sexta-feira, 13 de maio de 2016

Nas cidades violentas, sem banheiro e transporte (Washington Novaes)



Há quase 40 anos, quando o autor destas linhas dirigia um jornal em Goiânia, houve intensa discussão entre os editores sobre publicar ou não uma notícia fora da rotina – a de prisão e possível internamento em asilo para doenças mentais de um homem que insistia em andar pelas ruas carregando um pinico às costas, dentro de um saco. A polícia insistia em que era doença mental e apontava como prova o pinico às costas; o cidadão argumentava que assim fazia porque tinha incontinência urinária, não queria urinar em qualquer lugar à vista de todos e a cidade não tinha sanitários públicos. Tão forte foi a discussão que gerou uma página inteira no dia seguinte, com cada editor dando sua opinião e o jornal a dele.

Na controvérsia que se seguiu com a autoridade municipal do setor, entrou na discussão também a ausência na cidade de instituições adequadas para pessoas com problemas mentais (o jornal fotografou o banho coletivo de dezenas de pessoas nuas, juntas, numa delas, recebendo jatos de água de uma mangueira); em seguida, iniciaram-se obras de construção de sanitários públicos e de ampliação e readequação do único asilo. Tudo como consequência da atitude do homem do pinico, cioso de seus direitos e dos direitos dos transeuntes: ele, sozinho, provocara uma intervenção profunda e importante em dois ramos da política urbana.

Quantas cidades brasileiras têm política pública satisfatória para a questão de sanitários – mesmo sabendo-se que pelo menos um terço da população só se desloca a pé? Quantas se voltam para as estruturas médica e de internamento de pessoas ? Onde estão as atrasadíssimas discussões sobre os planos diretores urbanos, suas interconexões locais, estaduais, federais? Onde estão repórteres insistentes, capazes de, com teimosia, flexionar as pautas?

Não é preciso nem tentar ser muito abrangente – não haveria espaço. Notícia de poucos dias atrás em Belo Horizonte pode exemplificar nossas carências em políticas de instalação e conservação de banheiros públicos municipais (praças e feiras, parques, etc.) – das mais deficientes, ao lado da coleta e do tratamento de resíduos. Passados 40 anos do episódio de Goiânia, a Câmara Municipal da capital mineira aprovou ali a instalação e conservação de banheiros públicos – numa cidade que sempre se orgulhou de ser “moderna”, com mais de 150 anos de existência, mais de 2,5 milhões de habitantes.

O queixo do leitor pode cair ainda mais se souber que o plano ambiental da atual gestão paulistana, aprovado em março na nova lei de zoneamento, exclui (Folha de S.Paulo, 5/5) a região central da capital e deixa margem para que sejam reduzidas as “áreas verdes” da cidade – que tem mais de quatro séculos e meio, mais de 12 milhões de habitantes (cerca de 20 milhões nos 39 municípios da região metropolitana, com 7,9 mil quilômetros quadrados e 10% da população brasileira).

Como haver lazer público, espaços amenos e protegidos? Não é por acaso, assim, que a cidade venha perdendo (Unicamp, 21/3) população para municípios do seu entorno e do interior do Estado: só na década de 2000 a 2010, a capital paulista perdeu 300 mil moradores.

 O drama populacional das cidades é espantoso. As áreas urbanas no mundo crescem 60 quilômetros quadrados por dia ou 21.900 quilômetros quadrados por ano. Mas quase 7 milhões de pessoas morrem no mundo, a cada ano, por doenças relacionadas com a má qualidade do ambiente urbano. Os 55% da população mundial nas áreas urbanas devem passar de 70% até 2050, segundo Achim Steiner, que dirige o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Valor Econômico, 8/5).

Há cientistas que já calculam em US$ 17 trilhões a economia que poderia ser feita até 2050 com ações para reduzir a presença de carbono no ar das cidades (que contribuem com 85% do total). A Índia, a China e o Caribe serão as áreas de maior crescimento demográfico – a Índia com mais 400 milhões de pessoas, a China com quase 300 milhões mais e o Caribe com mais 13 milhões. As cidades com mais de 10 milhões de pessoas cada uma já eram em 2014 nada menos que 28, onde viviam 453 milhões de pessoas, ou 12% do total. Mais de metade da população urbana mundial – que é de 3,9 bilhões de pessoas – vivia em cidades com menos de 500 mil habitantes. A população rural do mundo, 3,4 bilhões, deve chegar ao pico em 2014 e baixar para 3,1 bilhões até 2050, segundo a ONU (julho de 2014)

Que se poderá fazer com tantos problemas urbanos, a começar pela violência? No Brasil, de 2000 a 2014 a população no sistema penitenciário passou de 389.477 para 622.2012 (Adital, 6/5). Tornamo-nos o quarto país no mundo nesse item, após Estados Unidos, Rússia e China, e com uma população carcerária maior que a da Índia, que tem população total de 1,2 bilhões de pessoas.

Na Índia, a partir do ano que vem todos os telefones celulares ali vendidos deverão obrigatoriamente ter um “botão de pânico” que permita chamada de emergência (fiquesabendo, 6/5). No Brasil a polícia civil registrou aumento de 62% em casos de abuso sexual nos trens, estações do metrô e áreas adjacentes no primeiro trimestre deste ano.


Não se pode entrar pelas questões urbanas sem esse problema dos transportes, presente em quase toda parte. Basta lembrar que o prefeito de Londres quer chegar a 2018 com 645 mil viagens de bicicleta por dia na cidade, inclusive com a construção de supervias para esses veículos. Detroit, a capital do automóvel, viu crescer o número de bicicletas em 403% desde o início do século. E a própria associação de fabricantes de veículos diz que a posse do automóvel deixou de ser prioridade para os jovens brasileiros. Não diz se é só nas grandes cidades – o que é provável. Certo é que a frota nacional de bicicletas já está em 70 milhões (Problemas Brasileiros, março/abril 2016) e a de automóveis continua caindo.

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