“Em 1988, os meios
acadêmicos da França reagiram com inusitado furor quando o chileno Victor
Farias publicou Heidegger e o nazismo [1], um estudo brilhante denunciando as
implicações da adesão ao nazismo do filósofo alemão Martin Heidegger
(Messkirch, 1889-1976) no interior de sua filosofia. Essas reações
demonstraram, antes de tudo, que esses círculos já estavam preparados para
defender a filosofia de Heidegger como um sistema autônomo e couraçado contra
influências internas e externas das posições políticas de seu próprio autor.
Parecia importante aos acadêmicos
preservar a ideia de que um “grande pensador” pudesse aderir ao nazismo sem ter
as produções de seu intelecto afetadas, garantindo uma continuidade da
assimilação de seus pensamentos sem restrições pelos contemporâneos. Por
extensão, qualquer artista ou intelectual de alguma estatura que tivesse
colaborado com o nazismo poderia ter suas obras consumidas na atualidade sem
contra-indicações. Os “erros” políticos de um criador ou intelectual não
afetariam suas obras artísticas, seus sistemas filosóficos.
No artigo “Ainda
Heidegger e o nazismo”, por exemplo, o acadêmico francês Pierre Aubenque
estranhou que a denúncia do nazismo de Heidegger fizesse mais barulho em 1988
que em 1933 e, como ilustração, lembrou que Jean-Paul Sartre, “o primeiro e
mais célebre discípulo francês de Heidegger […] estava neste momento em Berlim,
e devia ler os jornais” [2].
De fato, Sartre
estudava a fenomenologia de Husserl em Berlim, mas bastante alheio ao que se
passava a seu redor. A política só passou a ocupar seu pensamento com a
mobilização e ele só veio a ler Heidegger quando foi internado num campo de
prisioneiros. Em 1944, Sartre defendeu Heidegger dos críticos comunistas,
tentando separar sua filosofia de seu engajamento nazista [3]. Fazia uma autodefesa, na medida em que se
considerava influenciado pelo pensamento de Heidegger. No entanto, a diferença
que o excluía deste pensamento foi revelada pelo próprio Heidegger, ao recusar
recebê-lo para uma entrevista. Assim, se o engajamento nazista de Heidegger não
perturbara Sartre, à época, isto prova apenas a ingenuidade deste filósofo.
Por outro lado,
Herbert Marcuse, que se acreditava mais profundamente influenciado por
Heidegger, experimentou, em 1933, uma indignação igual à manifestada por
Farias. Tendo aprendido filosofia com Heidegger em Freiburg, Marcuse chocou-se
ao vê-lo, quatro meses depois da tomada do poder pelos nacional-socialistas,
apoiar Hitler com entusiasmo, em palavras e atos, filiando-se formalmente ao
NSDAP (o Partido Nazista) a 1° de maio de 1933. Assumiu o Reitorado da
Universidade de Freiburg em abril de 1933 por votação unânime do conselho
plenário da universidade. Heidegger mentiu sobre isso ao Tribunal de
Desnazificação ao dizer que nunca foi membro do NSDAP. Quatro meses depois da
nomeação de Hitler como chanceler, ele discursou sobre a “grandeza e
magnificência da reabilitação nacional”. E exaltou a ditadura nazista em seu
discurse de posse, A auto-afirmação da universidade alemã (1933):
“A tão decantada ‘liberdade
acadêmica’ se vê corrida da universidade alemã, porque esta liberdade era
inautêntica, porque somente negadora. Ela significava principalmente a
despreocupação, o arbitrário dos projetos e das inclinações, a licença em tudo
o que se fazia ou não se fazia. O conceito de liberdade do estudante alemão é
agora reconduzido à sua verdade. É dela que se desprendem no futuro as
obrigações e o serviço dos estudantes alemães.”
“A primeira obrigação
é a que os conduz à comunidade popular. Ele os leva ao dever de […] meter a mão
na massa. Essa obrigação é desde agora afixada e enraizada na existência
estudantil pelo serviço do trabalho.”
“A segunda obrigação
é a que os liga à honra e ao destino da nação no meio dos outros povos. Ela
exige uma disponibilidade – assegurada pelo saber e a capacidade, e fortificada
pela disciplina – a se engajar até o fim. Essa obrigação encerra e penetra
desde então a existência estudantil enquanto serviço militar.”
“A terceira
obrigação da comunidade estudantil é a que a liga à missão espiritual
do povo alemão [que] trabalha para o seu destino na medida em que coloca sua
história numa certa possibilidade: a de manifestar a superpotência de todas as
potências formadoras do mundo da existência humana e onde ele conquista sempre
novamente seu mundo espiritual […] o serviço do saber” [4].
As duas primeiras
obrigações (o serviço do trabalho e o serviço militar são
claras, mas a terceira (o serviço do saber) é um tanto obscura:
referindo-se à “missão espiritual histórica” da Alemanha e ao “destino do povo
alemão” entrevisto por Heidegger sob o nazismo, seria esta uma de forma cifrada
de obrigar a juventude à missão de dominar o mundo até
torná-lo “espírito puro” como só o povo alemão seria capaz de sê-lo e de
fazê-lo. As três novas “obrigações” da juventude alemã defendidas por Heidegger
estavam perfeitamente de acordo com as medidas tomadas pela ditadura do novo
Estado nazista.
“Tal era então a
minha convicção”, declarou o filósofo em 1966 numa entrevista originalmente
concedida à revista Der Spiegel, publicada apenas em 1976, por
ocasião de sua morte, “eu não via outra alternativa na época. No meio da
confusão geral das opiniões e das tendências políticas representadas por 22
partidos, tratava-se de encontrar uma posição nacional e, sobretudo, social, no
sentido geral da tentativa de Friedrich Naumann” [5]. Ou seja, a ditadura nazista e suas
“obrigações” impostas à juventude alemã pareciam a Heidegger (e ainda lhe
pareciam em 1966) a única alternativa viável aos “males” da democracia liberal
– que era, contraditoriamente à declaração de Heidegger, o ideal de Friedrich
Naumann.
Na mesma
entrevista, Heidegger defendeu-se das acusações de antissemitismo, revelando um
episódio de resistência pessoal: dois dias depois de aceitar o cargo de reitor,
o chefe dos estudantes nacional-socialistas e dois companheiros foram ao
reitorado renovar o pedido de colocação dos cartazes contra judeus. Heidegger
teria recusado. Os três estudantes teriam se retirado observando que a
proibição seria comunicada à chefatura dos estudantes nacional-socialistas.
Alguns dias depois Dr. Baumann, chefe de grupo da S.A., teria telefonado a Heidegger
exigindo a autorização para afixar os cartazes, como já se fizera em outras
universidades. No caso de recusa, Heidegger seria destituído do cargo e a
universidade poderia ser fechada. Heidegger teria buscado apoio junto ao
Ministro da Educação de Baden e ouvido dele que nada podia fazer contra as S.A.
No entanto, Heidegger teria se mantido firme na negativa [6]. Não foi demitido por isso, nem a
universidade foi fechada pelo regime…
Ernildo Stein
também exibiu uma carta inédita de Heidegger em que ele se defende das
acusações de antissemitismo: ‘Ide a Munique e perguntai ao Pe. Karl Rahner que
assistiu às minhas aulas de 1934 a 1936, para verem a crítica que se ousava
contra o biologismo, o racismo do nacional-socialismo’. [7] Contudo, de seu posto de poder
no reitorado, onde permaneceu até fevereiro de 1934, Heidegger aprovou diversas
medidas de Hitler, entre as quais o ato pelo qual a Alemanha deixou a Sociedade
das Nações [8].
Por motivos obscuros – que Faria
associa ao massacre das S. A. na Noite das Facas Longas –, Heidegger demitiu-se
no décimo mês dos quatro anos que tinha pela frente. Seus cursos passaram a ser
supervisionados por agentes do regime, mas ele não foi perseguido, nem
censurado: continuou lecionando e publicando. Segundo testemunhas oculares,
Heidegger usou a insígnia do Partido Nazista na lapela (foto) até fins de 1938.
Não se desligou do NSDAP até o fim da guerra, em 1945. A partir de então, ficou
proibido de lecionar pelo Tribunal da Desnazificação.
Marcuse procurou,
na própria filosofia do mestre, sinais que pudessem explicar a aparente
“conversão” do filósofo do Ser ao admirador de Hitler, encontrando, em Ser
e tempo (1927), uma série de categorias que faziam Heidegger
interpretar o Dasein a partir dos medos e frustrações
produzidos numa sociedade repressiva, uma existência sem alegria, obscurecida
pela morte e a ansiedade – material humano para a personalidade autoritária [9]. Assim, já em 1934 Marcuse denunciou a
traição de Heidegger à filosofia ocidental que ele pretendia representar [10].
Em 1947, Herbert
Marcuse visitou Heidegger em sua cabana em Todtnauberg, na Floresta Negra,
esperando do filósofo que o influenciara com Ser e tempo uma
palavra que o dissociasse de uma vez por todas do nazismo. A palavra esperada
não foi proferida. Inconformado, Marcuse enviou a Heidegger, dos Estados
Unidos, um pacote de alimentos, dedicados “ao homem com o qual aprendi
filosofia de 1928 a 1932”, exprimindo sua esperança de vê-lo manifestar
publicamente sua dissociação em relação ao nazismo ou uma efetiva mudança de
pensamento. Heidegger respondeu a Marcuse com uma série de racionalizações.
Ele teria esperado
do nacional-socialismo um “renascimento espiritual da vida em sua totalidade,
uma reconciliação de antagonismos sociais e uma libertação do Dasein ocidental
dos perigos do comunismo”. E teria reconhecido seu “erro” em 1934, retirando-se
do Reitorado “em protesto contra o Estado e o Partido”. Mais tarde, teria
incorporado em suas leituras e cursos “um ponto de vista que era tão inequívoco
que entre aqueles que foram meus estudantes, nenhum caiu vítima da ideologia
nazista”. Heidegger concluía que a guerra fizera dos alemães ocidentais vítimas
na mesma medida que os judeus, com a diferença de que “tudo o que ocorreu desde
1945 tornou-se conhecimento público, enquanto o terror sanguinário dos nazistas
na realidade foi mantido em segredo do povo alemão”[11].
Marcuse observou
que ignorar a diferença entre os campos de concentração nazistas e as
deportações e internamentos do pós-guerra era colocar-se fora da dimensão do
Logos, o que tornava todo diálogo impossível: “O senhor, o filósofo, confundiu
a liquidação do Dasein ocidental com o seu renascimento? Mas
esta liquidação não era já evidente em cada palavra dos “líderes”, em cada
gesto e morte das S.A. muito tempo antes de 1933?… Talvez estejamos ainda
experimentando a continuação do que começou em 1933. Que o senhor ainda
considere isso como um “renascimento”, eu não estou certo.” [12] Com isso Marcuse rompeu todas as
relações com Heidegger.
Nos anos de 1950, sua ex-aluna e
ex-amante Hannah Arendt, depois de afastar-se dele devido ao engajamento
nazista do mestre, voltou a procurá-lo e, perdoando-o, empenhou-se na sua
reabilitação intelectual. Numa carta à sua aluna mais brilhante, datada de 12
de abril de 1950, Heidegger, anticomunista de longa data, rejeitou as atitudes
de pessimismo e desespero da filósofa diante do início da Guerra Fria
insistindo para que ela entendesse o “ser” sem reduzi-lo a uma mera ocorrência
histórica. Defendia que “o destino dos judeus e dos alemães tem a própria
verdade que não pode ser alcançada pelo nosso raciocínio histórico… Quando o
Mal sobrevém, e isso tem acontecido, então o ser ascende, desse ponto em
diante, e se torna um mistério para o pensamento e para a ação dos homens; pois
o fato de alguma coisa existir não significa que seja boa e justa… Não sou
experiente nem tampouco talentoso no domínio do político.” Heidegger abdicava
da resistência e mesmo de qualquer crítica aos desmandos do poder, colocando-se
do lado dos “alemães”, ou seja, dos colaboradores, submetido às “forças
irracionais”, ou seja, ao nazismo, além de qualquer explicação ou “intelecção”.
Em La
poésie comme expérience, Philippe Lacoue-Labarthe comentou a tentativa
fracassada de diálogo com Heidegger empreendida em julho de 1967 pelo poeta
romeno Paul Celan, cujos pais haviam sido mortos num campo de concentração, do
qual ele escapara, exilando-se em Paris. Na Floresta Negra, Celan esperava
ouvir uma explicação do filósofo sobre Auschwitz. Tudo o que se sabe é que saiu
da cabana de Heidegger com a decisão de nunca mais encontrá-lo. Exprimiu mais
tarde sua frustração no poema “Todtnauberg”, que registra, hermeticamente, a
ausência da palavra que seu coração esperava receber [13]. Considerado o grande poeta do
Holocausto, Celan suicidou-se poucos anos depois, em 1970.
Esses
mal-entendidos em torno da posição política e da postura ética de Heidegger
devem-se, em grande parte, como já notara Pierre Bourdieu, à linguagem cifrada
criada pelo filósofo [14]. Hannah Arendt justificava o engajamento
nazista de Heidegger como um “erro político” do mesmo tipo que o de Platão em
relação à tirania [15]. E Karl Jaspers tentou até o fim da vida
“entender” o sentido do Reitorado de Heidegger, em anotações cada vez mais
céticas, em seus diários [16]. Atraídos pelo incompreensível, Sartre e
Marcuse projetaram, no emaranhado da filosofia de Heidegger, seus próprios
pensamentos, descobrindo nele uma genialidade que não passava do reflexo de
suas mentes. No caso de Celan, o emaranhado assumiu a aparência de um
pensamento abismal, digno de reverência, mesmo depois de viver o inferno do
Holocausto. Contudo, em oposição aos seus “discípulos” visceralmente éticos,
Heidegger jamais distinguiu padrões de aplicação da racionalidade técnica a
objetos ou seres humanos. Provam-no as duas únicas passagens conhecidas de sua
obra em que ele se referiu ao Holocausto:
“Agricultura é hoje uma indústria
alimentícia motorizada, em essência o mesmo que a fabricação de cadáveres nas
câmaras de gás e campos de extermínio, o mesmo que o bloqueio e fome de países,
o mesmo que a fabricação de bombas atômicas.”
“Centenas de
milhares morrem en masse. Eles morrem? Eles perecem. Eles foram
suprimidos. Eles morrem? Eles tornam-se itens do material disponível para a
fabricação de cadáveres. Eles morrem? Dito duramente, eles foram liquidados em
campos de extermínio. E, além disso, milhões perecem agora de fome na China.
Morrer, entretanto, significa suportar a morte em sua essência. Ser capaz de
morrer significa ser capaz de suportar esta morte. Mas estamos aptos a isso
somente quando a essência da morte tem uma afinidade com nossa essência.”
Essas pérolas estão
incrustadas em duas de quatro leituras que Heidegger apresentou em 1949 no
Clube de Bremen [17]. Aí, a técnica assume o papel do diabo,
atravessando o mundo e reduzindo homens e coisas a uma única matéria orgânica.
A questão de saber quem manipula a técnica, e com que finalidade, é irrelevante
no sistema de Heidegger, que apreende a História como uma catástrofe
metafísica. O que ele nega radicalmente é o próprio fundamento da liberdade,
que obriga cada homem a assumir a responsabilidade de suas ações frente às
ações alheias, num mundo eternamente em conflito.
A seu ver, a
técnica é o mal, fora do controle humano, capaz de ser dominada apenas por um
deus, um messias, um Führer. Heidegger espera que esse deus apareça
para salvar a humanidade ou que não apareça e tudo então se aniquile na
nulidade do nada, constituindo sua filosofia no preparar espiritualmente
os homens para esse grande momento de salvação ou de aniquilação:
“[…] A técnica em
sua essência é algo que o homem não pode dominar. […] a técnica moderna não é
um utensílio e nada tem a ver com os utensílios. […] Tudo funciona, isto é o
inquietante, que funcione, e que o funcionamento nos impila sempre a um maior
funcionamento […] a técnica dos homens separa-os da terra e os desarraiga
sempre mais. […] eu me assusto ao ver as fotos da Terra vista da lua. Não
precisamos de bombas atômicas, o desenraizamento dos homens é um fato. Temos
apenas puras relações técnicas. Não há um só canto da Terra em que o homem,
hoje, possa viver. […] A filosofia não pode realizar imediatamente uma mudança
no atual estado do mundo. […] Só um deus pode salvar-nos ainda. Resta-nos a
única possibilidade de prepararmo-nos, pelo pensar e poetar, para a aparição de
um deus ou sua ausência no ocaso. Frente à ausência de um deus, nos afundamos.
[…] A preparação para essa espera é a primeira ajuda. O mundo, o que é e como
é, não pode ser só para os homens, mas tampouco sem eles. […]”[18]
Heidegger é capaz
de sugerir, através de uma sutil distinção entre morrer e perecer, que os seis
milhões de “eles” (a palavra “judeus” é tabu no seu sistema; Heidegger também
reduz os seis milhões a “centenas de milhares”) gaseados nos campos de
extermínio, comparados a milhões de chineses dizimados pela fome, não “morreram”,
pois, “incapazes de morrer”, limitaram-se a “perecer” (como “pulgas”, diria
Joseph Goebbels: se para morrer é preciso merecer a morte, somente os soldados
morrem, na guerra, uma morte afinada com sua essência).
O comportamento
aético ou mesmo antiético de Heidegger, que inclui a denúncia do químico
Hermann Staudinger (futuro Premio Nobel) e do filósofo Eduard Baumgarten, não
perturba Pierre Aubenque, que se irrita, sim, com o sucesso do livro de Farias,
duvidando de sua competência: “As escassas análises a que se propõe ou são
curtas demais ou estão redondamente erradas. A gente fica se perguntando, como
disse com justeza J. Derrida, a seu respeito, ‘se ele lê Heidegger há mais de
uma hora’. Mas, argumentar-se-á, talvez seja um livro de História. Também não
acredito nisso, não apenas por estar repleto de erros como também porque seu
fim único e confesso consiste em erigir um requisitório”.
Aubenque
interroga-se sobre a natureza do livro, ataca o tom das
afirmações do autor, acusa-o de malevolência por abrir e encerrar a obra com a
figura do escritor e pregador anti-semita Abraham a Sancta Clara, cujo estilo
Heidegger admirava desde a juventude: “Para a maior parte dos franceses, sem
dúvida, este nome não significa nada, o que permitiu ao senhor Farias
abismar-se nesta ignorância”. Mas Farias não escreveu seu livro para os
franceses:Heidegger e o nazismo só foi publicado na França depois
que as editoras alemãs procuradas recusaram publicá-lo.
Aubenque fala em
“impostura”, “delírio de interpretação” e “insinuações que teriam ido parar nos
tribunais se Heidegger fosse vivo” quando Farias ousa imaginar porque Heidegger
jamais se manifestou publicamente a respeito de Auschwitz. Por fim, é obrigado
a admitir: “O que fica de todo esse embrulho é o que já se sabia”.
Cuidadosamente, Aubenque evitou examinar a causa de suairritação,
ligada à tese de Farias, descartada como “sumária”.
Em que consiste
essa tese? É muito simples, clara e coerente: Heidegger teria sido um nazista essencial,
isto é, o seu nazismo estaria em sua própria maneira de ser, pensar e
exprimir-se, tanto quanto no único engajamento político que
tomou em sua vida. Identificava-se com
o movimento espartano das S.A., traído por Hitler na Noite das Facas Longas,
permanecendo irrealizado e idealizado.
Ora, admitir a existência de um
nazismo essencial – uma ideologia que transcende o momento histórico, com
pontos de contato em diversas outras ideologias, numa tradição que encontra
continuidade e permanência, independente dos movimentos nos quais se encarna, é
admitir a possibilidade de se aderir a ele inconscientemente, ou sem a
necessidade de uma prévia identificação. O fato de Heidegger “fechar-se numa
solidão desgostosa” a partir de 1934, e “consagrar-se unicamente ao ensino até
1944” não o teria impedido de permanecer fiel ao que ele uma vez chamou de “a
verdade interna do movimento nacional-socialista”.
Aubenque
inquieta-se com a questão decisiva de haver ou não “uma relação essencial entre
a filosofia de Heidegger e seu engajamento nacional-socialista”. Se houver uma
dependência essencial, como os documentos levantados por Farias o indicam – e
muitos arquivos relativos à questão continuam fechados, o que significa,
perigosamente para os defensores de Heidegger, que apenas a ponta do iceberg emergiu
do oceano – os heideggerianos não poderão mais vangloriar-se de ler Heidegger
há mais de uma hora, e haverá de pairar para sempre, sobre o hermetismo de seus
discursos, a sombra indesejável de Auschwitz. Antes de Farias, eles podiam
orgulhar-se de seu mestre, mesmo sabendo, e sabendo que todos sabiam, que ele
havia sido um nazista militante, por um curto período de tempo, logo tomando
suas distancias críticas – discretas, coerentes e dignas de sua “grandeza”. Até
Jünger Habermas tentou vislumbrar esta “grandeza” ao interpretar o silencio de
Heidegger como uma forma de não suportar a vaidade ferida por não ter sido
sempre o porta-voz da verdade[19]. Mas teria sido Heidegger alguma
vez o porta-voz da verdade?
Desconcertado com a negação desta
“grandeza”, Aubenque busca socorro até junto a um ideólogo nazista, Ernst
Krieck, que criticava, à época, o pensamento e a linguagem heterodoxos de
Heidegger, e se reconforta na fantasia de um monolitismo na visão de mundo
nacional-socialista, como se Adolf Hitler, Joseph Goebbels, Otto Strasser,
Alfred Rosenberg ou Carl Schmitt pensassem em uníssono: “Há ou não uma relação
de dependência essencial entre a filosofia de Heidegger e seu engajamento
nacional-socialista? E. Krieck, que conhecia bem o nazismo, pensava que não.
Também acredito que não.” O problema é que, em que pese a opinião do ideólogo
nazista, a crença de Aubenque não altera a tese de Farias.
Aubenque procura, então, detectar, no
emaranhado dos conceitos forjados por Heidegger, algum sinal, algum sussurro,
que demonstre, de forma cabal e retumbante, que ele se distanciou do nazismo,
que o criticou, sim, “à sua maneira”. É uma tarefa ingrata: Heidegger
“desconfia dos valores morais”. O filósofo “se esforça, através do pensamento,
para galgar novamente uma encosta”. Mas as pedras são escorregadias: Heidegger
tropeça sem cessar. Aubenque joga-lhe uma corda, tenta dar-lhe a mão, deduzindo
a partir do nada que o filósofo compreendeu o nazismo “como a realização mais
monstruosa, porque mais completa, da administração total da sociedade e do
ente”. Mas Aubenque só engana a si mesmo. E ele precisa desta automistificação.
Afinal, o que mais o perturba é o fato de o engajamento nazista de Heidegger
despertar em Farias uma indignação moral e intelectual que ele desconhece, pois
sempre tomou este engajamento de forma leve, como um episódio biográfico a
registrar e desconsiderar.
Frustrado, Aubenque culpa os “novos
tempos” de estarem estigmatizando o nazismo, reduzindo-o ao Holocausto, numa
“estilização” enquanto “figura do mal absoluto”, “bloco errático da História”
ou “cesura apocalíptica”, representações “cujo efeito é tornar cada vez mais
odioso, cada vez mais indesculpável todo e qualquer contato, mesmo o mais
superficial, com ele”. Afinal, em 1948, quando Aubenque travou conhecimento com
Heidegger, a militância nazista do filósofo não diminuiu sua admiração por ele:
“Sabíamos que Heidegger fora nazista… seria a inconsciência da juventude que
nos tornava, então, de tal modo indiferentes?”.
Não, não era a
inconsciência da juventude: Aubenque não é mais jovem, e continua indiferente.
Ele considera o Reitorado de Heidegger uma “relação superficial” com o nazismo,
incapaz de indignar-se com a adesão de um “grande pensador” a um regime que
estava queimando livros, exilando o melhor da cultura alemã, perseguindo judeus
e internando opositores em campos de concentração. A explicação para a indiferença
de Aubenque diante do colaboracionismo de Heidegger está no colaboracionismo
latente entre os acadêmicos, o que lhes relativiza e suaviza a visão. É sua
simpatia pelo ideal nazista, que o faz constatar, algo surpreso, que algumas
das reivindicações nazistas de Heidegger, como as de “reabilitar o trabalho
manual e de aproximar os estudantes do mundo do trabalho, não são inteiramente
desprezíveis”, achando apenas absurdo “depositar nos nazistas a esperança de
satisfazê-las”. Sim, o nazismo histórico não poderia esgotar o nazismo
essencial, que sempre projetou e projetará suas reivindicações sobre todos os
movimentos sociais, independentemente de sua cor política.
Em Heidegger:
Introdução do nazismo na filosofia (2005), Emmanuel Faye, professor de
Filosofia da Universidade de Paris, em Nanterre, levou a crítica do fascismo
essencial ao extremo: as ideias fascistas estariam tão entremeadas na filosofia
de Heidegger que as livrarias deveriam colocar suas obras não nas estantes de
Filosofia, mas nas de História do Nazismo, em sinal de advertência, do mesmo
modo que se coloca uma caveira na etiqueta das garrafas de veneno, para impedir
a difusão descuidada de seu “discurso de ódio”, que inclui: exaltação do Estado
em relação ao indivíduo, impossibilidade da moralidade, anti-humanismo, pureza
racial. Foi o ataque mais violento a Heidegger, cuja leitura é geralmente
obrigatória nas faculdades de Filosofia. Faye alerta para o culto a Heidegger
na extrema direita, mas observa que os intelectuais da esquerda quase sempre
foram inspirados por ele.
O livro de Faye
reacendeu a polêmica: Richard Wolin declarou não ter se convencido de que o
pensamento de Heidegger “esteja inteiramente (sic) contaminado pelo nazismo” [20]. Mais ambígua foi a “defesa” de Heidegger
por Richard Rorty: “Você não pode ler a maioria dos grandes filósofos mais
recentes sem levar o pensamento de Heidegger em conta […] O cheiro da fumaça
dos crematórios sobreviverá nas suas páginas” [21]. Citando Bernard Wasserstein, Ron
Rosenbaum, autor de Explaining Hitler, sugeriu até que a visão do
Holocausto por Hannah Arendt tenha sido corrompida pelas ideias de Heidegger,
que lhe teriam inspirado o conceito da “banalidade do mal”. Já Carlin Romano,
no artigo “Heil Heidegger!” (The Chronicle of Higher Education),
chutou o pau da barraca qualificando Heidegger como “o falastrão da Floresta
Negra” [22].
Vimos como Sartre e
Marcuse equivocaram-se em seu contato com a filosofia de Heidegger. Mais
problemática é a influência acrítica que essa filosofia exerceu e exerce nos
pós-modernistas, anticolonialistas e ecologistas, baseando nela suas críticas à
razão, à ética e à tecnologia. Alexandre Marques Cabral fala de uma destruição
da ética em Heidegger [23]. Mas teólogos basearam sua defesa do ato
da fé na crítica heideggeriana da razão. Arquitetos se inspiraram na rejeição
das convenções em Heidegger ao introduzir novas formas e materiais em seus
projetos. A crítica heideggeriana da tecnologia atraiu não apenas filósofos,
como também críticos literários, ambientalistas, urbanistas, poetas. Tanta
simpatia por um luminar nazista dá o que pensar…
Os defensores de
Heidegger à direita e à esquerda consideram o engajamento nazista de Heidegger
um “erro”, que atribuem à sua “ingenuidade política” e ao seu “desconhecimento
do mundo real”. Para Gianni Vattimo, o erro foi “filosófico”, ou seja: “Heidegger
acreditou que [na Alemanha nazista] fosse possível reconstruir uma situação
histórica análoga àquela da Grécia pré-clássica, na qual, errando, porque
esquecia a diferença ontológica, pensou que o ser pudesse ‘dar-se’ de modo
não-metafísico. Mas era um erro, antes de tudo filosófico.” Ainda em defesa de
Heidegger, Vattimo estende sua crítica a outros filósofos: “Acredito que o
Heidegger dos anos trinta […] se deu conta de que a autenticidade da qual
falava Ser e tempo, não é algo que se possa procurar ‘sozinhos’.
Autenticidade significa co-responder à chamada do ser; mas o ser assim
entendido é também a própria comunidade, a sociedade na qual se vive, etc.
Também por isso Heidegger se empenhou com Hitler, errando. Mas devemos pensar
que naqueles anos Lukacs e Bloch estavam com Stalin, Giovanni Gentile com
Mussolini, etc.” Os desculpadores sempre terminam com um “mas”, citando outros
culpados, como se muitos culpados de diferentes culpas desculpassem o culpado
da culpa maior…
Vattimo completa
seu pensamento fraco com uma apreciação parcial da atualidade:
“Se Heidegger visse o que acontece hoje por causa do fundamentalismo, da
pretensão de ser ‘correto’ (Bush acredita de verdade, como os nazistas, no Gott
mit uns, Deus está conosco; e age exatamente como eles), enfraqueceria
muito as próprias posições” [24]. Desculpando Heidegger pelo forte apoio
a Hitler, culpa Bush de agir exatamente como os nazistas (com
campos de extermínio? Câmaras de gás? Genocídios?). Já os verdadeiros
fundamentalistas, os terroristas islâmicos, não merecem do pensador
fraco qualquer crítica, forte ou fraca: o pensamento fraco também
acabará desculpando Hitler pelo Holocausto?
Para Ernildo Stein,
Heidegger “fez um juízo equivocado sobre o regime que estava começando,
pensando que aceitando a reitoria teria condições de criar a nova universidade
que substituiria a universidade dos mandarins […] O filósofo foi ingênuo porque
desconhecia as ciências humanas da sociologia, da política, da economia e
pensava, contudo, poder diagnosticar o futuro de um regime. […] os filósofos
não foram feitos para serem heróis da resistência […]. O silêncio do filósofo
sobre o gesto de que ele confessou a Jaspers que ‘se sentia envergonhado do
passo dado’, deve-se […] à convicção de que uma confissão pública não tinha
sentido porque não apagaria nada.” [25]
Mas como dar algum crédito a um filósofo que desconhece a
sociologia, a política e a economia? A um pensador que luta contra os
“mandarins” da universidade, mas exalta Hitler, e cujos defensores consideram
como alguém incapaz de entender o mundo em que vive?
Já à
extrema-direita Henri Crétella e Stéphane Zagdanski tentam embaralhar o jogo
fazendo de Heidegger um antinazista visceral, um humanista radical cuja
filosofia seria a única capaz de explicar, resistir e combater
o nazismo, devendo ser esse filósofo considerado como um “pensador judeu”, o
que transformaria os críticos que o “difamam” em “criminosos” e “nazistas” [26]. Sem comentários.
Pode-se separar a
filosofia de Heidegger de seu compromisso com o nazismo? A questão é mais clara
quando pensamos no cinema: alguém em sã consciência dirá que a obra de D. W.
Griffith não foi de modo algum contaminada por sua visão racista do mundo?
Basta rever The Birth of a Nation (O nascimento de uma nação,
EUA, 1914). Mas é preciso identificar em qualquer discurso
todos os seus sentidos, tanto os óbvios quanto os obtusos. O racismo de
Griffith impregna-se em seu cinema, que permanece datado sob
esse aspecto. Por outro lado, seus filmes não se limitam aos
clichês racistas, e comovem ainda hoje porque sob os estereótipos reside
uma essência humanista que os redime. Griffith jamais seria um nazista.
Mas que dizer de Heidegger? Sua filosofia foi comprometida pela sua fé no
nazismo, mas ela também não se limita a essa ideologia. Infelizmente para
Heidegger, ela tampouco é redimida pelo humanismo, que o filósofo rejeita. Por
sua vez, o antifascista Faye trilha um caminho perigoso ao sugerir, para além
da crítica, e mesmo da crítica mais radical da filosofia e do engajamento
nazista de Heidegger, o banimento físico, material, de
suas obras: num mundo de fanáticos, o fascismo essencial irrompe mesmo
entre os antifascistas…”
[1] FARIAS,
Victor. Heidegger
e o nazismo. Rio de Janeiro: Editora Paz e
Terra, 1988, 1ª edição, 368p.
[3] SARTRE,
Jean-Paul. A propos de l’existentialisme: mise au point. In: CONTAT, Michel;
RYBALKA, Michel. Les Écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970,
p. 653-658.
[4] HEIDEGGER,
Martin. L’auto-affirmation
de l’université allemande. Discurso
proferido na cerimônia oficial de posse do cargo de Reitor da Universidade de
Fribourg-em- Brisgau a 27 de maio de 1933. Traduzido do alemão por Gérard Granel.
Paris: Trans-Europ-Repress, 1982, P. 15-16. Tradução do autor.
[5] HEIDEGGER
Martin. Réponses
et questions sur l’histoire et la politique.
Traduzido do alemão por Jean Launay. Paris: Mercure de France, 1988, p, 17.
Tradução do autor.
[6] HEIDEGGER
Martin. Réponses
et questions sur l’histoire et la politique.
Traduzido do alemão por Jean Launay. Paris: Mercure de France, 1988, p, 13-14.
Tradução do autor.
[7] STEIN,
Ernildo. A superação da metafísica e o fim das verdades eternas. Entrevista com
Ernildo Stein. O século de Heidegger. Revista IHU On-Line, n° 185, 9 jun. 2006, p. 6. URL:http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/1158344730.57pdf.pdf.
[8] A
revista Les
Temps Modernes, sob a direção de Jean-Paul Sartre,
publicou diversos artigos sobre o caso Heidegger em 1946 e 1947, assinados por
Towarnicki, Candillac, Loewith, De Waelhens e Eric Weil, sendo este último
reputado o mais importante deles.
[9] MARCUSE, Herbert. Heidegger’s Politics: An Interview.
In: PIPPIN, Robert (ed.), Marcuse: Critical
Theory and the Promise of Utopia, Bergin and Garvey, South Hadley, M. A., 1988, p.
99.
[10] MARCUSE, Herbert. La lutte
contre le libéralisme dans la conception totalitaire de l’État. In: MARCUSE,
Herbert. Culture et Société. Paris: Les Éditions de
Minuit, 1970, pp. 61-102.
[12] WOLIN, Richard.
Introduction to Herbert Marcuse and Martin Heidegger: An Exchange of Letters. New
German Critique, n° 53, Spring/Summer 1991, p. 21-32.
[13] ANDERSON, Mark M. The
‘Impossibility of Poetry': Celan and Heidegger in France. New German Critique, n° 53, p. 3-19.
[15] ARENDT, Hannah. Martin
Heidegger a quatre-vingt ans. In: ARENDT, Hannah. Vies
Politiques. Paris:
Gallimard, 1974, pp. 307-320.
[17] NESKE, Gunther; KETTERING,
Emil (ed.). Martin Heidegger and the Nationalsocialism. Nova York: Paragon House,
1990, p. XXIX.
[18] HEIDEGGER,
Martin. Entrevista com Martin Heidegger a Der Spiegel, gravada em 1966 e publicada apenas em 1976, após
a morte do filósofo.Folhetim, Folha
de S. Paulo, 15 jan. 1988.
[19] HABERMAS, Jünger. Martin
Heidegger – L’oeuvre et l’engagement. Paris: Les Éditions du Cerf, 1988.
[20] COHEN,
Patricia. Heidegger sob novo ataque. O Estado de S. Paulo,15 nov 2009. URL: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=27552.
[21] COHEN,
Patricia. Heidegger sob novo ataque. O Estado de S. Paulo,15 nov 2009. URL: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=27552.
[22] COHEN,
Patricia. Heidegger sob novo ataque. O Estado de S. Paulo,15 nov 2009. URL: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=27552.
[23] CABRAL.
Alexandre Marques Heidegger
e a destruição da ética. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2009, 208p.
[24] VATTIMO,
Gianni. O nazismo e o “erro” filosófico de Heidegger. Instituro Humanitas Unisinos, 1° jul. 2006. URL: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=2934
[25] STEIN,
Ernildo. A superação da metafísica e o fim das verdades eternas. Entrevista com
Ernildo Stein. O século de Heidegger. Revista IHU On-Line, n° 185, 9 jun. 2006, p. 6. URL:http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/1158344730.57pdf.pdf.