terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O pai e a mãe do porco-espinho (Humberto Werneck)


"Não garanto nada, mas acho que estou curado da mania que tive, quando menino, de sair usando palavras e expressões que acabara de ouvir ou ler pela primeira vez. Com o risco, já contei, de provocar pasmo ou gargalhadas entre os circunstantes - como no dia em que, tendo ouvido meu pai dizer “o diabo a quatro”, tratei de passar adiante, crente que estava abafando, o que a meus ouvidos chucros soara como “diabo aquático”. O demo, já pensou?, a dar braçadas no seu caldeirão fervente...

O desastre vocabular me fez cauteloso, levando-me a frequentar mais amiúde os dicionários que tínhamos em casa, o Caldas Aulete e o Laudelino Freire. Em nenhuma parte, porém, encontrei explicação para a ameaça inusitada que ouvi de meu pai, no dia em que chegou ao seu conhecimento a estripulia que um de nós havia perpetrado no colégio: “Eu te mando pro Acre!”, bramiu o velho, na verdade mal chegado aos 40 anos.

Só fui decifrar o enigma quando, já marmanjo, li sobre as centenas de moradores do Rio de Janeiro que, por seu envolvimento nas revoltas da Vacina e da Chibata, em 1904 e 1910, foram condenados ao degredo no mais remoto rincão do país, aquele que, em alusão aos campos de trabalhos forçados da União Soviética, alguém chamou de “a Sibéria do Brasil”.

Imagino que o papai tenha ouvido a expressão dos lábios do pai dele - do qual, além do prenome, Hugo, herdou asperezas de macho que a vida haveria de aplainar. Não era brincadeira o dr. Hugo Furquim Werneck, falecido 10 anos antes de minha chegada ao mundo, avô cujos verdadeiros traços fui conhecer não nos relatos hagiográficos de meu pai e tios, mas no retrato que dele pinta, em copiosas páginas de Beira-Mar, o ex-aluno Pedro Nava. Pouco menos que um verdugo, aquele Hugo: diretor da Escola de Medicina de Belo Horizonte, quis expulsar o Nava a poucos meses de formar-se.

Órfão aos 16 anos, meu pai foi uma das raspas do enorme tacho reprodutivo - 13 filhos - do Dr. Hugo e Dona Dora. Décimo primeiro a chegar, até por isso terá penado menos que os mais velhos sob o rigor de um homem em quem a correção de caráter convivia com espinhenta severidade no trato com o semelhante.

Ao contrário dele, falecido cedo, aos 56, meu pai teve tempo e condições de, como os antigos automóveis, amaciar com o uso, tendo para isso contribuído, e muito, a delicadeza de minha mãe, com quem viveu por mais de meio século. Tolerante com os filhos mais novos, com os mais velhos foi bem duro - ao ponto de os felizardos que o pegaram já amaciado se dizerem frutos de um segundo casamento dos mesmos Hugo e Wanda.

Reconheço no meu pai uns traços fortes que terá herdado do meu avô. Não chegou a nos mandar para o Acre, mas recorreu com frequência a um arsenal de punições digno do professor de Pedro Nava. Vistos de hoje, quando já não doem nem revoltam, os castigos que o papai nos aplicava tinham um quê de homeopatia, pois em geral guardavam relação com o malfeito. Que nem o pai dele, que, tendo apanhado um filho com cigarro aceso, lhe fez fumar o maço inteiro, que por isso ficou sendo o último.

Um dia, ao se dar conta de que eu, discretamente, ia dizimando uma garrafa de Old Parr, meu pai me fez beber o resto. Com é que o que o nosso ébrio gosta de beber uísque?, ironizou. Com leite, respondi no mesmo tom - e paguei o intragável preço de sorver, de cara boa, uma beberagem morna cuja lembrança ainda hoje me nauseia. 

Em outra ocasião, na minha ausência, mandou jogar fora meia garrafa de cerveja preta - munição de minha mãe para incrementar a amamentação - e abastecê-la com outro tanto de café gelado e salgado, mistura da qual um gole ávido e gordo chegou a me descer pela garganta antes de voltar estrepitosamente à luz.

Uma das meninas, durante a refeição, brincava com a argola do guardanapo, desafiando a proibição paterna? Diante da mãe e dos irmãos, que não podiam rir, teve que encaixar na boca a argola de ebonite e assim permanecer por uns minutos, chorando um choro cilíndrico de vergonha e raiva. 

Um dia, chegando em casa, dei com um dos irmãos pendurado no flamboyant do jardim, qual presunto em viga de armazém, como penitência por ter dado uma de Tarzan no galho em que o pai enganchara uma gaiola. Outro, por ter fuçado numa pilha de materiais de construção, foi sentenciado a passar longos minutos com os braços abertos e um tijolo em cada mão.

Mais uma. Na ausência dos pais, eu e um dos irmãos encenamos uma missa, para a qual fizemos hóstias de miolo de pão, uma recheada de sal, outra de pimenta, que demos em comunhão a duas das meninas. Não me lembro se sobrou para mim, mas não esqueço do meu coroinha a esguichar lágrimas desencadeadas por uma colherada de pimenta braba.


O que ficou da pedagogia rude de um pai que a humildade, o tempo e os filhos se encarregaram de adoçar, fazendo dele uma pessoa bem melhor que as encomendas? Virou conversa boa de família, historinhas em que ele próprio achava graça. Provar de seu “veneno” - não era assim também que funcionava seu esquema educativo? De minha parte, nada ficou de mágoa nem ressentimento. Nenhuma sombra em meu amor por ele. Foi às vezes duro? Muito mais sofreu a mãe do porco-espinho - dito que aprendi com um gaiato no colégio e, claro, tratei de usar na primeira oportunidade, antes mesmo de saber o que foi que se passou com a desditosa genitora do ouriçado roedor em questão.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Delações sem fim, criminosos sem pena (Estadão)



Conforme noticiou o Estado, o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, preso desde novembro passado, estuda pedir acordo de colaboração premiada. Ciente de que são bastante reduzidas suas chances de derrubar por meio de habeas corpus os três decretos de prisão expedidos contra ele, almeja melhorar sua situação dando informações relevantes para a elucidação de outros crimes e a responsabilização de outros criminosos. 

Cabral não é o primeiro caso nem parece que será o último. Volta e meia divulga-se, por exemplo, a disposição do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha de colaborar com a Justiça e assim ter reduzidas suas penas. Desde a instauração da Operação Lava Jato, o País assiste a um bom número de delações, feitas e outras tantas ainda em andamento. Agora, a delação mais esperada é a de Marcelo Odebrecht, ex-presidente da empreiteira que leva o nome de sua família. Só nesse ramo da Lava Jato consta que haja 77 delações.

Não há dúvida de que as delações premiadas podem ser um ótimo instrumento de investigação, rompendo o silêncio e a cumplicidade das organizações criminosas. É um acordo – o Estado oferece um significativo benefício na pena do criminoso em troca de informações que permitam elucidar outros e maiores crimes. Essa foi a experiência internacional que motivou o Brasil a introduzir, em seu ordenamento jurídico, a possibilidade da colaboração premiada. 

Atualmente, várias são as leis que preveem a delação, como a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), a Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998) e a Lei de Políticas Públicas sobre Drogas (Lei 11.343/2006). No momento, a Lei 12.850/2013, sobre as organizações criminosas, é a que contempla de forma mais completa a colaboração em troca da redução de penas. Seu art. 4.º diz: “O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até dois terços a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada”.

Comparada com a experiência internacional, trata-se de uma legislação bastante generosa com os delatores. Não raro se permite, em outros países, apenas um único colaborador da Justiça para cada crime. Aqui, parece não haver qualquer restrição de número de delatores. Todos dizem um pouco mais do que os investigadores já sabiam e ao final todo mundo tem sua pena reduzida. Ao contrário do objetivo inicial, a delação passa a ser vista como um meio para a impunidade, ainda que relativa. Todo mundo fala algo e todo mundo vai para casa mais cedo. Ora, isso é evidente abuso do instrumento da delação.

Além dessa banalização, aqui parece se aceitar a delação de todas as pessoas envolvidas no crime, seja qual for a sua posição hierárquica na organização criminosa. O habitual em outros países é que a colaboração premiada seja um meio para chegar aos líderes do crime. No Brasil, qualquer um, mesmo que esteja na mais alta posição na cadeia do crime, pode delatar. É de perguntar: quem o chefe da quadrilha irá delatar? Vale a pena diminuir a pena do chefe da quadrilha em troca de informações menores? Corre-se o risco de que o desejo de que nenhum crime fique sem solução – fazendo mil e um acordos de delação premiada – leve a que nenhum criminoso cumpra por completo sua pena. Tal sistema não é muito racional.

Se os elementos probatórios obtidos contra o ex-governador Sérgio Cabral são tão sólidos que ele só vê meio de diminuir a pena com a delação premiada, quais informações tão relevantes ele terá a dar para que se firme um termo de colaboração e sua pena seja reduzida?

Até aqui a delação teve um papel essencial para o bom andamento da Lava Jato. Por que, então, banalizar seu uso?