quinta-feira, 2 de abril de 2009

ENVENENANDO AS ALMAS DAS CRIANÇAS

"No capítulo 3º do livro didático “Português Linguagens - 5º ano”, de autoria de William Roberto Cereja e Thereza Cochar (Editora Atual, pertencente ao grupo Saraiva os estudantes encontram, logo abaixo do título – “O gosto amargo da desigualdade” –, o seguinte parágrafo:

Você alguma vez já se sentiu injustiçado? Seu amigo com duas bicicletas, uma delas novinha, e você nem bicicleta tem... Sua amiga com uma coleção inteirinha da Barbie, e você que não ganha um brinquedo novo há muito tempo... Se vai reclamar com a mãe, lá vem ela dizendo: ‘Não reclama de barriga cheia, tem gente pior do que você!’. Será que há justiça no mundo em que vivemos?

A resposta negativa é apresentada sob a forma de um texto, em estilo pretensamente literário, seguido de uma bateria de perguntas destinadas a atiçar o “pensamento crítico” dos alunos (supondo-se, é claro, que crianças de 10 anos possuam conhecimento e maturidade para pensar criticamente).

O texto consiste, resumidamente, no seguinte: ao ver o filho entretido com um globo terrestre, o pai lhe confessa a sua “birra contra geografia”, atribuindo a aversão a uma professora que tivera no ginásio. Um dia, conta o pai, a professora Dinah resolveu dar aos alunos uma aula prática sobre a distribuição de renda no Brasil. Dizendo que o conteúdo de uma caixa de doces representava a riqueza do país, a professora começou a distribuir os doces entre os alunos, dando a uns mais que a outros. Os primeiros da lista de chamada ganharam apenas um doce; da letra G até a M, dois doces; de N a T, três; Vanessa e Vítor ganharam seis, e Zilda, finalmente, ganhou a metade da caixa, 24 doces. A satisfação inicial dos primeiros se transformava em revolta à medida que percebiam a melhor sorte dos últimos: “Ninguém na sala conseguia acreditar que a Dinah tava fazendo aquilo com a gente. Até naquele dia, todo mundo era doido com ela, ótima professora, simpática, engraçada, bonita também.” A história termina com o filho, frustrado, entregando ao pai o globo terrestre: “Toma esse negócio. Se a geografia é assim desse jeito que você tá falando, eu não vou querer aprender também não”.
Seguem os questionamentos:

– A distribuição dos doces promovida pela professora serviu para ilustrar como é feita a distribuição de riquezas no Brasil. Associe os elementos da aula ao que eles correspondem no país:
• a caixa de [doces] • os patrões, os empresários, o governo, etc.
• os alunos • o povo
• a professora • a riqueza
– Dos alunos da sala, quem você acha que reclamou mais? E quem você acha que não reclamou? Por quê?

– Na opinião da maioria dos alunos, como a professora deveria ter distribuído os doces?
– A distribuição de doces feita pela professora ilustra a situação de distribuição de renda entre os brasileiros. De acordo com o exemplo:
a) Quem fica com a metade da riqueza produzida no país?
b) Para quem fica a outra metade?
c) Na sua opinião, a minoria privilegiada reclama da situação?
d) E os outros, deveriam reclamar? Por quê?
– Dona Dinah, pela aula prática que deu, talvez não tenha agradado a todos os alunos. No entanto, você acha que eles aprenderam o que é distribuição de renda?
– No final do texto, Mateus diz ao pai: “Toma esse negócio!”. E começa a dormir sem o globo terrestre.
a) O que você acha que o menino está sentindo pelo globo nesse momento?
b) Na sua opinião, é pela geografia que ele deveria ter esse sentimento?
– Segundo o narrador, a turma tinha entre onze e doze anos e não estava interessada no assunto distribuição de renda. Na sua opinião, existe uma idade certa para uma pessoa começar a conhecer os problemas do país? Se sim, qual? Por quê?
– Os alunos que ganharam menos doces sentiram-se revoltados com a divisão feita pela professora.
a) Na vida real, como você acha que se sentem as pessoas que têm uma renda muito baixa? Por quê?
b) Que consequências a baixa renda traz para a vida das pessoas? Dê exemplos.
c) Na sua opinião, as pessoas são culpadas por terem uma renda baixa?
– Muitas pessoas acham que uma das causas da violência social (roubos, furtos e sequestros, por exemplo) é a má distribuição de renda. O que você acha disso? Você concorda com essa opinião.
Vejam vocês a que nível chegou a educação no Brasil.

Decididos a “despertar a consciência crítica” dos seus pequenos leitores – missão suprema de todo professor/escritor amestrado na bigorna freireana (ademais, se o livro não for “crítico”, a editora não quer, porque o MEC não aprova, os professores não adotam e o governo não compra) –, mas cientes, ao mesmo tempo, da incapacidade das crianças para compreender minimamente, em termos científicos, o tema da desigualdade social, Cerejão e Therezinha (permitam-me a liberdade eufônica) optaram por uma abordagem emocional do problema. Afinal, devem ter ponderado, embora os alunos não tenham idade para entender o que é e o que produz a desigualdade na distribuição das riquezas, nada os impede de odiar desde logo essa coisa, o que quer que ela seja.

A dupla de escritores assumiu, desse modo, o seguinte desafio (como eles gostam de dizer) “político-pedagógico”: criar uma empatia entre os alunos e as “vítimas da injustiça social”; induzi-los a acreditar que toda desigualdade é injusta, de sorte que para acabar com a injustiça é preciso acabar com a desigualdade; e predispô-los, enfim, a aceitar ou apoiar a bandeira do igualitarismo socialista.

Como na cabeça de Cerejão e Therezinha vida de pobre consiste em sentir inveja de rico, era necessário lembrar às crianças como é triste não ter uma bicicleta, quando o amigo tem duas, ou não ter uma boneca, quando a amiga tem várias. Mas, em vez de chamar essa tristeza pelo nome que ela tem desde os tempos de Caim, o livro a ela se refere como “sentimento de injustiça”. Assim, além de transmitir às crianças uma visão ideologicamente distorcida – e portanto falsa – dos mecanismos de produção e distribuição da riqueza na sociedade e da realidade vivida por uma pessoa pobre, a dupla Cerejão e Therezinha as ensina a mentir para si mesmas, a fingir que sentem o que não sentem e a berrar “injustiça!” ao menor sintoma de inveja – própria ou de terceiro (essa última presumida) – provocada por alguma desigualdade.
Como se vê, isto não é uma aula, é uma iniciação nos mistérios do esquerdismo militante! Ou seja, no Brasil de hoje, os autores de livros didáticos já não se contentam em fazer a cabeça dos estudantes; eles querem danar as suas almas.

Trata-se, em essência, de uma paródia satânica da parábola dos trabalhadores da vinha, onde Cristo nos ensina, entre tantas outras coisas, que não existe correlação necessária entre desigualdade e injustiça e que é Ele próprio – o justo por excelência – a maior, senão a única, fonte de desigualdades do universo. “Amigo, não fui injusto contigo. Não combinaste um denário? Toma o que é teu e vai. Eu quero dar a este último o mesmo que a ti. Não tenho o direito de fazer o que eu quero com o que é meu?”

Que a palavra “satânica” – o esclarecimento é do filósofo Olavo de Carvalho – “não se compreenda como insulto ou força de expressão. É termo técnico, para designar precisamente o de que se trata. Qualquer estudioso de místicas e religiões comparadas sabe que as práticas de dessensibilização moral são o componente mais típico das chamadas ‘iniciações satânicas’. Enquanto o noviço cristão ou budista aprende a arcar primeiro com o peso do próprio mal, depois com o dos pecados alheios e por fim com o mal do mundo, o asceta satânico tanto mais se exalta no orgulho de uma sobre-humanidade ilusória quanto mais se torna incapaz de sentir o mal que faz”.

Vem daí o sentimento de superioridade moral da militância esquerdista que há mais de trinta anos deposita seus ovos nas cabeças dos estudantes brasileiros, parasitando, como solitárias ideológicas, o nosso sistema de ensino.

Chamo a atenção para a malícia empregada na montagem do experimento (pouco importa se fictício ou real): se a professora houvesse distribuído os doces em conformidade com o desempenho alcançado pelos alunos, eles entenderiam perfeitamente a razão da desigualdade. Dificilmente algum deles se revoltaria. Mas, se isto fosse feito, o tiro sairia pela culatra, pois as crianças também aceitariam com absoluta naturalidade o fato de na sociedade uns ganharem mais e outros menos. Para isso não acontecer, a distribuição tinha de ser gratuita. Só assim o sentimento de inveja (que se pretendia instrumentalizar) não seria contido pela percepção intuitiva de que, por justiça mesmo, uns de fato merecem receber mais e outros menos.

A coisa toda é tão pérfida e tão covarde que somos levados a pensar – sobretudo à vista das perguntas, que parecem haver sido formuladas por pessoas com o mesmo nível de conhecimento e maturidade do público a que são dirigidas – que os autores não têm capacidade para perceber a gravidade do delito que estão cometendo contra crianças totalmente indefesas. Sem descartar essa possibilidade – o que faço em benefício dos próprios autores –, há razões de sobra para atribuir esse crime a uma causa mais profunda e mais geral.

“Hoje em dia – escreve Eduardo Chaves, Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade Estadual de Campinas (http://chaves.com.br/TEXTSELF/PHILOS/Inveja-new.htm) –, “o sentimento pelo qual a inveja pretende passar, a maior parte do tempo, é o de justiça – não a justiça no sentido clássico, que significa dar a cada um o que lhe é devido, mas a justiça em um sentido novo e deturpado, qualificado de ‘social’, que significa dar a cada um parcela igual da produção de todos – ou seja, igualitarismo. (...) Um postulado fundamental da ‘justiça social’ é que uma sociedade é tanto mais justa quanto mais igualitária (não só em termos de oportunidades, mas também em termos materiais, ou de fato). ‘Justiça social’ é, portanto, o conceito político chave para o invejoso, pois lhe permite mascarar de justiça (algo nobre, ao qual ninguém se opõe) seu desejo de que os outros percam aquilo que têm e que ele deseja para si, mas não tem competência ou élan para obter. (...) A luta pelo igualitarismo se tornou verdadeira cruzada a se alimentar do sentimento de inveja. Várias ideologias procuram lhe dar suporte. A marxista é, hoje, a principal delas. A desigualdade é apontada como arbitrária e mesmo ilegal, como decorrente de exploração de muitos por poucos. Assim, o que é apenas desigualdade passa a ser visto como iniqüidade. (...) O igualitarismo tornou-se o ópio dos invejosos.”

O que vemos nesse livro de Português – incluído pelos especialistas do MEC no Guia do Livro Didático de 2008 – é a preparação do terreno; é a fumigação que pretende exterminar ou debilitar as defesas morais instintivas das crianças contra o ataque da militância socialista que as aguarda nas séries subsequentes.

Mas, por favor, que ninguém desconfie da bondade desses educadores. Afinal, eles não querem nada para si; são apenas “trabalhadores do ensino” (como eles também gostam de dizer), tentando contribuir para a construção de uma sociedade mais justa. Vejam a Dinah: “ótima professora, simpática, engraçada, bonita também”. Ora, quem somos nós para discordar?
Assim postas as coisas, só nos resta pedir a Deus que proteja as crianças brasileiras da bondade militante dos seus professores."

Miguel Nagib, coordenador do site www.escolasempartido.org
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segunda-feira, 30 de março de 2009

A PSICOPATOLOGIA DO TOTALITARISMO

"I) A angústia e o medo

Autores como FRANZ NEUMANN (in Estado democrático e Estado autoritário. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1969), põem ênfase no exame das emoções humanas, em especial no estudo da angústia e do medo, marcadamente em relação a suas funções na vida política, baseando-se principalmente em Freud.

MEDO: Reação emocional diante de situações específicas despertadas por objetos, também específicos, do mundo externo;
ANGÚSTIA: É posta em ação por um fator desencadeante interior e, portanto, sem objeto externamente definido.

A angústia compreensivelmente desempenha papel de ainda maior significação na vida psíquica, por estar ligada às representações inconscientes do sujeito, vinculando-se a mais numerosas circunstâncias da vida. Já que situações e objetos que a desencadeiam pertencem á própria pessoa, pois lhe são internos, não lhe é possível deles evadir-se, como poderá fazê-lo com os determinantes do medo.

NEUMANN acentua a significação central da angústia para o estudo do comportamento das coletividades, ressaltando o papel desempenhado por tal emoção nas manifestações humanas e, portanto, para as ciências que têm por tema essas manifestações, pois, como acentua, “a grande preocupação da ciência é a análise e a aplicação do conceito de liberdade humana que lhe está indissoluvelmente ligado”.

O medo, no entanto, não é emoção apenas e sempre caracterizável como conseqüência de um perigo real, pura e exclusivamente. Por exemplo, a maioria das pessoas sentirá medo diante de uma fera perigosa. Por outro lado, as crianças sentem medo em relação a seus pais. Habitualmente esse sentimento não chega, contudo, sequer à suspeita consciente de que esses poderão devorá-las. Não obstante, a prática psicanalítica amiúde mostrará que tal sentimento poderá ser inconscientemente abrigado. Portanto, mesmo que na emoção do medo esteja presente um objeto externo específico, ainda assim a percepção deste objeto está ligada a representações inconscientes sentidas como perigosas. Isso por serem, esses objetos, depositários de impulsos agressivos, neles colocados pelo processo psicológico inconsciente da projeção.


II – O mal estar na vida social

A sensação de mal-estar sentida em relação à vida social talvez seja sempre percebida mais agudamente, em qualquer caso, em relação à coletividade em que cada um vive. Qualquer outra que o sujeito considere como ponto de comparação é sempre vista a uma certa distância afetiva, despertando, pois, menos paixão. A sociedade atual, não obstante, com toda probabilidade é aquela em que há a mais clara percepção das realizações humanas dentro de seu âmbito. Na esfera material, naquilo que concerne ao avanço técnico, parece haver pouca ou nenhuma dúvida com relação à magnitude dos avanços desta cultura. Já no terreno organizacional e afetivo, as realizações parecem bem mais hesitantes e, de alguma forma, sujeitas a progressos envaidecedores e recuos vergonhosos. Precisamente aí, sente-se, nessa mesma sociedade, com mais agudeza, as limitações que a vida social impõe.

Freud já dizia que o programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado. No entanto, não devemos, nem podemos abandonar nossos esforços de vê-lo satisfeito. Freud, ao analisar as fontes de onde provém nosso sofrimento acentua uma delas – a de mais difícil superação – a “insuficiência” das regras que procuram ordenar as relações dos homens uns com os outros na família, no Estado e na sociedade. Isso porque os seres humanos “negamo-nos a aceitar tais limitações; não podemos compreender por que regras que demos anos mesmos não proporcionem proteção nem conforto a todos. Certamente, se ponderarmos quão mal nos houvemos nessa parte, prevenção contra o sofrimento, desperta-nos a suspeita de que também aqui pode ocultar-se uma parte da indomável natureza, desta vez, nossa própria constituição psíquica”.

NEUMANN, oportunamente, assinala que “os conflitos inevitáveis, que são gerados pelas limitações impostas às pulsões libidinais e destrutivas, são os verdadeiros motores da história”. É bem perceptível com que propriedade ele aponta para tal circunstância, tendo-se em mente que a vida social só será possível se e quando algum dique for oposto e mantido à livre satisfação das pulsões de todos e de cada um dos participantes, com a finalidade de, ao menos, atenuar os embates resultantes da colisão entre aspirações inconciliáveis. É preciso pensar-se nos necessários choques decorrentes da vida em sociedade na existência dos indivíduos, sem que se ignorem, em momento algum, os conflitos intrapsíquicos na arena interior de cada pessoa, desencadeados pelo viver coletivo. As possíveis e sérias conseqüências da limitação à satisfação das pulsões foram explicitamente mencionadas por Freud: “não é fácil de entender, como pode ser feito, o retirar a satisfação de uma pulsão. Isso não é conseguido inteiramente sem perigo; quando não se é economicamente compensado (do ponto de vista da economia libidinal), pode preparar-se para graves perturbações”. De acordo com o pensamento de NEUMANN, a alienação, no que à psicologia se refere, é instaurada precisamente por essas limitações e privações pulsionais.

Ao exame dos fatores psicológicos que contribuem para a instituição de um regime totalitário, segue-se a questão de colocar-se o liame lógico e psicológico entre alienação e angústia. Freud já havia concluído que a angústia produziria o recalque. Tal processo é que estaria interposto entre o sujeito e suas pulsões inconscientes. Podemos concluir que daí originar-se-ia a alienação na esfera psicológica. A opinião que encontramos em NEUMANN é a de que a angústia verdadeira corresponde à reação diante de perigos concretos externos e a angústia neurótica é produzida pelo eu – por antecipação – com o fito de evitar situações que poderão trazer perigos. Sabemos que essa formulação tem a vantagem de clarear conceitos e possui, pois, visíveis méritos expositivos. Entretanto, não se pode esquecer que, mesmo ali onde o sujeito defronta-se com situações de perigo concreto, vão ser desencadeadas angústias íntimas correspondentes a representações preexistentes, na maior parte das vezes inconscientes. A impossibilidade, determinada pela existência de processos psicológicos defensivos inconscientes, de ter acesso às representações consideradas inaceitáveis desencadeia a angústia. Essa sinaliza, pois, já não um perigo externo, mas a representação inconsciente de um perigo. Não sendo os sentimentos humanos de nenhum modo algo simples, logo se apresenta ao exame um dado ulterior a trazer uma complicação adicional: a efetivação, ainda que no terreno das representações psíquicas inconscientes, de exigências pulsionais pode ter como conseqüência o surgimento de sentimentos de culpa, os quais, é certo, não excluem necessariamente a angústia, antes, como assinalou Freud, são dela derivados pela via do perigo da perda de amor daqueles de quem se depende e a quem se ama. Acrescente-se a isto a circunstância, tantas e tantas vezes lembrada, de que os perigos da vida são muitos e que esses, mais preocupantes se tornam, quando somados às angústias desencadeadas a partir de representações inconscientes, as quais podem influir decisivamente na percepção dos acontecimentos exteriores.

Quando a fonte da angústia lembra NEUMANN que Freud (o qual inicialmente a teria apresentado como uma transformação automática da libido impedida de ser descarregada em conseqüência do processo psicológico do recalque), mais tarde introduziu certa modificação em suas opiniões. Face à concepção exposta por outros autores que sustentavam que a fonte da angústia era o medo da morte, argumentou Freud que não se tem, em geral, um modelo da sensação da morte - que se considera apenas suposta – por não encontrar correspondência em qualquer experiência vivida. Estaria reduzido, portanto, em sua concepção, esse pretendido medo à morte a um medo à castração, ao qual estaria vinculada a angústia. Dessas considerações retira NEUMANN a lição de que a angústia poderá ter uma útil função como sinal e aviso a alertar sobre a possível existência de perigos exteriores. Pode, segundo aparentemente crê este autor, quando os aspectos neuróticos forem predominantes (como no dizer de FENICHEL, “uma pulga for vista como um elefante”), tornar-se o homem incapaz de avaliar a situação em que se encontra.


III - A vida em sociedade é penosa; a vida sem sociedade é impossível

A neutralidade científica, tantas vezes apresentada como ideal do investigador, não obstante precise ser persistentemente buscada, parece ser um objetivo bastante esquivo e que em todo momento nos escapa. Não obstante Freud tenha forjado um método terapêutico que obrigatoriamente envolve a crença na possibilidade de melhora e, talvez, de aperfeiçoamento dos seres humanos, em várias ocasiões em sua obra mostra-se bem descrente e pessimista na possibilidade de que os homens venham a alcançar a concórdia e a paz. Possivelmente em uma dessas ocasiões é que tenha expressado seu pessimismo em palavras como “todo indivíduo é virtualmente inimigo da cultura, embora se suponha que ela constitui um objeto humano de interesse universal”. No mesmo pessimista modo de pensar, encontramos linhas adiante a assertiva de que “as criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram também podem ser utilizadas para sua aniquilação”. Sua descrença na capacidade autônoma de organização das massas é apresentada em uma expressão tão franca quanto taxativa como “é tão impossível passar sem o controle da massa por uma minoria quanto dispensar a coerção no trabalho da civilização, já que as massas são preguiçosas e pouco inteligentes”. Admitamos um tal ponto de vista sem discuti-lo, ainda que seja para fins de prosseguir nossas indagações. Tomando-o como válido, na seqüência nos será fácil aceitarmos a alta significação atribuída por NEUMANN da angústia na vida social. Embora nem de longe seja exclusividade de pessoas desprovidas da informação mais trivial, essa emoção é depressa despertada diante das circunstâncias da vida que não podem ser logo compreendidas. E há elementos inconscientes a escaparem até mesmo daquelas pessoas tidas por esclarecidas. A massa, psicologicamente desprotegida, necessita, como é assinalado por vários estudiosos desse tema, identificar-se com lideranças que ofereçam caminhos que, pelo menos, pareçam seguros. Tal massa, que por desconhecimento tem dúvidas especialmente quanto a seu futuro, precisa que lhe ofereçam certezas e poderá com presteza acreditar que ama aqueles que lhas proporcionam.

Desde que Freud chamou a atenção para esse fato, o vínculo afetivo que une os componentes das massas bem como essas a seus líderes é algo reconhecido como de suma significação. As características psicológicas das pessoas que irão desempenhar o papel que está destinado a quem lidera as massas demandam certa atenção. Trata-se em qualquer caso de, tanto quanto possível, identificar traços psicológicos comuns existentes em pessoas que seja levadas a aspirar à condição de liderança e que, especialmente, possam fazer com que as massas sintam-se impelidas, irrefletidamente (sua força não está na reflexão), à identificação com tais indivíduos.

Foi ainda Freud quem apresentou como assertiva quase evidente que, ao discorrer sobre a psicologia individual, torna-se necessário, exceto poucas vezes, abordar a psicologia coletiva, uma vez que não é possível, de um modo geral, “prescindir das relações do indivíduo com seus semelhantes”. Considera, portanto, que nesse sentido “a psicologia individual é, desde seu princípio, psicologia social”. Contrapondo-se à noção de “instinto gregário” assinalou ser manifestação claramente observável a atitude hostil com que o filho mais velho acolhe, a princípio, a intromissão em sua vida de um novo irmãozinho. Qualquer pessoa que tenha mais de um filho, se dispuser da vontade de observar e do tempo necessário, poderá por sua vez perceber a propriedade dessa assertiva. Com mais atenção será possível notar, além disso, que a atitude de aceitação plena não se manifesta nem mesmo da parte dos menores em relação ao primogênito. Claro está que a hostilidade franca não se destina a durar: sucumbe ao recalque e isto torna possível a vida em comum. Esse antagonismo, todavia, brota constantemente aqui e ali. São necessárias atitudes coercitivas dos pais e, mais tarde, esforços às vezes notáveis de todos os seus membros para que flua uma vida em família com poucos atritos. A vida gregária seria, pois, obtida através da ativa superação de tais antagonismos. Haveria aí uma constante tensão entre a imperiosa necessidade de coesão grupal e desejos de satisfação dos próprios impulsos – em cada pessoa – em prejuízo de qualquer outro. É óbvio que a ocorrência de frustrações há de ser freqüente face à necessidade de abrir mão da satisfação dos impulsos, indispensável à vida em comum. Ora, as frustrações desencadeiam sentimentos de raiva, os quais são projetados nas pessoas do ambiente em que se vive, as quais são vistas como responsáveis pela frustração. A percepção desses sentimentos é sentida como angústia, que aciona o processo do recalque, mantendo-os, assim fora dos limites da consciência. Como lembrou Freud, nas condições habituais, e por vários motivos, tal angústia, em geral, se vê suplantada, ao menos à primeira vista, por mútua aceitação e uma identificação de molde a estimular os laços familiares, podendo notar-se, freqüentemente, vínculos afetivos ali onde vigeram sentimentos hostis, por obra de um processo psicológico inconsciente designado como formação reativa.

Freud assinala ser da máxima importância, para a eficácia dessa transformação de hostilidade em solidariedade, a crença em cada um na existência de uma forma de tratamento igual e justa para todos. Cada qual pode considerar (e isto às vezes é efetivamente expresso), que na impossibilidade de ser ele próprio o predileto, será preferível ninguém o ser. O fracasso dessa expectativa é visto, vez por outra, e tem sido tema de extraordinárias realizações ficcionais que – não apenas por isso, mas, também, por isso – parecem destinadas a permanecer cativando a atenção e o interesse dos leitores. Seu paradigma é a lenda de Caim e Abel, a qual, milenar que é, segue atraindo a atenção em todas as variações que a imaginação lhe pode emprestar.

A satisfação da demanda de tratamento igualitário, de seu lado, atingindo êxito, como lembra Freud, encontra expressão no companheirismo e na amizade fraterna, que seriam derivados bem-sucedidos – transformados em seu contrário – da inveja uma vez existente. Aí também estaria expressa a expectativa infantil de que ninguém haveria de sobressair-se, todos sendo e obtendo o mesmo valor. Concedem-se, dessa forma, a cada um e a todos os mesmos direitos. Recusando-se privilégios, pela superação de certas expectativas infantis, poderão ser lançados os fundamentos da vida adulta. De um ponto de vista psicológico, é dessa matriz que se forma os sentimentos que conduzem à noção de justiça social, como oportunamente assinalou Freud.

Enraízam-se, destarte, em certa etapa do desenvolvimento, as aptidões para uma vida coletiva que contemple a liberdade com respeito à lei, que é a conseqüência, como processo da evolução psíquica, do reconhecimento dos demais como pessoas. Pressuposta está que – para o final desse primeiro período de desenvolvimento psicológico, ao qual Freud denominou de fase oral, quando o pequeno ser principia a perceber que sua mãe é um ser independente dele e, mais adiante, que há outras pessoas no mundo – seja ultrapassada satisfatoriamente a etapa de absoluta dependência da pessoa em relação a seus maiores, especialmente da figura materna.

É quando vai se desenvolvendo a próxima etapa, denominada fase anal, que se vai adquirir a noção de se ser alguém claramente distinto da mãe, que progride a aquisição da linguagem, que se obtém o controle dos esfíncteres e, concomitantemente, aprende-se da mesma forma que é possível controlar as pessoas adultas do ambiente mediante choro, riso, chegando até ao domínio da linguagem. Uma criança, nessa fase, todavia, não mede - como alguém plenamente desenvolvido - os limites de suas possibilidades, observando-se o que Freud denominou de onipotência dos pensamentos, pela qual pode – imagina a criança – exercer controle sobre seu ambiente". Ronaldo Brum (in Tavares, J. G. O totalitarismo tardio)
(CONTINUA)

PÉ-DE-CABRA

Partidos políticos sempre usaram alegorias que lhes dessem uma identidade e permitissem à grande massa do povo uma identificação imediata: quem era quem. Essas práticas remetem a tempos imemoriais. Nas guerras os soldados seguiam atrás de seus pavilhões e estandartes e sua defesa era permeada de forte carga simbólica. Um exemplo famoso (retratado em recente filme) é do hasteamento da bandeira americana em Iwojima durante a segunda grande guerra. A força daquela imagem triunfante é reconhecida por todos que estudaram aquele período histórico. Há partidos atualmente que usam bichos, ou flores, ou árvores, ou instrumentos de trabalho, ou estrelas, ou armas etc. E não só no Brasil, como em outras partes do mundo. Em campanhas específicas também podem ser usados símbolos para representar o cerne da mensagem eleitoral do momento. A vassoura janista e o caçador de marajás ficaram marcados em nossa história. Os publicitários, aliás, são mestres neste assunto e costumam encontrar engenhosas soluções.

Com o mesmo desinteresse elegante que Swift imprimiu a uma célebre página sua quando, em 1729, propôs que a resolução dos problemas das crianças abandonadas em Dublin se fizesse pela via culinária, isto é, que os ricos devorassem os filhos dos pobres (gerando emprego e renda para os desvalidos), há sugestões correndo na praça visando oferecer aos postulantes situacionistas nas próximas eleições presidenciais uma formidável arma de batalha. Qual a principal delas? Trata-se de encontrar um signo que represente bem a proveitosa parceria da corrupção com o mensalão que marcou com tanta eficiência o período Lula da Silva.

Como nenhum partido gosta de abrir mão de seus símbolos tradicionais em prol de outros, há que se ter um que sintetize fielmente o cerne dos costumes. Para guardar coerência com o espírito majoritário entre os parceiros das candidaturas oficiais talvez se deva usar um pé-de-cabra para representá-las. No imaginário popular essa ferramenta se associa facilmente com amigos de cofres, principalmente os alheios. Com a forte propaganda que o petismo e aliados vêm fazendo nos últimos anos (a respeito de suas práticas em avançar sobre o patrimônio público), os eleitores ficarão bem informados sobre as pretensões dos postulantes que empunharem esta bandeira. Grafismos de linhas simples com um cofre estereotipado sendo arrombado pela turma de candidatos (todos com uma estrelinha na cabeça e um pé-de-cabra na mão), transmitirão de maneira eficiente o cerne da mensagem política à população. Com o tempo bastará a velha ferramenta (como a vassoura de Jânio e a espada de Lott), o que barateará muito a propaganda, e todos compreenderão perfeitamente o que se fará futuramente na presidência, isto é, caso eles vençam as eleições.