Em 1999, já lá se vão mais de quinze anos, o ex-ministro e ex-embaixador, Roberto Campos, publicou o texto abaixo (reproduzido pelo O Antagonista. Com a elegância de estilo e a clareza de sempre, o artigo parece ter sido escrito ontem. Também, pudera. Roberto Campos era ecista.
A Petrobrás, segundo ele, é uma empresa de propriedade dos empregados da Petrobrás. Roberto Campos não pode, contudo, testemunhar mais uma das mais aberrantes situações patrocinadas pela Petrossauro, como ele gostava de dizer: apesar de ter sofrido vultosíssimos prejuízos (em função do saqueio comprovado pela Lavajato), a empresa pagará, em 2015, a seus "trabalhadores", a chamada "participação nos lucros". Com a Petrossauro é assim, igual o reino de Salomão: dando lucro, ou lucro não, a turma ganha grana de montão. Que se dane o povo brasileiro.
"Quando for escrita a história econômica
do Brasil nos últimos 50 anos, várias coisas estranhas acontecerão. A política
de autonomia tecnológica em informática, dos anos 70 e 80, aparecerá como uma
solene estupidez, pois significou uma taxação da inteligência e uma subvenção à
burrice dos nacionalistas e à safadeza de empresários cartoriais. Campanhas
econômico-ideológicas como a do "o petróleo é nosso" deixarão de ser
descritas como uma marcha de patriotas esclarecidos, para ser vistas como uma procissão
de fetichistas anti-higiênicos, capazes de transformar um líquido fedorento num
ungüento sagrado. Foi uma "passeata da anti-razão" que criou sérias
deformações culturais, inclusive a propensão funesta às "reservas de
mercado".
A criação do monopólio estatal de 1953 foi um
pecado contra a lógica econômica. Precisamente nesse momento, o ministro da
Fazenda, Oswaldo Aranha, mendigava um empréstimo de US$ 300 milhões ao
Eximbank, para cobertura de importações correntes (inclusive de petróleo). A
ironia da situação era flagrante: de um lado, o país mendigava capitais de
empréstimos que agravariam sua insolvência, de outro, pela proclamação do
monopólio estatal, rejeitava capitais voluntários de risco. Ao invés de sócios
complacentes (cuja fortuna dependeria do êxito do país), preferíamos credores
implacáveis (que exigiriam pagamento, independentemente das crises internas).
Esse absurdo ilogismo levou Eugene Black, presidente do Banco Mundial, a
interromper financiamentos ao Brasil durante cerca de dez anos (com exceção do
projeto hidrelétrico de Furnas, financiado em 1958). Houve outros subprodutos
desfavoráveis.
Criou-se uma cultura de "reserva de
mercado", hostil ao capitalismo competitivo. Surgiu uma poderosa burguesia
estatal que, protegida da crítica e imune à concorrência, acumulou privilégios
abusivos em termos de salários e aposentadorias. Criou-se uma falsa
identificação entre interesse da empresa e interesse nacional, de sorte que a
crítica de gestão e a busca de alternativas passaram a ser vistas como traição
ou impatriotismo.
Vistos em retrospecto, os monopólios estatais
de petróleo, que se expandiram no Terceiro Mundo nas décadas de 60 e 70, longe
de representarem um ativo estratégico, tornaram-se um cacoete de países
subdesenvolvidos na América Latina, África e Médio Oriente. Nenhum país rico ou
estrategicamente importante, nem do Grupo dos 7 nem da OCDE, mantêm hoje
monopólios estatais, o que significa que os monopólios não são necessários nem
para a riqueza nem para a segurança estratégica.
Essas considerações me vêm à mente ao perlustrar
os últimos relatórios da Petrossauro. Ao contrário de suas congêneres
terceiro-mundistas, que são vacas-leiteiras dos respectivos Tesouros, a
Petrossauro sempre foi mesquinha no tratamento do acionista majoritário.
Tradicionalmente, a remuneração média anual do Tesouro, sob a forma de
dividendos líquidos, não chegou a 1% sobre o capital aplicado. Após a extinção de jure do monopólio, em 1995 (ele
continua de facto), e em virtude da
crítica de gestão e da pressão do Tesouro falido, os dividendos melhoraram um
pouco, ma non troppo. Muito mais generoso é o tratamento dado pela
Petrossauro à Fundação Petros, que representa o patrimônio privado dos
funcionários.
A empresa é, dessarte, muito mais um instituto
de previdência, que trabalha para os funcionários, do que uma indústria
lucrativa, que trabalha para os acionistas. Aliás, é duvidoso que a Petrossauro
seja uma empresa lucrativa. Lucro é o quantum
gerado em condições competitivas. No caso de monopólios, é melhor falar em
resultados.Quanto à Petrossauro, se fosse obrigada a pagar os variados tributos
que pagam as multinacionais aos países hospedeiros -bônus de assinatura,
royalties polpudos, participação na produção, Imposto de Renda e importação - teria
que registrar prejuízos constantes, pois é alto seu custo de produção e baixa
sua eficiência, quer medida em barris/dia por empregado, quer em venda anual
por empregado.
Examinados os balanços de 1995 a 1998, verifica-se
que o somatório dos dividendos ao Tesouro (pagos ou propostos) alcançam R$
1,606 bilhão enquanto que as doações à Petros atingiram 2,054 bilhões. Considerando que o Tesouro representa 160 milhões
de habitantes e vários milhões de contribuintes, enquanto que a burguesia de
Estado da Petrossauro é inferior a 40 mil pessoas, verifica-se que é o
contribuinte que está a serviço da estatal e não vice- versa.
Nota-se hoje no Governo uma perigosa tendência de
postergação das privatizações seja na área de petróleo, seja na área
financeira, seja na eletricidade. É um erro grave, que põe em dúvida nosso
sentido de urgência na solução da crise e nossa percepção dos remédios
necessários. A privatização não é uma opção acidental nem coisa postergável,
como pensam políticos irrealistas e burocratas corporativistas. É uma imposição
do realismo financeiro. Há duas tarefas de saneamento imprescindíveis.
A primeira consiste em deter-se o
"fluxo" do endividamento (o objetivo mínimo seria estabilizar-se a
relação endividamento/PIB). Essa é a tarefa a ser cumprida pelo ajuste
"fiscal".
A segunda consiste em reduzir-se o estoque da
dívida. Esse o objetivo da reforma "patrimonial", ou seja, a
"privatização".
Não se deve subestimar a contribuição
potencial da reforma patrimonial para a solução de nosso impasse financeiro. Tomemos um exemplo
simplificado. Apesar da
crise das Bolsas, a venda do complexo Petrossauro-BR Distribuidora poderia
gerar uma receita estimada em R$ 20 bilhões. Considerando-se que a rolagem da dívida está
custando ao Tesouro 40% ao ano, uma redução do estoque em R$ 20 bilhões,
representaria uma economia a curto prazo de R$ 8 bilhões. Isso equivale a
aproximadamente 20 anos dos dividendos pagos ao Tesouro pela Petrossauro na
média do período 1995-1998 (a média anual foi de R$ 401,7 milhões).
Se aplicarmos o mesmo raciocínio à privatização de
bancos estatais e empresas de eletricidade, verificaremos que a solvência
brasileira dificilmente será restaurada pela simples reforma fiscal. Terá que
ser complementada pela reforma patrimonial.
É perigosa complacência a atitude
governamental de que a reforma fiscal é urgente e a reforma patrimonial
postergável. Dessas complacências e meias medidas é que se compõe nossa
lamentável, repetitiva e humilhante crise existencial".