Há quase 40 anos, quando o autor destas linhas dirigia um jornal em Goiânia, houve intensa discussão entre os editores sobre publicar ou não uma notícia fora da rotina – a de prisão e possível internamento em asilo para doenças mentais de um homem que insistia em andar pelas ruas carregando um pinico às costas, dentro de um saco. A polícia insistia em que era doença mental e apontava como prova o pinico às costas; o cidadão argumentava que assim fazia porque tinha incontinência urinária, não queria urinar em qualquer lugar à vista de todos e a cidade não tinha sanitários públicos. Tão forte foi a discussão que gerou uma página inteira no dia seguinte, com cada editor dando sua opinião e o jornal a dele.
Na controvérsia que se seguiu com a autoridade municipal do setor,
entrou na discussão também a ausência na cidade de instituições adequadas para
pessoas com problemas mentais (o jornal fotografou o banho coletivo de dezenas
de pessoas nuas, juntas, numa delas, recebendo jatos de água de uma mangueira);
em seguida, iniciaram-se obras de construção de sanitários públicos e de
ampliação e readequação do único asilo. Tudo como consequência da atitude do
homem do pinico, cioso de seus direitos e dos direitos dos transeuntes: ele,
sozinho, provocara uma intervenção profunda e importante em dois ramos da
política urbana.
Quantas cidades brasileiras têm política pública satisfatória para a
questão de sanitários – mesmo sabendo-se que pelo menos um terço da população
só se desloca a pé? Quantas se voltam para as estruturas médica e de
internamento de pessoas ? Onde estão as atrasadíssimas discussões sobre os
planos diretores urbanos, suas interconexões locais, estaduais, federais? Onde
estão repórteres insistentes, capazes de, com teimosia, flexionar as pautas?
Não é preciso nem tentar ser muito abrangente – não haveria espaço.
Notícia de poucos dias atrás em Belo Horizonte pode exemplificar nossas
carências em políticas de instalação e conservação de banheiros públicos
municipais (praças e feiras, parques, etc.) – das mais deficientes, ao lado da
coleta e do tratamento de resíduos. Passados 40 anos do episódio de Goiânia, a
Câmara Municipal da capital mineira aprovou ali a instalação e conservação de
banheiros públicos – numa cidade que sempre se orgulhou de ser “moderna”, com
mais de 150 anos de existência, mais de 2,5 milhões de habitantes.
O queixo do leitor pode cair ainda mais se souber que o plano ambiental
da atual gestão paulistana, aprovado em março na nova lei de zoneamento, exclui
(Folha de S.Paulo, 5/5) a região central da capital e deixa
margem para que sejam reduzidas as “áreas verdes” da cidade – que tem mais de
quatro séculos e meio, mais de 12 milhões de habitantes (cerca de 20 milhões
nos 39 municípios da região metropolitana, com 7,9 mil quilômetros quadrados e
10% da população brasileira).
Como haver lazer público, espaços amenos e protegidos? Não é por acaso,
assim, que a cidade venha perdendo (Unicamp, 21/3) população para municípios do
seu entorno e do interior do Estado: só na década de 2000 a 2010, a capital
paulista perdeu 300 mil moradores.
O drama populacional das cidades é espantoso. As áreas urbanas no mundo
crescem 60 quilômetros quadrados por dia ou 21.900 quilômetros quadrados por
ano. Mas quase 7 milhões de pessoas morrem no mundo, a cada ano, por doenças
relacionadas com a má qualidade do ambiente urbano. Os 55% da população mundial
nas áreas urbanas devem passar de 70% até 2050, segundo Achim Steiner, que
dirige o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Valor Econômico, 8/5).
Há cientistas que já calculam em US$ 17 trilhões a economia que poderia
ser feita até 2050 com ações para reduzir a presença de carbono no ar das
cidades (que contribuem com 85% do total). A Índia, a China e o Caribe serão as
áreas de maior crescimento demográfico – a Índia com mais 400 milhões de
pessoas, a China com quase 300 milhões mais e o Caribe com mais 13 milhões. As
cidades com mais de 10 milhões de pessoas cada uma já eram em 2014 nada menos
que 28, onde viviam 453 milhões de pessoas, ou 12% do total. Mais de metade da
população urbana mundial – que é de 3,9 bilhões de pessoas – vivia em cidades
com menos de 500 mil habitantes. A população rural do mundo, 3,4 bilhões, deve
chegar ao pico em 2014 e baixar para 3,1 bilhões até 2050, segundo a ONU (julho
de 2014)
Que se poderá fazer com tantos problemas urbanos, a começar pela
violência? No Brasil, de 2000 a 2014 a população no sistema penitenciário
passou de 389.477 para 622.2012 (Adital, 6/5). Tornamo-nos o quarto país no
mundo nesse item, após Estados Unidos, Rússia e China, e com uma população
carcerária maior que a da Índia, que tem população total de 1,2 bilhões de
pessoas.
Na Índia, a partir do ano que vem todos os telefones celulares ali
vendidos deverão obrigatoriamente ter um “botão de pânico” que permita chamada
de emergência (fiquesabendo, 6/5). No Brasil a polícia civil registrou aumento
de 62% em casos de abuso sexual nos trens, estações do metrô e áreas adjacentes
no primeiro trimestre deste ano.
Não se pode entrar pelas questões urbanas sem esse problema dos
transportes, presente em quase toda parte. Basta lembrar que o prefeito de
Londres quer chegar a 2018 com 645 mil viagens de bicicleta por dia na cidade,
inclusive com a construção de supervias para esses veículos. Detroit, a capital
do automóvel, viu crescer o número de bicicletas em 403% desde o início do
século. E a própria associação de fabricantes de veículos diz que a posse do
automóvel deixou de ser prioridade para os jovens brasileiros. Não diz se é só
nas grandes cidades – o que é provável. Certo é que a frota nacional de
bicicletas já está em 70 milhões (Problemas Brasileiros,
março/abril 2016) e a de automóveis continua caindo.