Enterro de Farkhunda |
“Mulheres afegãs marcharam em protesto, e
romperam a tradição, ao carregar o caixão no funeral em Cabul, da mulher
espancada e apedrejada até a morte na semana passada por uma multidão, composta
em sua maioria por homens. Depois do linchamento, a multidão ateou fogo ao
corpo de Farkhunda diante dos olhos da polícia. Ela foi falsamente acusada de
queimar o Corão. As mulheres afegãs protestam em nome das Farkhundas.
Acabei
de ler o depoimento de um homem, Karim Haidari, que trabalha na BBC . Ele fala
de sua vergonha de ser afegão, da vergonha da natureza feia e misógina de boa
parte da sociedade do seu país. Karim Haidari escreve sobre a dificuldade para
dormir. Ele permanece acordado devido ao barulho e às imagens de uma multidão
enfurecida, linchando uma mulher até a morte.
Karim diz que talvez se sinta culpado por
ser homem. Afinal, os homens são os autores de todas as guerras. Talvez culpado
por ser afegão. Afinal, os homens no país dele são capazes de inflingir tal
horror às mulheres uma vez depois de outra, em um canto do país a outro.
Farkhunda, de 27 anos, estudava teologia e
ensinava o Corão para crianças. Ironicamente, em nome da ortodoxia religiosa,
ela confrontava os mulás ignorantes e misóginos que vendem amuletos para
mulheres sem filhos ou que querem resolver qualquer problema. Durante uma das
discussões perto de uma mesquita a uma curta caminhada do palácio presidencial,
Farkhunda foi acusada de queimar o Corão.
Karim Haidari escreve que talvez ela tenha
subestimado o que alguns homens são capazes de fazer, como matar uma mulher
diante dos olhos da polícia corrupta e incompetente. Durante o ato de barbárie,
espectadores tiravam fotos com seus celulares. Cerca de 20 pessoas foram presas
até agora em conexão ao assassinato de Farkhunda. Muitos são jovens e
urbanizados. Muitos com página no Facebook, onde assumiram responsabiliidade
pelo ataque.
Uma das mais persistentes e comoventes
razões para justificar a invasão do Afeganistão em 2001 pela coalizão liderada
pelos EUA era garantir o direito das mulheres. A derrubada do Talibã era uma
causa justa, a invasão era uma guerra justa. A situação continua injusta,
confirmada mais uma vez com uma morte como a de Farkhunda.
Karim Haidari, o homem que morre de
vergonha, escreve que no Afeganistão o fim do sofrimento das mulheres é ainda
um sonho distante.”
(Publicado
em 28/03/2015, na edição eletrônica da revista VEJA)
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