro? Bravatas. Política radical e socialista? "Nunca fui de esquerda", asseverou o líder, aplaudido em delírio.

Passaram os dias e, arrogantes, seguros de manter o mando, os petistas começaram a soltar os demônios reprimidos. Já no episódio do "mensalão" sobraram raios e trovões contra a "imprensa burguesa", os empresários, os promotores públicos. Mas o presidente foi à TV e pediu desculpas, dizendo não saber a causa de suas escusas. Agora confessa: sabia. Chegaram os aloprados, os projetos de mordaça na mídia, a defesa de Sarney a todo custo (inclusive ao preço da censura, como no caso deste jornal) e as unhas ideológicas apareceram, somadas aos caninos.

Lenta e inexorável, ressurge a busca de uma hegemonia ditatorial mantida pelos escravos voluntários, os militantes. Estes tudo fazem para garantir o poder aos donos do partido. Quanto mais seguros de que ficarão no Planalto por mil anos, maior a grosseria dos ataques contra quem não dobra espinha e ouvido às ordens palacianas.

Os cosméticos tombam da face governamental. A lógica de Luiz Inácio da Silva é a mesma, desde 1986. Naquela época importava defender os direitos humanos (nunca incluídos os presos de Cuba) para manter a coesão interna do PT, no qual ombreavam stalinistas e católicos, trotskistas e adeptos da ecologia. Os religiosos defenderam os direitos humanos contra a ditadura, foram adversários das violações em todos os países e sob qualquer ideologia. Quem defende direitos não escolhe ideologia a ser protegida. Mas, com a chegada do PT ao poder, os católicos desembarcam do navio. Ficam os adeptos da razão cabocla de Estado.

A fala do presidente contra os presos cubanos, assimilando-os a bandidos, tem uma gênese mais ampla do que o PT. Ela se enraíza nas purgas nauseantes, como nos Processos de Moscou, em 1936. Ali não existiam dissidentes, mas terroristas. Só possui direito quem se abriga à sombra do partido. O resto é inimigo e... bandido.

Obrigado, Lula, por desvelar o que sempre esteve em seu íntimo. E por nos advertir sobre o que virá nos próximos dias."

ROBERTO ROMANO

"FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE "O CALDEIRÃO DE MEDEIA" (Ed. Perspectiva)"

terça-feira, 16 de março de 2010

As revoluções tecnológicas - impactos econômicos (primeira parte)

“O primeiro problema importante decorrente da nova revolução industrial (a que nasceu no bojo da revolução informática), é o de como assegurar a manutenção de um exército de pessoas estruturalmente desempregadas, que perderam seus empregos em conseqüência da automação e da robotização da produção e dos serviços. No que se refere aos países industrializados avançados (para os países em vias de desenvolvimento a situação será ainda mais difícil, quando não inteiramente trágica, em razão de sua pobreza), isto é, países em que a renda nacional possibilita, em princípio, satisfazer as necessidades do conjunto da população num alto nível, defrontamo-nos inevitavelmente com o problema de como poderá ser distribuída esta renda numa nova situação. Por um lado, a automação e a robotização (no pressuposto de um aumento da energia utilizada pela produção em conseqüência da descoberta de novas fontes energéticas), provocarão um grande incremento da produtividade e da riqueza social; por outro lado, os mesmos processos reduzirão, às vezes de forma espetacular, a demanda de trabalho humano. Isto é inevitável, independentemente do número de esferas de trabalho que forem conservadas e do número de esferas novas que possam surgir como conseqüência do desenvolvimento da microeletrônica e dos ramos de produção a ela associados. Os especialistas de boa-fé não deixam nenhuma dúvida quanto a isso quando comentam esse tema.Citarei apenas duas opiniões, ambas dignas de crédito, em que o problema é colocado com toda a clareza. Uma é a solução dos empresários japoneses – merecedores de crédito, como tem demonstrado até agora a experiência – cujo objetivo é eliminar completamente o trabalho manual na indústria japonesa... Ainda que possa haver nisto um certo ufanismo, a exposição deste objetivo deve ser levada a sério. A outra opinião se encontra num informe especial do Science Council of Canada Report (n.º 33m de 1982), que prevê a moderada taxa de 25% de trabalhadores que perderão seu emprego no Canadá até o final do século XX em conseqüência da automação. Observe-se que neste caso se trata de um informe elaborado por uma instituição científica estatal digna de confiança. Resta-nos, pois, a opção de escolher entre 100 e 25 por cento, diferença que talvez decorra do alto grau de desenvolvimento alcançado pela eletrônica na indústria japonesa (onde já funcionam as chamadas unmanned factories). Mas não pode haver nenhuma dúvida de que o desemprego estrutural afetará massas inteiras da população. É o que indicam também as previsões americanas, segunda as quais serão eliminados 35 milhões de empregos até o final do século XX em conseqüência da automação. As atuais estatísticas de trabalho entre jovens mostram também que uma a cada três pessoas em Nova York e uma a cada duas em Chicago não têm emprego. As cifras no caso dos jovens negros norte-americanos são muito mais altas (o que parece evidente tendo em vista as relações sociais existentes nos Estados Unidos).
É evidente que são impossíveis previsões precisas e confiáveis neste sentido, dado que temos de lidar com um número de variáveis muito grande que pode fazer pender a balança para um ou para o outro lado. Mas uma coisa é certa: as conclusões otimistas extraídas dos estudos empíricos das relações entre inovações tecnológicas e emprego em um determinado ramo da indústria ou dos serviços, ao longo dos últimos anos, parecem pouco confiáveis, metodologicamente erradas e (premeditadamente?) enganosas. Em primeiro lugar, porque o ritmo destas inovações vem-se intensificando continuamente; em segundo lugar, porque também o ritmo de sua implementação técnica está aumentando, o que consequentemente intensifica a pressão sobre o mercado de trabalho; em terceiro lugar, porque por ora ainda subsiste uma grande diferenciação entre os diversos ramos da produção e dos serviços no que diz respeito à aceitação de novas técnicas – fator que deverá mudar rapidamente; em quarto lugar, finalmente, porque o panorama é muitas vezes ofuscado pela estabilidade, ou até acompanhado por certa elevação das funções e operações, como ocorreu, por exemplo, no setor dos bancos no Ocidente – apesar da computadorização das suas funções. A tranqüilização da opinião pública e dos ramos da indústria e dos serviços interessados, contrariando a evidência dos fatos, é uma atitude socialmente prejudicial. Os males sociais que nos ameaçam só podem ser evitados com a adoção de medidas preventivas desde já e com a preparação de outras mais radicais para o futuro próximo. Neste sentido, a sociedade deve ser mobilizada para adotar tais medidas em vez de se deixar desmobilizar por falsas previsões tranqüilizadoras. Ainda que alguns acreditem que isto possa salvas seus interesses a curto prazo, tal conduta, do ponto de vista social, não faz mais que adiar decisões inevitáveis que deverão ser tomadas queiramos ou não; com isso, no entanto, ter-se-á que tomá-las em condições muito piores devido à urgência da situação.
Isto se refere sobretudo às conseqüências da atual revolução industrial na esfera da estrutura econômica da sociedade, ou, utilizando uma formulação diferente, na esfera da formação econômica da sociedade. O problema de dezenas de milhões de pessoas estruturalmente desempregadas na Europa e de centenas de milhões de pessoas estruturalmente desempregadas em todo o mundo (isto é, pessoas que não estão desempregadas em conseqüência de uma conjuntura desfavorável, mas o estão em conseqüência de mudanças da estrutura de ocupação, através de substituição do trabalho humano tradicional pelo autômatos), não pode ser resolvido pelo auxílio-desemprego. Isto vale sobretudo para os jovens, aos quais a nova tendência tecnológica privará da oportunidade de trabalho, no sentido tradicional da palavra, desde o início da sua vida produtiva. É necessário que se faça aqui algo de novo. As soluções devem ser outras. Podemos dizer, em termos muito gerais, sem avançarmos nada de específico sobre o que terá de ser feito, que a solução deverá contemplar novos princípios de distribuição de renda nacional, o que não poderá ser feito sem infringir, ou pelo menos modificar, o direito de propriedade hoje dominante.
Dissemos tudo isto em termo muito genéricos e com muita prudência. Como veremos, esta formulação geral admite várias versões. Apesar disso, me dou conta perfeitamente de que em determinados círculos mesmo uma formulação tão genérica pode chocar e provocar reações defensivas. Por isso sugiro que abordemos estes problemas com serenidade e objetividade; reações nervosas e uma rejeição defensiva de fatos óbvios não conduzem a nada, como testemunha a história de situações similares no passado. É evidente que estas reações nervosas estão limitadas aos países nos quais os meios de produção e as grandes instituições de serviços são de propriedade privada, isto é, os países que – apesar das grandes diferenças existentes entre eles – costumamos denominar de capitalistas. Isto que acabo de dizer não é aplicado aos países que – apesar das exceções e das diferenças – chamamos de socialistas, nos quais a propriedade dos correspondentes meios de produção e das instituições de serviços não se encontram em mãos privadas. Devido precisamente a estas diferenças nas reações de choque e nos reflexos defensivos, devemos manifestar explicitamente que o problema do desemprego estrutural resultante da atual revolução industrial é supra-sistêmica e afeta também os países socialistas. As atuais diferenças na intensidade do desemprego estrutural se devem a que os países socialistas estão atrasados muitos anos no que se refere às aplicações da microeletrônica no âmbito não militar em comparação com os países altamente industrializados. Contudo, o desenvolvimento dos países socialistas eliminará estas diferenças e fará com que também estes países se confrontem com o problema do desemprego estrutural em grande escala. O expediente atualmente muito utilizado de mascarar uma superabundância de força de trabalho não resolve de fato o problema e não faz senão confundir a situação real. A vantagem dos países socialistas não consiste em estarem livres das regularidades da tendência geral do desenvolvimento. Sua vantagem deve ser vista antes no fato de que estes países podem resolver suas dificuldades mais facilmente porque neles os meios de produção não são de propriedade privada. Todas as demais dificuldades, especialmente aquelas que vão além da esfera econômica... são supra-sistêmicas e possuem caráter geral e universal.
Voltando ao problema do desemprego estrutural e de suas soluções, devemos estabelecer uma distinção entre as soluções adotadas durante o período de transição e as soluções que terão de ser adotadas quando o processo vier a adquirir toda a sua dimensão. Durante o período de transição a solução consistirá, certamente, na redistribuição do volume de trabalho existente mediante a redução da jornada de trabalho individual. Esta é até agora a solução geral e correta proposta pelos sindicatos ocidentais, que lutam por uma semana de trabalho de trinta e cinco horas, com plena consciência de que isto não é senão o início do processo de contínua redução das horas de trabalho, que prosseguirá nos próximos anos. Mas não deveríamos tentar ocultar o fato, que por enquanto é apenas vagamente mencionado em diferentes palavras de ordem, de que este é, e deve ser, o princípio de uma nova distribuição de renda nacional. Pois ao lado do problema de redução das horas de trabalho surge um novo problema: à custa de quem deve ser feita esta nova distribuição? Não cabe a menos dúvida de que, em conseqüência de lutas mais ou menos ásperas que possuem um inequívoco caráter de classe (também nos países em que pareciam ter mesmo desaparecido), os custos da nova distribuição deverão ser suportados por aqueles que desfrutam de uma porção maior da renda social, isto é, pelos empresários. É óbvio que a condição preliminar para esta solução está em que a operação seja realizada de comum acordo entre os países industrializados (OCDE e a Comunidade Européia). Medidas separatistas que neste sentido viessem a ser tomadas por um único país acarretariam sua inevitável ruína econômica em razão da perda de competitividade nos mercados internacionais. Tudo isto deverá conduzir a uma cooperação internacional mais estreita entre os sindicatos destes países, mas ao mesmo tempo à sua radicalização, fenômeno que, no caso dos países altamente industrializados, parecia já coisa do passado.
Esta radicalização estará relacionada, como já foi dito, com a redistribuição da renda nacional, no sentido de tentar transferir para os ombros dos empresários o custo da redução das horas de trabalho. As massas trabalhadoras tornar-se-ão muito mais radicais ao largo deste conflito, já que não admitirão que se rebaixe seu nível de vida, enquanto as classes proprietárias deverão ser suficientemente inteligentes para aceitar este passo inevitável no sentido de um nivelamento (relativo) na participação de todos os membros da sociedade na renda social, caso queiram evitar as desagradáveis surpresas de explosões revolucionárias que, no caso dos países altamente desenvolvidos, pareciam pertencer a um passado longínquo. A nova revolução industrial traz consigo uma situação potencialmente revolucionária, que só pode ser evitada se se conseguir extrair em tempo as necessárias conclusões de suas implicações sociais. Disto devem estar cientes não apenas as classes proprietárias, mas também as direções sindicais tradicionalmente reformistas e conciliadoras, que podem ser substituídas pelos militantes de base se não se adequarem à espontânea radicalização destes. O mesmo cabe dizer dos partidos políticos, especialmente daqueles que têm sua base militante nas massas trabalhadoras. Há novas oportunidades para partidos revolucionários, mas desde que sejam inteligentes e não se mantenham aferrados a seus velhos modelos e soluções, que não podem absolutamente ser transplantados para a nova realidade. Isto trará dificuldades – ainda que por motivos distintos – aos partidos socialistas e comunistas tradicionais. Tudo o que dissemos até agora, e que é apenas um prelúdio, não pretende “assustar” ninguém nem, como poderiam pensar alguns, exortar a uma revolução; trata-se simplesmente da constatação de alguns fatos de caráter objetivo que não podem ser descartados por uma obstinada recusa que coloca em marcha o mecanismo da dissonância cognitiva. É, ao mesmo, tempo, uma advertência para que não se tratem superficialmente as conseqüências da dinâmica social que caracteriza o período atual e o futuro. Esta advertência é oportuna agora e também vale como obrigação social e moral dos representantes das ciências sociais que se ocupam dos problemas do nosso tempo e compreendem as suas regularidades. O período em questão é revolucionário no sentido das mudanças que se estão produzindo, mas não o é no sentido da existência de um inevitável cataclismo social (com o recurso à violência), dado que as suas conseqüências podem ser controladas. Do ponto de vista social, as soluções pacíficas são mais “econômicas” e por isso mais desejáveis mesmo para os defensores da revolução, caso seus objetivos possam ser alcançados por meios pacíficos. Em nossa época isto é sem dúvida possível nos países altamente desenvolvidos e, por isso, devemos nos esforçar ao máximo para alcançar este objetivo. Ao fazê-lo devemos ter presente que hoje, quando por diversas razões se fala do colapso ou pelo menos de crise do marxismo, podemos presenciar a materialização – com uma clareza quase clássica – de uma das teses fundamentais desta doutrina, a saber: que mudanças na base social produzem inevitavelmente mudanças na superestrutura. O fenômeno em questão está se manifestando diante dos nossos olhos, e mesmo aqueles que não são partidários do marxismo não podem certamente ignorar a exatidão do diagnóstico marxiano.
Porém, como já dissemos, encontramo-nos ainda no prelúdio do processo propriamente dito. Esta começará quando a curva que representa a redução de horas de trabalho, para que todos tenham emprego (ou pelo menos muitos), se aproximar assintoticamente do ponto zero para as massas de pessoas estruturalmente desempregadas. Neste sentido, há que se levar em conta que este ponto zero continua ainda muito distante da situação a que se referem hoje os empresários japoneses, a saber: a situação em que o trabalho manual na produção (e o correspondente trabalho intelectual nos serviços), será eliminado em 100 por cento. A jornada de trabalho não pode ser reduzida primeiro a 35 horas semanais, depois a 25, a 20 e assim por diante, até que cheguemos à cifra de uma ou meia hora semanal. Isto seria absurdo do ponto de vista das experiências psíquicas do trabalhador: abaixo de uma certo mínimo de horas de trabalho (qual mínimo?), o chamado tempo livre se converte em uma carga psíquica. Produz-se, de fato, uma “poluição” do tempo livre.
Nesta situação, será necessário substituir o trabalho tradicional, no sentido de trabalho remunerado, por ocupações não remuneradas que seriam um sucedâneo do trabalho atual no que se refere ao “sentido da vida”, isto é, no que se refere à motivação das atividades humanas. É muito compreensível a necessidade de um tal “sucedâneo” do emprego remunerado de hoje, ainda que seja somente para assegurar o bem-estar psíquico dos homens que não trabalham. Comentaremos detalhadamente este problema mais adiante. Mas como o emprego remunerado não poderá assegurar ao homem seu meio de vida como ainda hoje ocorre, este meio terá de ser oferecido pela sociedade, se esta não quiser que os desempregados estruturais sejam condenados à inatividade. É óbvio que a sociedade não fará isto, mas mesmo que ocorra a alguém uma idéia tão diabólica, não poderá levá-la à prática; isto seria impedido por um levante popular que poderia inclusive ser sangrento. Mas é de se supor que não se chegará a este extremo. Quanto a isto, as classes proprietárias dos países altamente desenvolvidos são demasiado razoáveis para correrem um tal risco, além do que – numa sociedade futura que será incomparavelmente mais rica, graças à informática e à automação da produção e dos serviços – teriam muito a perder arriscando seu domínio material, ainda que reduzido, em nome de uma estúpida defesa de classe a curto prazo”.
(continua)
Schaff, Adam. in A Sociedade Informática.

domingo, 14 de março de 2010

"A colisão entre um político sem grandeza e um estadista"

"Traídos pela indiferença ultrajante do Itamaraty, afrontados pela infame hostilidade do presidente da República, presos políticos cubanos e dissidentes em liberdade vigiada endereçaram ao presidente da Costa Rica o mesmo pedido de socorro que Lula rechaçou. Fiel à biografia admirável, Oscar Arias nem esperara pela chegada do apelo (que o colega brasileiro ainda não leu) para colocar-se ao lado das vítimas do arbítrio. Já estava em ação ─ e em ação continua.

Neste sábado, Arias escreveu sobre o tema no jornal espanhol El País. O confronto entre o falatório de Lula e trechos do artigo permite uma pedagógica comparação entre os dois chefes de governo:

LULA: “Lamento profundamente que uma pessoa se deixe morrer por fazer uma greve de fome. Vocês sabem que sou contra greve de fome porque já fiz greve de fome”.

ARIAS: “Uma greve de fome de 85 dias não foi suficiente para convencer o governo cubano de que era necessário preservar a vida de uma pessoa, acima de qualquer diferença ideológica. Não foi suficiente para induzir à compaixão um regime que se vangloria da solidariedade que, na prática, só aplica a seus simpatizantes. Nada podemos fazer agora para salvar Orlando Zapata, mas podemos erguer a voz em nome de Guillermo Fariñas Hernández, que há 17 dias está em greve de fome em Santa Clara, reivindicando a libertação de outros presos políticos, especialmente aqueles em precário estado de saúde”.

LULA: “Eu acho que a greve de fome não pode ser utilizada como pretexto para libertar pessoas em nome dos direitos humanos. Imagine se todos os bandidos presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade”.

ARIAS: “Seria perigoso se um Estado de Direito se visse obrigado a libertar todos os presos que decidirem deixar de alimentar-se. Mas esses presos cubanos não são como os outros, nem há em Cuba um Estado de Direiro. São presos políticos ou de consciência, que não cometeram nenhum delito além de opor-se a um regime”.

LULA: “Temos de respeitar a determinação da Justiça e do governo cubanos”.

ARIAS: “Não existem presos políticos nas democracias. Em nenhum país verdadeiramente livre alguém vai para a prisão por pensar de modo diferente. Cuba pode fazer todos os esforços retóricos para vender a ideia de que é uma “democracia especial”. Cada preso político nega essa afirmação. Cada preso político é uma prova irrefutável de autoritarismo. Todos foram julgados por um sistema de independência questionável e sofreram punições excessivas sem terem causado danos a qualquer pessoa”.

LULA: “Cada país tem o direito de decidir o que é melhor para ele”.

ARIAS: “Sempre lutei para que Cuba faça a transição para a democracia. (…) O governo de Raúl Castro tem outra oportunidade para mostrar que pode aprender a respeitar os direitos humanos, sobretudo os direitos dos opositores. Se o governo cubano libertasse os presos políticos, teria mais autoridade para reclamar respeito a seu sistema político e à sua forma de fazer as coisas”.

LULA: “Não vou dar palpites nos assuntos de outros países, principalmente um país amigo”.

ARIAS: “Estou consciente de que, ao fazer estas afirmações, eu me exponho a todo tipo de acusação. O regime cubano me acusará de imiscuir-me em assuntos internos, de violar sua soberania e, quase com certeza, de ser um lacaio do império. Sem dúvida, sou un lacaio do império: do império da razão, da compaixão e da liberdade. Não me calo quando os direitos humanos são desrespeitados. Não posso calar-me se a simples existência de un regime como o de Cuba é uma afronta à democracia. Não me calo quando está em jogo a vida de seres humanos só por terem contestado uma causa ideológica que prescreveu há anos. Vivi o suficiente para saber que não há nada pior que ter medo de dizer a verdade”.

Oscar Arias é um chefe de Estado. Lula é chefe de uma seita com cara de bando. Arias é um pensador, conhece a História e tenta moldar um futuro mais luminoso. Lula nunca leu um livro, não sabe o que aconteceu e só pensa na próxima eleição. Arias é justo e generoso. Lula é mesquinho e oportunista. Arias se guia por princípios e valores. Lula menospreza irrelevâncias como direitos humanos, liberdade ou democracia.

O artigo do presidente da Costa Rica, um homem digno, honra o Nobel da Paz que recebeu. A discurseira do presidente brasileiro, um falastrão sem compromisso com valores morais, tornou-o tão candidato ao prêmio quanto Fidel, Chávez ou Ahmadinejad. A colisão frontal entre o que Lula disse e o que Arias escreveu escancarou a distância abissal que separa um político sem grandeza de um estadista."

(Publicado no blog do Augusto Nunes em 14-03-2010).