Israel não é apenas uma
nesga de terreno árido no oriente próximo, abarcando parte de territórios de
grande simbolismo para três religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e
islamismo), todas ancoradas na devoção comum a Abraão ou Ibraim (o maior dos Patriarcas), conforme se
pode verificar nos seus livros de referência – a Torá, a Bíblia e o Corão. Israel
é, assim, mais que a expressão material e política de uma tradição milenar, a
mesma que configurou, junto com o helenismo, os fundamentos do ocidente e das
maiores conquistas que a humanidade já auferiu. Na sua grandeza, Roma foi tão somente uma
projeção de tal arranjo civilizatório. Sem o amálgama judaico-helênico estaríamos
catando coquinhos nas florestas ou, quem sabe, vivendo num estágio tribal em
permanente disputa autofágica. A chave para se entender o papel da cultura judaica no progresso da humanidade está no domínio generalizado da leitura e da escrita. Ler, entender e interpretar a palavra do Eterno é seu alfa e o ômega. O protestantismo, que nasceu recuperando o imperativo de tais práticas letradas, tangencia aí o judaísmo, ao transformar a casa do culto numa casa do estudo e do saber. Não se deve ao acaso que três dos mais importantes pensadores da modernidade - Marx, Einstein e Freud - sejam nascidos em lares judaicos.
Israel está há muito tempo submetido a
graves ameaças. Defender sua existência é, acima de tudo, um tributo que a
humanidade deve a um projeto de civilização de base imemorial. Pode-se mesmo
postular que é uma espécie de devolução legítima, àqueles que nos forjaram, do
direito de terem novamente o seu próprio estado em base física reconhecida
e aceita. Quanto a isso, infelizmente, há polêmica entre os assumidos apoiadores da existência do estado judeu, e os que a questionam, estes últimos sempre com razões subalternas, oportunistas ou até mesmo racistas. O atual
governo brasileiro - junto com outros governantes de feições pouco recomendáveis, em geral
ditaduras sangrentas - se coloca diplomática e ideologicamente nesta última posição.
Ecoa o discurso de ódio de terroristas fanáticos contra o que chamam “a
entidade sionista”, arvorando-se, então, de autoconcedida liberação para jogar foguetes e bombas sobre o povo israelense, condenado então a um sobressalto eterno e insolúvel. Espantoso que milícias armadas ao longo das fronteiras israelenses se conduzam dessa forma, logo contra Israel, única democracia constitucional
naquela região infestada de regimes teocráticos e medievais, nos quais o conceito de direitos humanos é tratado como piada. Que o digam as crianças, as mulheres, os homossexuais e os adeptos de outras religiões ou seitas que não a oficialmente adotada pelo déspota eventual de plantão.
Os críticos do sionismo
- movimento que, em sua essência, significou um modelo de defesa, um caminho para os judeus perseguidos poderem se abrigar em um lar nacional - desconhecem, ou fingem desconhecer, as
violências, expropriações e torturas gratuitas a que foram submetidas populações de origem
judaica na Europa, na América, na Ásia e na África em diferentes momentos do
tempo. Ibéricos obrigavam os judeus a uma conversão sob pena de condenação à fogueira. Desta maldade bestial, no entanto, nasceu algo positivo: foram inumeráveis os cristãos-novos que aportaram na então colônia portuguesa, muito contribuindo para a formação do povo brasileiro. Onde se abrigar, então, contra a opressão e o genocídio foi o grande desafio enfrentado pelo povo do livro ao longo da história. Seria possível uma assimilação ou integração nas diferentes sociedades nacionais, mesmo como simples minoria, porém respeitada nos seus direitos?
Os vexames impostos às
comunidades judaicas modernas nos últimos cinco séculos estão suficientemente documentados. Vale ler, por
todos, o livro de Hannah Arendt sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém. A
Europa nazista, ainda ontem estabelecida, era um conjunto de ratoeiras interligadas; não havia para onde
fugir. Escapava-se de uma, caia-se em outra necessariamente. O horror ainda
está fresco na memória contemporânea. Já muito antes do holocausto alguns dos
melhores pensadores (Kafka, por exemplo), advogavam a necessidade de se ter
um local onde os judeus pudessem viver em paz, amadurecendo uma esperança
razoável frente à percepção do que estava por vir, e acabou chegando. O ameaçador
clima de barbárie que antecedeu o nazismo, tão bem traduzido por Elias Canetti, dorme como brasa sob as cinzas. Mas aqui e ali, ameaçadoramente, fumegam sinais de um totalitarismo tardio.
A
Declaração Balfour, de 1917, expressou o compromisso dos então mandatários da
Palestina de apoiar a criação de um Lar Nacional Judeu, única alternativa de
fuga aos pogroms habituais, e bem antes da edificação dos campos de extermínio
industriais dos nazistas. A ONU, em 1948, só ratificou uma expectativa e um direito que
estava latente, ao endossar também o estabelecimento concomitante de um estado para os
palestinos, que recusaram a justa solução política adotada ao preferir, em vez
da paz, a guerra e o terror permanentes observados nas últimas sete décadas. As Nações Unidas adotaram um equacionamento político similar ao caso de Israel e Palestina, no pós-guerra, no sub-continente indiano, com a separação entre hindus (Índia) e muçulmanos (Paquistão) à falta de melhor saída. Dois povos e uma mesma terra? Divide-se: parte para um e parte para outro. Numa visão realista esta foi a saída possível.
Israel tem, pois, o mais legítimo direito à existência. O povo brasileiro o apoia e a história da nossa diplomacia o confirma. Souza Dantas, Guimarães Rosa e Osvaldo Aranha, mais que os pigmeus que hoje dominam o Itamarati, são nomes emblemáticos. Israel, como todo estado
soberano tem, mais que o direito, o dever de se defender de agressões contra sua
população. Se toda a energia e custo humanos despendidos pelos belicosos vizinhos
de Israel tivessem sido aplicados produtivamente, aquela milenar região
voltaria a ser, de fato, a Terra da Promissão, local sagrado de onde manam o
leite e o mel. Os fomentadores da guerra que infelicita os israelenses e os
palestinos estão, sim, abrigados nos governos da vizinhança. É uma pena que os
dirigentes brasileiros se prestem ao papel de títeres de tais tiranias,
contribuindo para avivar a discórdia e a patrocinar fanáticos que não respeitam
sua própria vida e, muito menos, a vida dos outros.
Shalom.
(Publicado, com
modificações, por exigência de espaço, no jornal O Tempo, de 25-07-2014)