Olavo de Carvalho me chamou de idiota. Olavo de Carvalho me
chamou de idiota! Fico feliz porque assim entro na lista de ilustres amigos
liberais que já receberam as mesmas palavras de afeto do filósofo.
O
motivo de Olavo ter me chamado de idiota é, de novo, o post em
que critico o deputado Bolsonaro por chamar haitianos, sírios e bolivianos de
escória. Afirmo no artigo que os imigrantes europeus do século 19 eram tão
escória quanto haitianos hoje – e, apesar disso, prosperaram.
Olavo afirma que estou raciocinando a partir de
similitude de palavras (imigrante = escória). “Acontece”, diz ele, “que os
japoneses, italianos e alemães nunca foram chamados como escória; ao contrário,
eles foram chamados porque vinham elevar o nível técnico da nossa população.”
Não é
verdade. Ou melhor: a afirmação de Olavo vale para os alemães, talvez também
para os italianos do norte (e aqui eu admito o descuido ao afirmar que os
alemães eram considerados escória).
Mas a
afirmação não vale para todos os outros povos que imigraram ao Brasil:
japoneses, italianos do sul, poloneses, ucranianos, quase todos famintos,
miseráveis e discriminados quando chegaram aqui.
Os
japoneses, que para Olavo de Carvalho também foram chamados ao Brasil “para
elevar o nível técnico da população”, são um belo exemplo. Oliveira Vianna
dizia que “o japonês é como enxofre: insolúvel”. A revista O Malho publicava charges ridicularizando os
imigrantes japoneses. “O governo de São Paulo é teimoso. Após o insucesso da
primeira imigração japonesa, contratou 3.000 amarelos”, diz uma charge de 1908.
“Teima pois em dotar o Brasil com uma raça diametralmente oposta à nossa”.
Nos
debates da Assembleia Constituinte de 1946, a expressão “aborígenes nipões” é
frequente. Por muito pouco os deputados não aprovaram a emenda 3.165, que
proibia “a entrada no país de imigrantes japoneses de qualquer idade e de
qualquer procedência”. A emenda teve apoio de Luís Carlos Prestes e os demais
deputados comunistas.
Vejam
só que informação deliciosa: quando o assunto é proibir a entrada de povos
considerados escória, Olavo de Carvalho e Luís Carlos Prestes se aproximam.
Quem diria.
Os
poloneses também eram chamados de escória nas suas primeiras décadas no Brasil.
Sei disso por experiência da minha própria família. Cresci entre descendentes
de Novacoskis e Bonaroskis, mas não havia na minha casa nada da cultura
polonesa.
O motivo é a vergonha. Minha mãe e suas primas “polacas” morriam de
vergonha de serem polonesas. Para evitar serem confundidas com prostitutas,
escondiam a origem a qualquer custo – e fingiam ser alemães. Poloneses,
dizia-se na época em Curitiba, num duplo preconceito, eram “pretos do avesso”.
Casavam com empregadas domésticas e morriam de cirrose. Hoje esses “pretos do avesso”,
esses integrantes da escória estão mais ricos que a média da população.
Entre
os italianos, havia preconceito mesmo entre os próprios imigrantes. Gente do
norte da Itália não se misturava com os do sul. No interior de São Paulo,
chamar alguém de “calabrês” era uma ofensa.
Quem
passar os olhos pelo Guia
Prático da Cidade de São Paulo, editado entre 1906 e 1934, verá
diversos anúncios de italianos padeiros, alfaiates, donos de lojas de sapatos –
mas nenhum de engenheiros, advogados ou médicos. Entre os operários italianos
do Bom Retiro, em São Paulo, 70% eram analfabetos. Não me parece que a maior
parte desses imigrantes tinha um “elevado nível técnico”, como sugere Olavo.
Se
brasileiros do século 19 tivessem ouvido discursos contra a imigração como os de
Bolsonaro e Olavo de Carvalho, não teríamos no Brasil toda a prosperidade
criada por japoneses, poloneses, ucranianos e italianos meridionais.
Olavo
de Carvalho toma uma parte do que eu digo (sobre os alemães) para escapar da
refutação à minha afirmação central: em muitos países e épocas, imigrantes
imundos, famintos e discriminados cresceram pela cultura de trabalho, e décadas
depois já eram mais ricos que a média da população.
Há
muitos exemplos assim – o livro Race
and economics: how much can be blamed on discrimination, do
economista Walter Williams, enumera casos em diversos países. Sikhs e judeus
eram os dois povos mais pobres de Londres no século 19 (e, acredito que aqui o
filósofo concordará comigo, também os mais discriminados). Hoje são as duas etnias
mais ricas da cidade.
Em Nova
York, empresas incluíam nos anúncios de empregos a sigla N.I.N.A (No
Irish Need Apply, “irlandeses não precisam se candidatar”). Na
Califórnia, houve leis proibindo o direito de japoneses e chineses possuírem
terras. Hoje os americanos descendentes de irlandeses, japoneses ou chineses
têm mais dinheiro que o americano comum.
Ao se
voltar contra os imigrantes só porque o PT os apoia, Olavo joga fora uma grande
bandeira: a cultura de trabalho. É dela que eu saio em defesa. Estou pouco me
lixando para a cultura haitiana, boliviana ou síria. Defendo os imigrantes
haitianos, bolivianos e sírios por sua cultura de trabalho. É ela que vence o
preconceito dos nativos e torna escória elite.
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OS: Ambos polemistas deveriam atentar para o seguinte
fato: a mão-de-obra verdadeiramente qualificada que veio para o Brasil foi
aquela proveniente da África. Isso desde o início da colonização. Se não fossem
os africanos (metalúrgicos, carpinteiros, purgadores),não haveria a produção de açúcar, para ficarmos num único exemplo.