terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Votos de boas festas e feliz ano novo

Aos meus amigos e eventuais leitores, um feliz 2011. Continuemos a acreditar na Razão. Afinal, ela é tão somente a escrava das Paixões.

sábado, 11 de dezembro de 2010

"Lula e a psiquiatria" - Professor Roberto Romano

O artigo abaixo - do professor Roberto Romano - é um refrigério nestes tempos bicudos em que vivemos. Serve para nos ajudar na compreensão do sentido das perseguições e outras violências sofridas por aqueles que incomodam e chegam, até, no caso limite, ao assassinato de professores. Stalin morreu, o stalinismo, não.

"No imaginário sobre o Estado, a prudência aparece com a alegoria das três faces: a do ancião, a do homem maduro e a de um jovem. Presente, passado e porvir são unidos para o domínio do instante oportuno, o kayrós grego. Os feitos dos legisladores ou governantes devem ser definidos com meticulosa sapiência, mas executados na hora exata. Um minuto antes, ou depois, a medida salutar transforma-se em crime contra a sociedade. A obra de Maquiavel se alicerça na prudência: o que foi dito, se negado pela mesma pessoa, joga ilegitimidade sobre o seu poder.

O site WikiLeaks atualiza a lógica que norteia a máquina do Estado. A guerra entre imprensa e poder existe desde o século 17. As duas frentes – a oficial e a crítica – usam armas perigosas. É o caso da propaganda que gera o culto dos governantes. Quanto maior a censura estatal, mais eficientes as técnicas de manipulação popular. O poder moderno fundamenta-se no binômio de segredo e propaganda. A censura garante o primeiro e os escritores venais aprimoram a segunda (*).

Norberto Bobbio mostra o quanto é antigo o disfarce político. “Que o poder tenda a usar máscara para não ser reconhecido e agir longe de olhares indiscretos, é uma velha história. Tal velha história tem mesmo um nome célebre que, somente com sua pronúncia, dá calafrios na espinha: “arcana imperii”. Em análise magistral, escreveu Elias Canetti: “O segredo está no mais íntimo núcleo do poder” (Massa e Poder). Os fundadores da democracia pretenderam dar vida à forma de governo sem máscara, na qual os segredos do domínio fossem abolidos definitivamente e destruído aquele “núcleo interior”.” Da tese extrai Bobbio o corolário ignorado no Brasil pelos que controlam o Estado: “O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia mais ou menos gravemente nos seus órgãos vitais, extermina-a.” Entre os “órgãos vitais” da alma democrática encontra-se a liberdade de pensamento e de expressão (**).

Em dias recentes, o sr. Luiz Inácio da Silva retomou uma faceta de sua figura pública, o vezo autoritário de esconder práticas políticas usando, para tal fim, ataques à imprensa. Recordo um fato da sua campanha vitoriosa de 2002. A Folha de S.Paulo realizou debate com ele, quando perguntei: “Governos eleitos na América do Sul enfrentam pesadas críticas da imprensa (…), isso ocasiona choques que chegam a ameaçar a estabilidade institucional, como no caso da Venezuela. Qual será a sua política para a mídia internacional e brasileira, como pretende Vossa Senhoria se relacionar com os formadores de opinião?”

O candidato afirmou ser “preciso acertar na política, ou seja, esse negócio de o presidente da República ficar dizendo que não conversa com A, com B, não cabe ao presidente da República (…), ele é presidente de todos.” Disse mais: “Ou você estabelece uma negociação com a sociedade, com os empresários, mesmo com aqueles que são mais duros contra você, com os donos dos canais de televisão, com os donos dos jornais, para que se estabeleça a possibilidade de governar este país (…). Eu sou tão negociador que em 1975, quando Petrônio Portella disse “vai começar o processo de negociação”, me chamou, tinha muita gente que dizia: Lula, não vá. Eu falei: eu vou. Por que você vai? Porque eu tenho o que dizer. Eu fui lá. Então a minha vida inteira só fiz isso, (…) fazer acordos, fazer negociações (…)”. Mesmo com certo general houve acordo: “Fui lá, conversei três horas com ele e cumpri o que ele disse para mim. Fiquei no sindicato e o Exército não se meteu nas nossas greves. Depois, então, veio o Miltinho e botou o Exército para bater na gente.” E Lula defendeu o diálogo com jornalistas: “Até porque se o cara não quiser conversar comigo eu vou em cima dele para conversar.” A matéria, na íntegra, pode ser lida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u35797.shtml.

Ao ser perguntado, na semana passada, sobre o apoio que recebe da oligarquia Sarney, que exigiu (e obteve) a censura deste jornal, Lula foi “em cima” do repórter: “Pergunta preconceituosa como esta é grave para quem está há oito anos cobrindo Brasília. Demonstra que você não evoluiu nada. O presidente Sarney é presidente do Senado… Preconceito é uma doença. O Senado é uma instituição autônoma diante do Poder Executivo, da mesma forma, o Poder Judiciário. O Sarney colaborou muito para a institucionalidade. E ademais é o seguinte: o Sarney foi eleito pelo Amapá, eu não sei por que o preconceito. Você tem de se tratar, quem sabe fazer uma psicanálise para diminuir o preconceito.”

A conveniência política que rende segredo e censura em favor de quem o apoia se justifica, segundo o presidente, pela “institucionalidade”. Tragicômica e nada original razão de Estado. Hospícios para intelectuais independentes e jornalistas surgiram no século 19. Hölderlin foi internado por suas posições jacobinas, acusado de loucura. Depois dele, o tratamento psiquiátrico foi a solução contra a crítica na Alemanha, na Itália e na União Soviética. O silêncio sobre tais medidas durou o tempo em que a propaganda enganou as massas, gerando a “popularidade” dos governantes. Mas os “loucos” venceram. Caíram as paredes dos manicômios totalitários com o Muro. O pêndulo, hoje, retorna ao poder e à propaganda. Devemos agradecer ao WikiLeaks.

(*) Burke, Peter: A Fabricação do Rei (RJ, Zahar Ed.) e Thuau, E.: Raison d”État et Pensée Politique à l”Époque de Richelieu (Paris, Armand Colin Ed.).

(**) Il Potere in Maschera, in L”Utopia Capovolta.
(Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 08/12/2010)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

"Professor é morto na Faculdade"

(Matéria publicada em O Tempo, de 8/12/2010)

"Um crime trágico em um cenário improvável: um professor assassinado em uma escola particular localizada na região Centro-Sul de Belo Horizonte. No início da noite de ontem, o mestre em educação física Kássio Vinícius de Castro Gomes, 39, foi esfaqueado em um dos corredores do Instituto Metodista Izabela Hendrix, na rua da Bahia, no bairro de Lourdes, por um aluno.
O crime foi filmado pelas câmeras do circuito interno de segurança da instituição de ensino. Segundo o delegado Wagner Pinto, as imagens flagraram o estudante Amilton Loyola Caires, 23, golpeando o docente no tórax.
O jovem cursava diferentes períodos da graduação e teria ingressado no Izabela Hendrix após ter sido transferido de uma outra faculdade privada da capital. Uma das testemunhas contou que o suspeito teria sido expulso da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), justamente por um caso de agressão contra funcionários.
Por volta de 18h40 de ontem, antes do início das aulas da noite, o suspeito teria discutido com o professor e deixado a faculdade. Minutos depois, ele retornou e reiniciou a briga. Amilton fugiu em uma moto e deixou a faca usada no crime jogada no corredor.
Motivação. Segundo colegas, a discussão começou porque Amilton não teria aceitado o fato de ter sido reprovado na primeira etapa de um trabalho. "Tínhamos um trabalho marcado com o professor hoje (ontem). Pelo que ouvi dizer, o Kássio estava se dirigindo para o outro prédio da faculdade quando foi atacado no corredor", contou Luiz Henrique Rodrigues Souza, aluno do 2º período do curso de educação física.
Segundo testemunhas, três alunos cercaram o professor, mas apenas Amilton o esfaqueou. "Estou indignado. Ele era um professor experiente e uma pessoa muito boa", lamentou Luiz Henrique. De acordo com os colegas de Amilton, o suspeito é morador do bairro União, na região Leste da capital.
Representantes da instituição de ensino confirmaram que as imagens já foram colocadas à disposição da Polícia Civil. Segundo eles, a segurança conta com 52 vigilantes e 53 câmeras.
A instituição foi fechada ontem para a perícia da Polícia Civil, mas a escola divulgou nota informando que as aulas serão retomadas normalmente amanhã."

"A violência nas escolas é uma realidade" - Júnia Paixão

(Publicado no Jornal OTEMPO em 07/12/2010"


"A violência nas escolas contra professores, ao contrário do que dizem as autoridades da educação, não é feita por casos isolados, mas se configura como uma prática comum nos dias de hoje. Vivemos numa situação de constante tensão, pois nossos alunos estão cada dia mais sem limites e sem noção de certo e errado.

Não prego a hierarquia autoritária, mas um mínimo de respeito à autoridade do mestre, dentro da sala de aula, tem que ser cobrada. Se educamos adolescentes e jovens para a vida, como será quando eles tiverem que enfrentar o mundo fora dos muros da escola? Não podemos fazer vista grossa às atrocidades vividas todos os dias pelos educadores, com agressões verbais, porque, na maioria dos casos de violência física, a agressão sofrida é o cume de um processo que já começou há muito tempo.

Infelizmente, somos a parte mais frágil dessa corda. Os alunos têm direitos demais e nem sequer podemos cobrar-lhes seus deveres de estudantes com rigor, pois o insucesso de todos os alunos, mesmo os mais indolentes, recai sobre os ombros do professor. Nossa avaliação de desempenho, tão alardeada pelo governo como meritocracia, está atrelada ao número de alunos evadidos da escola e à quantidade de baixo desempenho dos estudantes, mesmo que tudo tenha sido tentado.

E o mais interessante é que não vemos nenhum movimento do governo em melhorar o atendimento a essa clientela. As escolas não contam com nenhum profissional que possa auxiliar no diagnóstico de problemas sociais, envolvimento com drogas e outros fatores de risco social. Projetos são lançados sem a mínima preocupação com a infraestrutura das escolas, como a escola de tempo integral. Alunos especiais são jogados em instituições sem a menor capacidade de acolhê-los adequadamente.

A violência sofrida por profissionais de educação é o resultado de uma política educacional equivocada e incoerente, que privilegia números, abarrota as escolas de papéis a serem preenchidos, cobra condescendência dos educadores para com os educandos, tira a autonomia das escolas e culpa os professores por todo o mal, inclusive das agressões das quais são vítimas.

O magistério é uma profissão em extinção. Os jovens que vão enfrentar o mercado de trabalho hoje têm um leque de opções muito amplo e muito promissor. Quem vai querer entrar numa escola com vários ideais e passar toda a sua vida profissional brigando pelo mínimo de dignidade?"

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ENEM - Comentários (1)

(Publicado no blog do Reinaldo Azevedo em 18/11/2010)

A PROVA CRIMINOSA DO ENEM - ANATOMIA DE UMA EMPULHAÇÃO A SERVIÇO DA IGNORÂNCIA

Prometi escrever sobre a prova do Enem. A indignação quase me paralisa. O MEC, deste incrível Fernando Haddad, comete um crime contra a educação brasileira. É isto: trata-se de um exame intelectualmente criminoso, que soma inépcia e pretensão, patrulha ideológica e proselitismo libertário, simplismo e pernosticismo. Como o Enem quer ser “o” vestibular nacional, ele concorre é para desorganizar o que eventualmente pode haver de sólido no ensino médio. Deveria ser o principal elemento a forçar a definição de um currículo mínimo nacional se desse ao menos pistas do que pretende. Mas é impossível saber. As 45 questões desse cretinismo chamado “Linguagens e Códigos e Suas Tecnologias”, cinco delas de língua estrangeira, testam uma única coisa: interpretação de texto. As outras 45 de “Ciências Humanas e Suas Tecnologias” são uma peneira para testar o “cidadão consciente” — desde que ele entenda minimamente o que lê. A prova do Enem seleciona os estudantes que, não sendo analfabetos funcionais, estão cheios de boas intenções e sentimentos de cidadania. Não busca os mais aptos, os mais sabidos ou os mais informados, mas os menos energúmenos de bom coração.

As 40 questões sobre o que um dia já foi “Língua Portuguesa e Literatura” —disciplina rebaixada a “Comunicação e Expressão” antes de ganhar aquele nome que Paulo Francis chamaria “pseudo” — nada cobram: leitura de livros, conhecimento de gramática, repertório… O governo brasileiro, que estatizou o vestibular, não pede que a escola seja mais eficiente ao ensinar literatura e gramática: ele simplesmente as tornou dispensáveis. O texto é longo, sim. Tomou uma boa parte da minha madrugada. Apelo à paciência de vocês. É preciso expor a miséria a que chegamos. Deixarei as tais ciências humanas para outro dia.

Comecemos pela questão 96 (prova azul). Um avô está com seu neto num museu de arqueologia no ano de 2059, na Amazônia. Mostra uma árvore ao garoto. Há o seguinte diálogo:
— Árvore era assim, desse jeito, Juquinha, tá vendo?
— Que barato, vovô! (Vamos ver o que o Enem quer saber, em maiúsculas):

AS DIFERENTES ESFERAS SOCIAIS DE USO DA LÍNGUA OBRIGAM O FALANTE A ADAPTÁ-LA ÀS VARIADAS SITUAÇÕES DE COMUNICAÇÃO. UMA DAS MARCAS LINGUÍSTICAS QUE CONFIGURAM A LINGUAGEM ORAL INFORMAL USADA ENTRE AVÔ E NETO NESTE TEXTO É

A - A OPÇÃO PELO EMPREGO DA FORMA VERBAL “ERA” EM LUGAR DE “FOI”.
B - A AUSÊNCIA DE ARTIGO ANTES DA PALAVRA “ÁRVORE”.
C - O EMPREGO DA REDUÇÃO “TÁ” EM LUGAR DA FORMA VERBAL “ESTÁ”.
D - O USO DA CONTRAÇÃO “DESSE” EM LUGAR DA EXPRESSÃO “DE ESSE”.
E - A UTILIZAÇÃO DO PRONOME “QUE” EM INÍCIO DE FRASE EXCLAMATIVA.

Eu já tenho vontade de pegar o chicote quando leio “as diferentes esferas sociais do uso da linguagem”. Por quê? Para perguntar uma besteira, uma banalidade, o examinador recorre a esse jargão pernóstico, de mau redator. Não existem “diferentes esferas sociais do uso da linguagem”. Alguém poderia definir o que é isso, onde fica, em que lugar se aloja? É complicômetro de cretinos. Existem linguagens distintas nas diferentes esferas sociais (se é para usar esse vocabulário pomposo). Há entre uma coisa e outra a distância que vai da abstração bucéfala ao fato concreto. A alternativa correta é a C, claro…

A questão 97 é aquela da falsa dificuldade e que apenas aparentemente cobra repertório . Notem que é uma variação daquela brincadeira infantil: “De que cor era o cabalo branco de Napoleão?”

A BIOSFERA, QUE REÚNE TODOS OS AMBIENTES ONDE SE DESENVOLVEM OS SERES VIVOS, SE DIVIDE EM UNIDADES MENORES CHAMADAS ECOSSISTEMAS, QUE PODEM SER UMA FLORESTA, UM DESERTO E ATÉ UM LAGO. UM ECOSSISTEMA TEM MÚLTIPLOS MECANISMOS QUE REGULAM O NÚMERO DE ORGANISMOS DENTRO DELE, CONTROLANDO SUA REPRODUÇÃO, CRESCIMENTO E MIGRAÇÕES.”
PREDOMINA NO TEXTO A FUNÇÃO DA LINGUAGEM

A - EMOTIVA, PORQUE O AUTOR EXPRESSA SEU SENTIMENTO EM RELAÇÃO À ECOLOGIA.
B - FÁTICA, PORQUE O TEXTO TESTA O FUNCIONAMENTO DO CANAL DE COMUNICAÇÃO.
C - POÉTICA, PORQUE O TEXTO CHAMA A ATENÇÃO PARA OS RECURSOS DE LINGUAGEM.
D - CONATIVA, PORQUE O TEXTO PROCURA ORIENTAR COMPORTAMENTOS DO LEITOR.
E - REFERENCIAL, PORQUE O TEXTO TRATA DE NOÇÕES E INFORMAÇÕES CONCEITUAIS.

Ainda que o estudante ignore as “funções da linguagem”, confunda “canal da comunicação” com tratamento de canal e pense em sacanagem (os de vocabulário mais amplo) ao ler a palavra “conativa”, não deve ter grande dificuldade para perceber que o texto trata de “noções e informações conceituais” — mesmo que não saiba o que significa “conceitual”. A questão é exemplar da falta de eixo da prova porque só aparentemente cobra um repertório.

A de nº 98 traz um texto de horóscopo — as características do signo de Câncer e como devem se comportar as pessoas desse signo na família, no trabalho, nos cuidados com a saúde… E qual a curiosidade do examinador? Isto:

O RECONHECIMENTO DOS DIFERENTES GÊNEROS TEXTUAIS, SEU COMUNICATIVO E SEU CONTEXTO DE USO, SUA FUNÇÃO SOCIAL ESPECÍFICA, SEU OBJETIVO COMUNICATIVO E SEU FORMATO MAIS COMUM RELACIONAM-SE AOS CONHECIMENTOS CONSTRUÍDOS SOCIOCULTURALMENTE. A ANÁLISE DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DESSE TEXTO DEMONSTRA QUE SUA FUNÇÃO É
A - VENDER UM PRODUTO ANUNCIADO.
B - INFORMAR SOBRE ASTRONOMIA.
C - ENSINAR OS CUIDADOS COM A SAÚDE.
D - EXPOR A OPINIÃO DE LEITORES EM UM JORNAL.
E - ACONSELHAR SOBRE AMOR, FAMÍLIA, SAÚDE, TRABALHO.

Eu não estou brincando, não. Essa questão é exemplar de uma prática comum na prova. O enunciado é pomposo, quase incompreensível, cheio de macumbarias conceituais para indagar, no fim das contas, se está claro que um texto de horóscopo dá conselhos…

Da 100 à 104, tudo segue nesse ritmo, cobrando do candidato o óbvio; indagando, no fundo, se ele sabe ler. Do nada, de inopino, aparece na prova, na questão 105, uma reprodução de “Mulher com Sombrinha”, de Monet. Esta:

Atenção para a questão:

EM BUSCA DE MAIOR NATURALISMO EM SUAS OBRAS E FUNDAMENTANDO-SE EM NOVO CONCEITO ESTÉTICO, MONET, DEGAS, RENOIR E OUTROS ARTISTAS PASSARAM A EXPLORAR NOVAS FORMAS DE COMPOSIÇÃO ARTÍSTICA, QUE RESULTARAM NO ESTILO DENOMINADO IMPRESSIONISMO. OBSERVADORES ATENTOS DA NATUREZA, ESSES ARTISTAS PASSARAM A

A - RETRATAR, EM SUAS OBRAS, AS CORES QUE IDEALIZAVAM DE ACORDO COM O REFLEXO DA LUZ SOLAR NOS OBJETOS;
B - USAR MAIS A COR PRETA, FAZENDO CONTORNOS NÍTIDOS, QUE MELHOR DEFINIAM AS IMAGENS E AS CORES DOS OBJETOS REPRESENTADOS;
C - RETRATAR PAISAGENS EM DIFERENTES HORAS DO DIA, RECRIANDO, EM SUAS TELAS, AS IMAGENS POR ELES IDEALIZADAS;
D - USAR PINCELADAS RÁPIDAS DE CORES PURAS E DISSOCIADAS DIRETAMENTE NA TELA, SEM MISTURÁ-LAS ANTES NA PALETA;
E - USAR AS SOMBRAS EM TONS DE CINZA E PRETO E COM EFEITOS ESFUMAÇADOS, TAL COMO ERAM REALIZADAS NO RENASCIMENTO.

Vamos ver. Afirmar que o impressionismo surgiu da busca de maior “naturalismo” nas obras é só evidência de conceitos mal digeridos em alguma consulta rápida na Internet. É uma besteira. Quanto às alternativas… Quem souber o que é um “contorno” e o significado das palavras “preto” e “cinza” já descarta as alternativas B e E. Sobram a A, a C e a D, a mais correta sem dúvida. Assim como desafio o formulador da questão a provar o “naturalismo” do impressionismo, gostaria que ele provasse que a A e a C podem ser descartadas. Pergunta: a reprodução da imagem era colorida? Se estava em preto e branco, o examinar tem de ir para a cafua.

A questão 106 existe para verificar se o aluno sabe que o balé não pertence ao folclore brasileiro. A 107 pergunta indaga se a palavra “corasamborim”, de uma música de Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, é um estrangeirismo, uma gíria, um neologismo, um regionalismo ou um termo técnico. A 108 mostra um livro digital e um mapa com áreas imensas do país que ainda não têm conexão sem fio. É preciso concluir que a democratização da leitura esbarra na insuficiência do acesso à Internet.

A 109 diz respeito a chat. Reproduzo alguns trechos:

O SIGNIFICADO DA PALAVRA CHAT VEM DO INGLÊS E QUER DIZER “CONVERSA”. ESSA CONVERSA ACONTECE EM TEMPO REAL (…) PARA ENTRAR, É NECESSÁRIO ESCOLHER UM NICK, UMA ESPÉCIE DE APELIDO QUE IDENTIFICARÁ O PARTICIPANTE DURANTE A CONVERSA. (…) MAS NÃO EXISTE NENHUM CONTROLE PARA VERIFICAR SE A IDADE INFORMADA É REALMENTE A IDADE DE QUEM ESTÁ ACESSANDO (…)

Muito bem. O examinador pretende saber o que o aluno acabou de ler. Entre as hipóteses , há esta, que quase repete o texto motivador da pergunta:

POSSIBILITA QUE OCORRA DIÁLOGO SEM A EXPOSIÇÃO DA IDENTIDADE REAL DOS INDIVÍDUOS, QUE PODEM RECORRER A APELIDOS FICTÍCIOS SEM COMPROMETER O FLUXO DA COMUNICAÇÃO EM TEMPO REAL.

A questão 110 é ilustrada com a imagem de uma bailarina fazendo alongamento e indaga se seu exercício é de velocidade, resistência, flexibilidade, agilidade ou equilíbrio. Eu juro! Estão anotando aí: Monet, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Chat, flexibilidade… A questão 111 pergunta obviedades sobre um texto que trata do Twitter. A 112 reproduz o trecho de uma reportagem e tem a intenção de saber se está claro que se trata de um texto informativo…

Há literatura na prova? A 113 vem com um fragmento de “Laços de Família”, de Clarice Lispector. Vejam o que fizeram os gênios de Fernando Haddad:

OS FILHOS DE ANA ERAM BONS, UMA COISA VERDADEIRA E SUMARENTA. CRESCIAM, TOMAVAM BANHO, EXIGIAM PARA SI, MALCRIADOS, INSTANTES CADA VEZ MAIS COMPLETOS. A COZINHA ERA ENFIM ESPAÇOSA, O FOGÃO ENGUIÇADO DAVA ESTOUROS. O CALOR ERA FORTE NO APARTAMENTO QUE ESTAVAM AOS POUCOS PAGANDO. MAS O VENTO BATENDO NAS CORTINAS QUE ELA MESMA CORTARA LEMBRAVA-LHE QUE SE QUISESSE PODIA PARAR E ENXUGAR A TESTA, OLHANDO O CALMO HORIZONTE. COMO UM LAVRADOR. ELA PLANTARA AS SEMENTES QUE TINHA NA MÃO, NÃO OUTRAS, MAS ESSAS APENAS.A AUTORA EMPREGA POR DUAS VEZES O CONECTIVO MAS NO FRAGMENTO APRESENTADO. OBSERVANDO ASPECTOS DA ORGANIZAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO E FUNCIONALIDADE DOS ELEMENTOS QUE ARTICULAM O TEXTO, O CONECTIVO MAS

A - EXPRESSA O MESMO CONTEÚDO NAS DUAS SITUAÇÕES EM QUE APARECE NO TEXTO;
B - QUEBRA A FLUIDEZ E PREJUDICA A COMPREENSÃO SE USADO NO INÍCIO DA FRASE;
C - OCUPA POSIÇÃO FIXA, SENDO INADEQUADO SEU USO NO ABERTURA DA FRASE;
D - CONTÉM UMA IDEIA DE SEQUÊNCIA TEMPORAL QUE DIRECIONA A CONCLUSÃO DO LEITOR;
E - ASSUME FUNÇÕES DISCURSIVAS DISTINTAS NOS DOIS CONTEXTOS DE USO.

É preciso marcar a “E”, embora tudo aí esteja errado. Quem foi que elaborou essa miséria? Quero que me provem que o “conteúdo” do primeiro “mas” é diferente do “conteúdo” do segundo “mas” — e favor não confundir o “conteúdo do mas” com o contexto em que é empregado. Não só isso: exijo que definam “função discursiva distinta nos contextos de uso”. Que borra é essa?

A questão 114 pede que se interprete um texto sobre inquisição; a 115, não menos óbvia, quer que o aluno responda se entendeu que uma língua, mesmo extinta, deixa sinais em outras línguas. A 116 reproduz uma pequena biografia de Machado de Assis: teria o estudante percebido tratar-se da “apresentação da vida de uma personalidade organizada sobretudo pela ordem tipológica da narração, com um estilo marcado pela linguagem objetiva”. Escrever “Ordem tipológica da narração” numa prova vestibular deveria estar entre os crimes previstos no Código Penal.

A 117 também pretende ser de literatura: um soneto do grande Álvares de Azevedo, poeta da segunda geração do Romantismo.

JÁ DA MORTE O PALOR ME COBRE O ROSTO,
NOS LÁBIOS MEUS O ALENTO DESFALECE,
SURDA AGONIA O CORAÇÃO FENECE,
E DEVORA MEU SER MORTAL DESGOSTO!

DO LEITO EMBALDE NO MACIO ENCOSTO
TENTO O SONO RETER!… JÁ ESMORECE
O CORPO EXAUSTO QUE O REPOUSO ESQUECE…
EIS O ESTADO EM QUE A MÁGOA ME TEM POSTO!

O ADEUS, O TEU ADEUS, MINHA SAUDADE,
FAZEM QUE INSANO DO VIVER ME PRIVE
E TENHA OS OLHOS MEUS NA ESCURIDADE.

DÁ-ME A ESPERANÇA COM QUE O SER MANTIVE!
VOLVE AO AMANTE OS OLHOS POR PIEDADE,
OLHOS POR QUEM VIVEU QUEM JÁ NÃO VIVE!

Trata-se de mais uma questão de interpretação, a única da prova inteira a trazer certa dificuldade. O problema aqui, para não variar, está na questão propriamente. Diz o examinador:“O NÚCLEO TEMÁTICO DO SONETO CITADO É TÍPICO DA SEGUNDA GERAÇÃO ROMÂNTICA, PORÉM CONFIGURA UM LIRISMO QUE O PROJETA PARA ALÉM DESSE MOMENTO ESPECÍFICO. O FUNDAMENTO DESSE LIRISMO É”

Deve-se responder “A MELANCOLIA QUE FRUSTRA A POSSIBILIDADE DA REAÇÃO DIANTE DA PERDA”. Certo! Mas por que isso estaria “além” das características da segunda geração romântica? Não está. Trata-se apenas de uma bobagem!

A 118 reproduz um fragmento de Capitães de Areia, de Jorge Amado, e outro de um conto de Dalton Trevisan. Ambos retratam pessoas vivendo em dificuldades. Segundo o examinador, os dois textos, sob diferentes perspectivas, são exemplos de uma abordagem recorrente na literatura do século 20: “O ESPAÇO ONDE VIVEM AS PERSONAGENS É UMA DAS MARCAS DE SUA EXCLUSÃO”. Qualquer um que tente associar Trevisan ao Jorge Amado da fase realista-socialista, como é o caso, é só um iletrado. Aquele troço que vai entre aspas não significa absolutamente nada!
A questão 119 volta com uma obviedade sobre a Internet. A 120, é sério!, mostra três fotos com jogadores de vôlei. O primeiro se prepara para sacar, o segundo defende uma bola, e os dois outros da terceira foto fazem um bloqueio. A prova pergunta que diabo eles estão fazendo. As alternativas são estas:

A - SACAR E COLOCAR A BOLA EM JOGO, DEFENDER A BOLA E REALIZAR A CORTADA COMO FORMA DE ATAQUE.
B - ARREMESSAR A BOLA, TOCAR PARA PASSAR A BOLA AO LEVANTADOR E BLOQUEAR COMO FORMA DE ATAQUE.
C - TOCAR E COLOCAR A BOLA EM JOGO, CORTAR PARA DEFENDER E LEVANTAR A BOLA PARA ATACAR.
D - PASSAR A BOLA E INICIAR A PARTIDA, LANÇAR A BOLA AO LEVANTADOR E REALIZAR A MANCHETE PARA DEFENDER.
E - CORTAR COMO FORMA DE ATAQUE, PASSAR A BOLA PARA DEFENDER E BLOQUEAR COMO FORMA DE ATAQUE.

Eu não sabia que Educação Física pertencia à categoria “Linguagens e Códigos e Suas Tecnologias… O que faz uma questão sobre vôlei depois de uma sobre literatura e antes de outra (121) sobre o acordo ortográfico? Perguntem a Fernando Haddad. A seguinte, a 122, traz um texto sobre os males de que padece o fumante passivo e uma imagem de um não-fumante sendo sufocado pela fumaça do cigarro do vizinho. O Enem pergunta o que os “textos” querem dizem.

Bem, a resposta é esta: “OS NÃO FUMANTES PRECISAM SER RESPEITADOS E POUPADOS, POIS ESTES TAMBÉM ESTÃO SUJEITOS ÀS DOENÇAS CAUSADAS PELO TABAGISMO”. Não é piada! Ou melhor: é, mas não minha!

Deixem-me ver: horóscopo, Carlinhos Brown, Clarice Lispector, vôlei, Álvares de Azevedo, Monet, tabagismo… Então é chegada a hora de cair de boca no surrealismo, não é? Por que não um pouco de Salvador Dali? É o que encontramos na questão 123, que abre com uma frase deliciosamente provocativa do artista:

“TODAS AS MANHÃS, QUANDO ACORDO, EXPERIMENTO UM PRAZER SUPREMO: O DE SER SALVADOR DALÍ.”

Aí vem o examinador, na sua sapiência:

ASSIM ESCREVEU O PINTOR DOS “RELÓGIOS MOLES” E DAS “GIRAFAS EM CHAMAS” EM 1931. ESSE ARTISTA EXCÊNTRICO DEU APOIO AO GENERAL FRANCO DURANTE A GUERRA CIVIL ESPANHOLA E, POR ESSE MOTIVO, FOI AFASTADO DO MOVIMENTO SURREALISTA POR SEU LÍDER, ANDRÉ BRETON. DESSA FORMA, DALÍ CRIOU SEU PRÓPRIO ESTILO, BASEADO NA INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS E NOS ESTUDOS DE SIGMUND FREUD, DENOMINADO “MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO PARANOICO”. ESSE MÉTODO ERA CONSTITUÍDO POR TEXTOS VISUAIS QUE DEMONSTRAM IMAGENS…
O certo é “DO ONÍRICO, QUE MISTURAVA SONHO COM REALIDADE E INTERAGIA REFLETINDO A UNIDADE ENTRE O CONSCIENTE E O INCONSCIENTE COMO UM UNIVERSO ÚNICO E PESSOAL”. Sei…

Problemas: Voltem à questão. É MENTIRA QUE DALÍ TENHA DADO APOIO A FRANCO DURANTE A GUERRA CIVIL ESPANHOLA. Ele se mudou para os EUA. Voltou à Espanha em meados da década de 50. Aproximou-se do ditador depois — e é bem possível que essa tenha sido outra manifestação de suas excentricidades. O “movimento surrealista” não era um clube, do qual pudesse ser afastado. Prestem atenção ao “dessa forma” em negrito do texto. Parece que o pintor só “criou o seu próprio estilo” porque André Breton, que era comuna, o hostilizara. Ah, sim: a alternativa dada como correta é uma salada conceitual. Quer dizer… NADA!

As questões 124, 125, 126 e 127 voltam à interpretação de texto mais rasteira. A 128 retoma a literatura, com Machado de Assis. E, Deus meu!, estamos realmente no pior dos mundos. O estudante é convidado a ler um trecho do romance “Quincas Borba”, em que Rubião, que recebera a herança de Quincas Borba, é obrigado a conviver com os hábitos que lhe impõe Palha, o pilantra que acaba roubando todo o seu dinheiro. Pois bem. Para quem elaborou a prova, a “PECULIARIDADE DO TEXTO QUE GARANTE A UNIVERSALIZAÇÃO DE SUA ABORDAGEM (!) RESIDE” “NO CONFLITO ENTRE O PASSADO POBRE (DE RUBIÃO) E O PRESENTE RICO, QUE SIMBOLIZA O TRIUNFO DA APARÊNCIA SOBRE A ESSÊNCIA”.

Talvez seja a coisa mais estúpida de toda a prova, até porque envolve Machado de Assis, o único escritor verdadeiramente universal da literatura brasileira. Afirmar que Machado estabeleceria uma oposição entre “aparência” e “essência” é insultar não apenas esse livro, mas toda a obra do autor. Talvez se pudesse dizer que, para ele, na essência, o que há é só uma aparência ainda não revelada. É de uma tolice estupenda, assustadora.

A questão 129 reproduz um trecho de “Negrinha”, de Monteiro Lobato, o autor que a turma de Haddad tentou censurar. Limita-se, mais uma vez, à mera interpretação óbvia do texto. Entendeu o candidato que a personagem citada não aceitava o fim da escravidão? Huuummm… Assim escreve Lobato sobe Dona Inácia: “NUNCA SE AFIZERA AO REGIME NOVO - ESSA INDECÊNCIA DE NEGRO IGUAL”.

De Monteiro Lobato para um jogo do Flamengo! O objetivo da questão 130 é saber se o aluno entendeu que, no trecho “MESMO COM MAIS POSSE DE BOLA, O TIME DIRIGIDO POR CUCA TINHA GRANDE DIFICULDADE DE CHEGAR À ÁREA ALVINEGRA (…)”, há uma idéia de “concessão”…

A 131 trata da pintura de Anita Malfatti, que remete mais uma vez a Lobato, que continua a ser maltratado pelo Ministério da Educação. A questão é esta:

APÓS ESTUDAR NA EUROPA, ANITA MALFATTI RETORNOU AO BRASIL COM UMA MOSTRA QUE ABALOU A CULTURA NACIONAL DO INÍCIO DO SÉCULO XX. ELOGIADA POR SEUS MESTRES NA EUROPA, ANITA SE CONSIDERAVA PRONTA PARA MOSTRAR SEU TRABALHO NO BRASIL, MAS ENFRENTOU AS DURAS CRÍTICAS DE MONTEIRO LOBATO. COM A INTENÇÃO DE CRIAR UMA ARTE QUE VALORIZASSE A CULTURA BRASILEIRA, ANITA MALFATTI E OUTROS ARTISTAS MODERNISTAS…
A resposta certa é esta: “BUSCARAM LIBERTAR A ARTE BRASILEIRA DAS NORMAS ACADÊMICAS EUROPEIAS, VALORIZANDO AS CORES, A ORIGINALIDADE E OS TEMAS NACIONAIS.”

Vamos ver. De fato, Lobato desceu o sarrafo na exposição de Anita. Mas isso nada tinha a ver com a “libertação das normas acadêmicas européias”. A acusação era outra: apego às vanguardas da Europa — ele cita especificamente Picasso. Da forma como vai a coisa, tem-se a impressão de que Lobato se opunha à valorização da cultura brasileira…

A questão 132 publica um gráfico indicando que as mulheres escolhem mais as carreiras ligadas às pessoas, como “psicologia”, “humanas-artes”, “educação” e “medicina”. Já os homens preferem as carreiras ligadas às “coisas”, como matemática, engenharia, mineração e física. Se que faz a prova não entendeu o gráfico, não tem problema. Há duas legendas explicando: “ELA TÊM MAIS HABILIDADES EM COMPREENDER PESSOAS E EMOÇÕES. ENTÃO DOMINAM AS CARREIRAS QUE TÊM A VER COM ISSO” e “ELES TENDEM A USAR A CABEÇA PARA LIDAR COM COISAS INANIMADAS E ABSTRAÇÕES. POR ISSO SÃO MAIORIA NOS CURSOS DE EXATAS”.

Vocês podem ver com os próprios olhos. Depois disso tudo, constata e indaga o Enem:

SEGUNDO PESQUISAS RECENTES, É IRRELEVANTE A DIFERENÇA ENTRE SEXOS PARA SE AVALIAR A INTELIGÊNCIA. COM RELAÇÃO ÀS TENDÊNCIAS PARA ÁREAS DO CONHECIMENTO, POR SEXO, LEVANDO EM CONTA A MATRÍCULA EM CURSOS UNIVERSITÁRIOS BRASILEIROS, AS INFORMAÇÕES DO GRÁFICO ASSEGURAM QUE:

A - OS HOMENS ESTÃO MATRICULADOS EM MENOR PROPORÇÃO EM CURSOS DE MATEMÁTICA QUE EM MEDICINA POR LIDAREM MELHOR COM PESSOAS.
B - AS MULHERES ESTÃO MATRICULADAS EM MAIOR PERCENTUAL EM CURSOS QUE EXIGEM CAPACIDADE DE COMPREENSÃO DOS SERES HUMANOS.
C - AS MULHERES ESTÃO MATRICULADAS EM PERCENTUAL MAIOR EM FÍSICA QUE EM MINERAÇÃO POR TENDEREM A TRABALHAR MELHOR COM ABSTRAÇÕES.
D - AS HOMENS E AS MULHERES ESTÃO MATRICULADOS NA MESMA PROPORÇÃO EM CURSOS QUE EXIGEM HABILIDADES SEMELHANTES NA MESMA ÁREA.
E - AS MULHERES ESTÃO MATRICULADAS EM MENOR NÚMERO EM PSICOLOGIA POR SUA HABILIDADE DE LIDAREM MELHOR COM COISAS QUE COM SUJEITOS.

As questões 133, 134 e 135 voltam à interpretação rasteira de texto. É o fundo do poço!
Não comentei neste longo texto as cinco questões de língua estrangeira e a prova de redação, que merecem artigo à parte. Essa prova é um crime contra o bom senso, contra a cultura, contra o próprio sentido de escola. Não é que ela precise mudar aqui e ali. Simplesmente não tem conserto. A história de que o Enem inova porque não exige decoreba, mas raciocínio, é uma empulhação. Não bastasse o fato de que a quase totalidade dessas 40 questões se limita à interpretação de texto mais estupidamente óbvia, estamos diante de uma impressionante penca de tolices e de imprecisões.

Haddad não veio para melhorar a escola. Ele está aí para torná-la inútil. O abismo nos espreita.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

SIM, EU TENHO PRECONCEITO (transcrito da FSP, de 11/11/2010

"Logo depois de anunciada a vitória de Dilma Rousseff, pingaram comentários preconceituosos na internet contra os nordestinos, grupo que garantiu a vitória da candidata petista nas eleições.A devida reação veio no dia seguinte: a expressão "orgulho de ser nordestino" passou a segunda-feira como uma das mais escritas no microblog Twitter.

O racismo das primeiras mensagens é, obviamente, estúpido e reprovável. Não se pode dizer o mesmo de outro tipo de preconceito -aquele relacionado não à origem ou aos traços físicos dos cidadãos, mas ao modo como as pessoas pensam e votam. Nesse caso, eu preciso admitir: sim, eu tenho preconceito.

Eu tenho preconceito contra os cidadãos que nem sequer sabiam, dois meses antes da eleição, quem eram os candidatos a presidente. No fim de julho, antes de o horário eleitoral começar, as pesquisas espontâneas (aquela em que o entrevistador não mostra o nome dos candidatos) tinham percentual de acerto de 45%. Os outros 55% não sabiam dizer o nome dos concorrentes. Isso depois de jornais e canais de TV divulgarem diariamente a agenda dos presidenciáveis.

É interessante imaginar a postura desse cidadão diante dos entrevistadores. Vem à mente uma espécie de Homer Simpson verde e amarelo, soltando monossílabos enquanto coça a barriga: "Eu... hum... não sei... hum... o que você... hum... está falando". Foi gente assim, de todas as regiões do país, que decidiu a eleição.

Tampouco simpatizo com quem tem graves deficiências educacionais e se mostra contente com isso e apto a decidir os rumos do país. São sujeitos que não se dão conta de contradições básicas de raciocínio: são a favor do corte de impostos e do aumento dos gastos do Estado; reprovam o aborto, mas acham que as mulheres que tentam interromper a gravidez não devem ser presas; são contra a privatização, mas não largam o terceiro celular dos últimos dois anos. "Olha, hum... tem até câmera!".

Para gente assim, a vergonha é uma característica redentora; o orgulho é patético. Abster-se do voto, como fizeram cerca de 20% de brasileiros, é, nesse caso, um requisito ético. Também seria ótimo não precisar conviver com os 30% de eleitores que, segundo o Datafolha, não se lembravam, duas semanas depois da eleição, em quem tinham votado para deputado. Não estou disposto a adotar uma postura relativista e entender esses indivíduos. Prefiro discriminá-los.

Eu tenho preconceito contra quem adere ao "rouba, mas faz", sejam esses feitos grandes obras urbanas ou conquistas econômicas. Contra quem se vale de um marketing da pobreza e culpa os outros (geralmente as potências mundiais, os "coronéis", os grandes empresários) por seus problemas. Como é preciso conviver com opiniões diferentes, eu faço um tremendo esforço para não prejulgar quem ainda defende Cuba e acredita em mitos marxistas que tornariam possível a existência de um "candidato dos pobres" contra um "candidato dos ricos".

Afinal, se há alguma receita testada e aprovada contra a pobreza, uma feliz receita que salvou milhões de pessoas da miséria nas últimas décadas, é aquela que considera a melhor ajuda aos pobres a atitude de facilitar a vida dos criadores de riqueza. É o caso do Chile e de Cingapura, onde a abertura da economia e a extinção de taxas e impostos fizeram bem tanto aos ricos quanto aos pobres. Não é o caso da Venezuela e da Bolívia.

Por fim, eu nutro um declarado e saboroso preconceito contra quem insiste em pregar o orgulho de sua origem. Uma das atitudes mais nobres que alguém pode tomar é negar suas próprias raízes e reavaliá-las com equilíbrio, percebendo o que há nelas de louvável e perverso. Quem precisa de raiz é árvore".

LEANDRO NARLOCH, jornalista, é autor do livro "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" (LeYa). Foi repórter do "Jornal da Tarde" e da revista "Veja" e editor das revistas "Aventuras na História" e "Superinteressante".

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

POR QUE NÃO REESCREVEM TUDO? por João Ubaldo Ribeiro

Ainda bem que João Ubado existe. Bendito sejas Tu, Eterno, que o fizeste neste mundo. Apesar de inúmeros exemplos contrários, é possível que a inteligência prevaleça contra o fanatismo. O artigo abaixo é um tributo à civilização.
(Publicado em O Globo, de 7 de novembro de 2010)

"De uns tempos para cá, não sei se me engano, começaram a proliferar normas destinadas a controlar nossa conduta individual. Falei em algumas aqui e cheguei a aventar a hipótese de que uma agência governamental, ou qualquer outra das muitas autoridades a que vivemos subordinados sem saber, venha a estabelecer normas para o uso do papel higiênico e garantir sua observação através da instalação de câmeras nos banheiros de uso público. Nos banheiros domésticos, imagino que seriam suficientes umas visitas incertas de inspetores com gazuas, para tentar flagrar os que se asseassem ilegalmente. Não se trata somente de passatempo para burocratas entediados e sem mais o que fazer. Trata-se da convicção, que parece grassar truculentamente em toda parte, de que existe algo "certo", cientificamente certo e, portanto, todos devem comportar-se dentro do certo.

Se nas ciências físicas esse negócio de "certo" já é olhado com um pé atrás, nas ciências humanas, que nunca puderam aspirar ao nível de objetividade daquelas, a existência do "certo" é muito discutível, envolve necessariamente valores, valores que permeiam toda ação do homem e não são território da ciência e da objetividade.

Agora leio aqui nos jornais que a compulsão pelo certo acaba de atingir novo limite. Desta vez, por um parecer do Conselho Nacional de Educação, que opinou que o livro "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, deve ser proibido nas escolas públicas, por se tratar de obra racista. Sei que, entre vocês, há leitores de Monteiro Lobato que acharam que não entenderam o que acabaram de ler. Mas é isso mesmo: não pode "Caçadas de Pedrinho", porque é racista. Ou, por outra, pode, mas somente "quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil".

Eu não vou nem falar nos milhões de brasileiros de todas as idades e todas as gerações que viveram no mundo mágico criado por um dos maiores escritores universais, um gênio naquilo que fez melhor, motivo de orgulho para todos nós, Monteiro Lobato. Nem vou dedicar tempo a entender como é que foi que todos esses milhões, lendo, despreparados, livros racistas, não vieram mais tarde a abrigar preconceitos e ideias nocivas, instilados solertemente na consciência indefesa de crianças. Monteiro Lobato, com toda a certeza, tem tantos defensores quanto leitores, não precisa de mais uma defesa.

E que diabo é "compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil". A compreensão "certa"? Qual é a compreensão certa de um fenômeno que gera até brigas ferozes entre seus estudiosos e participantes? Estará correta a visão que vê no racismo um fenômeno causado exatamente pela diferença de raças? Terá mais razão o que vê na escravidão um fenômeno basicamente econômico e só secundariamente racial? Quem resolveu isso? Qual a posição oficial do governo? O professor que orientar a leitura de "Caçadas de Pedrinho" terá que saber.

Deus ajude as pobres crianças, torturadas com o que era antigamente somente um livro que as transportava para a fantasia, a aventura e o encantamento inocentes. Agora, ao que parece, o correto é a leitura tutelada, orientada. Antigamente, a literatura infantil era liberdade, escape, território autônomo em que a imaginação do jovem, ainda não embotada pela experiência, o levava a uma felicidade mais tarde irreproduzível. Agora talvez se diga "você gostou disso, por aquilo; e não gostou disso, porque não é para gostar, está errado". A boa literatura dá lições como consequência, não como objetivo.

Deve-se ensinar a ler por prazer, de maneira desarmada e aberta - e não há como desconfiar dos clássicos como Lobato, os clássicos são clássicos porque são clássicos. A literatura, como a vida, não é certinha. A ficção até que arruma os acontecimentos, lhes empresta enredos e sentidos que na vida real não têm. Mas, como a vida, a ficção mostra contradições, reflete dilemas, exibe defeitos, ilumina a existência humana. Quem entra num romance deve entrar sozinho, a viagem é individual e intransmissível.

E até mesmo essa conversa de necessidade de contextualizar o livro é bem discutível. No meu tempo de menino, ninguém precisou contextualizar os livros de Tarzan para aceitar a África dele, assim como não se contextualizava Robin Hood, D'Artagnan, Jorge Amado, Érico Veríssimo ou quem lá fosse que aparecesse num romance, a contextualização era automática, vinha do bom texto.

Finalmente, em que medida os defeitos não são subjetivos, ou seja, não estão apenas na mente e na percepção de quem os aponta? Existirá um racismômetro? E, mais ainda, não haverá outras áreas sensíveis? Acho que a adoção de mais controles é decorrência lógica e questão de justiça. Temos por exemplo a antropologia ultrapassada de Euclides da Cunha, o tal que falou no "mestiço neurastênico do litoral". É tão presente nele essa visão antropológica superada (além de ofensiva a grupos raciais; eu mesmo sou mestiço neurastênico do litoral e as mulheres sempre me discriminaram), que o melhor seria mandar um antropólogo correto e moderno reescrever "Os Sertões', para quê o velho? Esperemos também alegações de violência contra mulheres (Barba-Azul), machismo (Bolinha), ódio a uma espécie em extinção (o lobo de Chapeuzinho Vermelho), exploração de deficientes verticais (os anões de Branca de Neve), apologia da bruxaria (a Bela Adormecida) e assim por diante. Olhando para trás, chego a ter um arrepio, em ver como escapamos por pouco de termos as personalidades deformadas pela leitura irresponsável dos clássicos, esses repositórios de traições, assassinatos, incestos, preconceitos, guerras, adultérios e tudo mais que o planejamento científico logo eliminará. Melhor por enquanto ficar longe deles e aguardar instruções das autoridades."

"Monteiro Lobato no tribunal literário" - Aldo Rebelo


(Fonte: Folha de São Paulo de 07/11/2010)

"O parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) de que o livro "Caçadas de Pedrinho" deve ser proibido nas escolas públicas, ou ao menos estigmatizado com o ferrão do racismo, instala no Brasil um tribunal literário. A obra de Monteiro Lobato, publicada em 1933, virou ré por denúncia -é esta a palavra do processo legal-de um cidadão de Brasília, e a Câmara de Educação Básica do Conselho opinou por sua exclusão do Programa Nacional Biblioteca na Escola.

Na melhor das hipóteses, a editora deverá incluir uma "nota explicativa" nas passagens incriminadas de "preconceitos, estereótipos ou doutrinações". O Conselho recomenda que entrem no índex "todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante". Se o disparate prosperar, nenhuma grande obra será lida por nossos estudantes, a não ser que aguilhoada pela restrição da "nota explicativa" -a começar da Bíblia, com suas numerosas passagens acerca da "submissão da mulher", e dos livros de José de Alencar, Machado de Assis e Graciliano Ramos; dos de Nelson Rodrigues, nem se fale. Em todos cintilam trechos politicamente incorretos.

Incapaz de perceber a camada imaginária que se interpõe entre autor e personagem, o Conselho vê em "Caçadas de Pedrinho" preconceito de cor na passagem em que Tia Nastácia, construída por Lobato como topo da bondade humana e da sabedoria popular, é supostamente discriminada pela desbocada boneca Emília, "torneirinha de asneiras", nas palavras do próprio autor: "É guerra, e guerra das boas. Não vai escapar ninguém -nem Tia Nastácia, que tem carne negra". Escapou aos censores que, ao final do livro, exatamente no fecho de ouro, Tia Nastácia se adianta e impede Dona Benta de se alojar no carrinho puxado pelo rinoceronte: "Tenha paciência -dizia a boa criatura. Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá...".

Não seria difícil a um intérprete minimamente atento observar que a personagem projeta a igualdade do ser humano a partir da consciência de sua cor. A maior extravagância literária de Monteiro Lobato foi o Jeca Tatu, pincelado no livro "Urupês", de 1918, como infamante retrato do brasileiro. Mereceria uma "nota explicativa"?

Disso encarregou-se, já em 1919, o jurista Rui Barbosa, na plataforma eleitoral "A Questão Social e Política no Brasil", ao interpretar o Jeca de Lobato, "símbolo de preguiça e fatalismo", como a visão que a oligarquia tinha do povo, "a síntese da concepção que têm, da nossa nacionalidade, os homens que a exploram". Ou seja, é assim que se faz uma "nota explicativa": iluminando o texto com estudo, reflexão, debate, confronto de ideias, não com censuras de rodapé.

O caráter pernicioso dessas iniciativas não se esgota no campo literário. Decorre do erro do multiculturalismo, que reivindica a intervenção do Estado para autonomizar culturas, como se fossem minorias oprimidas em pé de guerra com a sociedade nacional.

Não tem sequer a graça da originalidade, pois é imitação servil dos Estados Unidos, país por séculos institucionalmente racista que hoje procura maquiar sua bipolaridade étnica com ações ditas afirmativas. A distorção vem de lá, onde a obra de Mark Twain, abolicionista e anti-imperialista, é vítima dessas revisões ditas politicamente corretas. País mestiço por excelência, o Brasil dispensa a patacoada a que recorrem os que renunciam às lutas transformadoras da sociedade para tomar atalhos retóricos.

Com conselheiros desse nível, não admira que a educação esteja em situação tão difícil. Ressalvado o heroísmo dos professores, a escola pública se degrada e corre o risco de se tornar uma fonte de obscurantismo sob a orientação desses "guardiões" da cultura."
ALDO REBELO, 54, jornalista, é deputado federal pelo PC do B de São Paulo.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

De que lado você está, Melissa?

(Artigo do grande antropólogo Roberto da Mata, publicado em 27/10/2010)

"Quando trabalhava num museu cheio de ossos e de artefatos indígenas cheirando a naftalina e mofo, eu — recém-chegado de Harvard e contrariamente ao meu projeto de ser apenas um pesquisador — fui galgado à posição de coordenador de um programa de ensino e pesquisa. A saída de seu fundador promoveu a minha entrada na “burro-cracia” federal da universidade e, de repente, eu me vi na posição de liderar um grupo de pessoas que mal conhecia. Éramos todos contra a ditadura militar que então governava um Brasil administrado pelo arbítrio e sem a regra de lei que entre nós, humanos, sempre instáveis e interessados, ajuda a manter a coerência; e, eventualmente, mas nem sempre, garante o uso de um só peso e medida.
Um dia, graças a circunstâncias que espero contar com mais detalhes em outro lugar, surgiu a oportunidade de contratar o grupo de professores do programa (de fato, a sua esmagadora maioria), integrando-os aos quadros da universidade. Digo integrar porque, àquela época, eles eram pagos por uma fundação americana que, por meio de sua filantropia, dirimia a nobre culpa ianque por ter criado um colar de ditaduras militares que coroavam com seus diversos tipos de despotismo o nosso continente. O tal “cone sul” ou “América latina” que só agora os americanos estão deixando de ver como um bloco instável, único e atrasado. Algo que, sem nenhum exagero, ainda se situa na sua lata de lixo por contraste com uma certa Europa e Ásia que estão na sua sala de visita.

Pois bem. Quando um todo-poderoso burocrata da universidade dignou-se a entrar em contato comigo, solicitando os nomes dos professores a serem finalmente integrados no nosso programa, não tive dúvida ou neutralidade. Eu sabia de que lado estava, muito embora alguns desses colegas não comungassem comigo das mesmas convicções liberais que, aos 20 anos, eu havia consolidado na minha experiência com a América de Jefferson, Lincoln, Luther King, Thornton, Wilder, Capra, John Ford, Kubrick e muitos outros; mais do que com a vivência com os Estados Unidos de Joseph McCarthy, Nixon, da Ku-Klux-Klan e da dinastia Bush. E assim eu confirmei os seus nomes, muito embora na nossa convivência eu sempre fosse direta ou marginalmente tachado como sendo de “direita” ou de “liberal” com tudo o que essa palavra contém de execrável, de indigno e de desprezível no Brasil (e mais ainda no Brasil daquela época). O mesmo ocorrendo com a minha mal começada obra. Uma vez me disseram que em vez de falar de carnaval ou de renunciantes, como Augusto Matraga, de comida e de dona Flor como metáfora do Brasi, eu deveria estudar camponeses e operários.

Em alguns projetos e publicações produzidos naquele museu eu, apesar de coordenador, era excluído porque certamente não ficava bem mencionar o nome de um semifascista nos resultados de pesquisas de “esquerda” que iriam transformar o Brasil.

Lembro essas passagens não para ativar ressentimentos que já encontraram seu lugar num velho e machucado coração, mas para insistir num ponto: jamais assumi uma posição de neutralidade que — como o limbo — seria mais do que justificado por um coordenador acidental e marcado por um preconceito político tão distorcido pela inútil, mas sempre ressuscitada dualidade entre direita e esquerda.

Por causa disso, e mesmo ouvindo com mágoa a suspeita de um colega que expressou dúvida se o seu nome constaria da lista que enviei à universidade, não fiquei em cima de um doce muro do qual, como fizeram dona Marina e os verdes, muita gente pensa que se pode descortinar os dois lados.

Faço estas confidências porque elas têm muito a ver com o clima eleitoral brasileiro. Você fica neutro quando um presidente da República e um partido que se recusou a assinar a Constituição e foi contra o Plano Real usam de todos os recursos do Estado que não lhe pertencem para ganhar o jogo? Você diz que o jogo não interessa porque você queria que os adversários fossem do mais alto nível e isso não existe em nenhum país e muito menos no Brasil? Será que você não enxerga que o exemplo da neutralidade é fatal quando há uma óbvia ressurgência do velho autoritarismo personalista por meio do lulismo que diz ser a “opinião pública”? O que você esperava de uma disputa eleitoral no contexto do governo de um partido dito ideológico, mas marcado por escândalos, aloprados e nepotismo? Você deixaria de tomar partido mesmo quando o magistrado supremo do Estado vira um mero cabo eleitoral de uma candidata por ele inventada? É válido ser neutro quando o presidente vira dono de uma facção, como disse com precisão habitual FHC? Se o time do governo deve sempre vencer porque tem certeza absoluta de que faz o melhor, pra que eleição? A dúvida, o debate, os momentos de ansiedade e de tédio são parte do fardo grandioso da democracia que tanto queríamos. Só os fascistas e os de máfé, só os ignorantes desse processo podem achar que tudo é péssimo, inclusive os candidatos. Você pode não gostar de um ou do outro, mas a disputa que o Lula e o PT querem anular usando o pessimismo burro do brasileiro para com a “política” é crítica para liquidar as convergências liberais que alcançamos.

Pense nisso, não enverdeça.

Não esconda o seu medo de decidir com argumentos bacharelescos. Diga de que lado você está. Lembre-se que neste mundo não há deuses ou superheróis.

Há apenas pessoas comuns que são candidatos temporários a cargos que têm uma enorme e decisiva influência no nosso destino!"

Fonte: Jornal “O Globo” – 27/10/10

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

POLÍTICA E UNIVERSIDADE

"Três antigos dirigentes da UFMG (capitaneados por seu ex-reitor, professor Ronaldo Pena) utilizaram-se de veículo institucional da universidade ("Boletim" de 18.10) para acintosa campanha em favor da candidata oficial a presidente da República. Causou espécie, com repercussão na imprensa nacional, a forma como se deu o apoio, pois há explícita vedação legal para isso, conforme entendimento de juristas especializados em legislação eleitoral. Abrir espaço para artigos de defensores de outra candidatura - como alguns chegaram a defender - só iria ampliar a violação praticada, democratizando-a perversamente.

Qualquer jornal local certamente acolheria tais manifestações pessoais nas suas páginas de opinião, até por causa da alta posição acadêmica dos autores. Além do mais, um público mais universal estaria sendo brindado, assim, com as avaliações políticas dos referidos e magníficos docentes. A sociedade seria grandemente beneficiada. Ganharia mais elementos de informação no julgamento do governo Lula, não só no tocante às questões orçamentárias educacionais como, também, em outros aspectos infelizmente negligenciados pelos mestres.

Em linguagem sectária, similar à utilizada pela candidatura chapa-branca, argumentam os ex-dirigentes que "o momento é de comparação de dois projetos para o Brasil. De um lado, Dilma Rousseff, representando a continuidade do projeto desenvolvido nos últimos anos, e de outro, José Serra, a oposição a esse projeto". Ouvem-se aí ecos de um totalitarismo tardio, emanados da "teoria dos dois campos" de Jdanov - ideólogo do stalinismo: quem não está comigo está contra mim; quem não é amigo, é inimigo; quem não é socialista, é capitalista e assim sucessivamente. José Dirceu, o chefe da quadrilha do mensalão, assinaria sem tergiversar a espantosa simplificação da realidade contida nesse diagnóstico.

Não consideraram os ilustres professores que uma parcela do eleitorado pode fazer, simplesmente, uma escolha baseada na teoria do mal menor, indissociável do sistema de voto em dois turnos, tal como existe em outros países.

Uma concepção severina da educação - não a que tem como referência a visão do grande poeta João Cabral de Melo Neto, mas aquela inspirada no ex-deputado Severino Cavalcanti, o achacador de lanchonetes - considera o dinheiro como norte a ser seguido, bem como unidade de medida de ações governamentais. Desde que os governantes abram sua vasta cornucópia para suculentas bolsas isentas de imposto de renda, tudo estará bem. Não importa que seus adeptos e acólitos patrocinem, por exemplo, a queima de livros em praça pública (tal como se deu em março do corrente, em São Paulo), numa repetição dos atos dos nazistas, em 1933, às portas de uma universidade alemã. Em nossa universidade severina, bolsos e bolsas recheados falarão mais alto. Valores civilizatórios ficarão severinamente distantes. Vale relembrar o poeta alemão Heine, que assim disse, em 1843: num lugar onde se queimam livros, depois se começa a queimar pessoas."

(Publicado no jornal O TEMPO, de Belo Horizonte, em 23/11/2010)

OS MANIQUEUS (Editorial do jornal O TEMPO, de 23/11/2010)

"A opinião pública discute, nestes dias, se houve ou não agressão a Serra numa passeata no Rio, na última quarta-feira. Discute-se se foi uma bolinha de papel ou um rolo de fita adesiva que atingiu o candidato, ferindo-o levemente.
O próprio presidente Lula entrou no debate, acusando Serra de montar uma farsa. Anteontem, o "Jornal Nacional" demorou-se em provar que houve dois gestos, um com bolinha de papel e, 15 minutos depois, outro com a fita adesiva.
Não importa o que tenha sido atirado no candidato Serra. Importa mais o gesto agressivo. Ontem, atiraram uma inofensiva bolinha de papel, amanhã pode ser uma pedra ou um tiro de revólver, como já aconteceu aqui e alhures.
É inevitável que os candidatos, Dilma inclusive, sofram hostilidades. Mas o presidente não devia se meter numa briga de correligionários, instigando mais agressões. Em última instância, toda a responsabilidade é só sua.
Ele não pode esquecer que tudo de bom e de mau que ocorrer na campanha eleitoral será creditado ou debitado a seu governo. A segurança de que gozam os candidatos é um crédito de seu governo ao preservar a democracia.
Governos reconhecidamente fascistas sempre consideraram farsa quando políticos de oposição sofreram atentados. A história mostrou que a farsa frequentemente foi montada não pelas vítimas, mas pelos acusados.
O país está dividido entre Dilma e Serra. Com relação ao eleitorado de Dilma, talvez não haja dúvidas no seu meio. Mas, com relação ao de Serra, não há essa certeza. Ele repudia o maniqueísmo a que está sendo obrigado.
Como diz o professor Antônio Machado de Carvalho, aqui ao lado, uma parte do eleitorado está fazendo a opção pelo mal menor. Não está nem com um nem com outro candidato, mas com o menos ruim.
Isso precisa ser respeitado. Seja quem for que ganhar o segundo turno, terá de governar com praticamente a metade do eleitorado contra. Portanto, é melhor ir se acostumando."

Manifesto em Defesa da Democracia - 2010

Manifesto em Defesa da Democracia

Numa democracia, nenhum dos Poderes é soberano. Soberana é a Constituição, pois é ela quem dá corpo e alma à soberania do povo. Acima dos políticos estão as instituições, pilares do regime democrático. Hoje, no Brasil, inconformados com a democracia representativa se organizam no governo para solapar o regime democrático.

É intolerável assistir ao uso de órgãos do Estado como extensão de um partido político, máquina de violação de sigilos e de agressão a direitos individuais.

É inaceitável que militantes partidários tenham convertido órgãos da administração direta, empresas estatais e fundos de pensão em centros de produção de dossiês contra adversários políticos.

É lamentável que o Presidente esconda no governo que vemos o governo que não vemos, no qual as relações de compadrio e da fisiologia, quando não escandalosamente familiares, arbitram os altos interesses do país, negando-se a qualquer controle.

É inconcebível que uma das mais importantes democracias do mundo seja assombrada por uma forma de autoritarismo hipócrita, que, na certeza da impunidade, já não se preocupa mais em valorizar a honestidade.

É constrangedor que o Presidente não entenda que o seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas vinte e quatro horas do dia. Não há “depois do expediente” para um Chefe de Estado. É constrangedor também que ele não tenha a compostura de separar o homem de Estado do homem de partido, pondo-se a aviltar os seus adversários políticos com linguagem inaceitável, incompatível com o decoro do cargo, numa manifestação escancarada de abuso de poder político e de uso da máquina oficial em favor de uma candidatura. Ele não vê no “outro” um adversário que deve ser vencido segundo regras, mas um inimigo que tem de ser eliminado.

É aviltante que o governo estimule e financie a ação de grupos que pedem abertamente restrições à liberdade de imprensa, propondo mecanismos autoritários de submissão de jornalistas e de empresas de comunicação às determinações de um partido político e de seus interesses.

É repugnante que essa mesma máquina oficial de publicidade tenha sido mobilizada para reescrever a História, procurando desmerecer o trabalho de brasileiros e brasileiras que construíram as bases da estabilidade econômica e política, que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo.

É um insulto à República que o Poder Legislativo seja tratado como mera extensão do Executivo, explicitando o intento de encabrestar o Senado. É deplorável que o mesmo Presidente lamente publicamente o fato de ter de se submeter às decisões do Poder Judiciário.

Cumpre-nos, pois, combater essa visão regressiva do processo político, que supõe que o poder conquistado nas urnas ou a popularidade de um líder lhe conferem licença para ignorar a Constituição e as leis. Propomos uma firme mobilização em favor de sua preservação, repudiando a ação daqueles que hoje usam de subterfúgios para solapá-las. É preciso brecar essa marcha para o autoritarismo.

Brasileiros erguem sua voz em defesa da Constituição, das instituições e da legalidade.

Não precisamos de soberanos com pretensões paternas, mas de democratas convictos.
(Este documento já foi assinado por mais de 100 mil democratas)

Professsora Ruth Cardoso X Frau Dilma Roussef

(Transcrição de artigo de Augusto Nunes, de 26/11/2009)

Ruth Cardoso vs. Dilma: 400 a 0

"Ruth Cardoso foi a prova definitiva de que milagres civilizatórios ocorrem mesmo nos grotões do planeta. A discreta e talentosa paulista de Araraquara, que se casou muito jovem com o sociólogo carioca Fernando Henrique Cardoso, seria a única primeira-dama a desembarcar em Brasília com profissão definida, luz própria e opiniões a emitir ─ sempre com autonomia intelectual e, se necessário, elegante contundência. Durante oito anos, o brilho da mulher que sabia o que dizia somou-se à luminosidade da antropóloga respeitada em muitos idiomas para clarear o coração do poder.
No fim de 1994, por não imaginarem com quem logo lidariam, muitos jornalistas ouviram com ceticismo a justificativa apresentada pelo presidente eleito para a viagem à Rússia: “Vou como acompanhante da Ruth”. Ela participaria como palestrante de um congresso de antropologia promovido em Moscou, ele aproveitaria para descansar alguns dias. Nenhum repórter cuidou de conferir o desempenho da palestrante. Perderam todos a chance de descobrir que Ruth era muito mais que a mulher do n° 1.
A melhor e mais brilhante das primeiras-damas abdicou do título já no dia da posse do marido. “Isso é uma caricatura do original americano, esse cargo não existe”, resumiu numa entrevista. Se não existia, Ruth inventou-o. Sem pompas nem fitas, longe de fanfarras e rojões, montou o impressionante conjunto de ações enfeixadas no programa Comunidade Solidária. Em dezembro de 2002, os projetos em execução mobilizavam 135 mil alfabetizadores, 17 mil universitários e professores, 2.500 associações comunitárias, 300 universidades e 45 centros de voluntariado.
Acabou simbolicamente promovida a primeira-dama da República no dia da morte que pareceria prematura ainda que tivesse mais de 100 anos. A cerimônia do adeus comprovou que o Brasil se despedia, comovido, de alguém que o fizera parecer menos primitivo, mais respirável, menos boçal. E que merecia ter morrido sem conhecer a fábrica de dossiês cafajestes da Casa Civil chefiada por Dilma Rousseff.
Instruída para livrar o governo da enrascada em que se metera com a gastança dos cartões corporarativos, Dilma produziu um papelório abjeto que tentava reduzir Fernando Henrique e Ruth Cardoso a perdulários incuráveis, uma dupla decidida a desperdiçar o dinheiro da nação em vinhos caros e futilidades gastronômicas. Dilma foi a primeira a agredir uma mulher gentil, suave, e também por isso tratada com respeito até por ferozes inimigos do marido.
A fraude que virou candidata à presidência anda propondo que o país compare Fernando Henrique a Lula. “O Lula ganha de 400 a 0″, delira. Qualquer partido mais competente e menos poltrão teria topado há muito tempo esse confronto entre a seriedade e a bravata, entre o conhecimento e a ignorância, entre o moderno e o antigo, entre o real e o imaginário. Como o PSDB prefere capitular sem combate, poderia ao menos sugerir que se compare Dilma Rousseff a Ruth Cardoso. A Mãe do Pac talvez aprenda como é perder por um placar de 400 a zero."

MARILENA CHAUÍ REPETE GOEBBELS

(Transcrição de artigo de Reinaldo Azevedo publicado em 25 de outubro de 2010)


Uma esquerdista vive o auge do seu delírio imoralista. Ou: Marilena Chaui repete Goebbels 77 anos depois; ela só trocou de “judeus”

"Abaixo, escrevo um post sobre as quase 100 mil assinaturas do Manifesto em Defesa da Democracia e lembro a manifestação ilegal havida na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em defesa da candidatura de Dilma Rousseff. Eu não havia visto ainda o vídeo em que Marilena Chaui põe toda a sua ignorância a serviço da causa. Uma ignorância que chega a ser quase comovente, embora essencialmente perigosa. Ela fala suas bobagens de modo muito convicto, escandindo as sílabas com especial ênfase, como se isso conferisse seriedade ao que diz. Ah, Marilena, Marilena…

Vejam este filme (no YouTube, com a manifestação de dona Marilena). Enquanto o vídeo em que Hélio Bicudo lê o Manifesto em Defesa da Democracia já foi acessado quase 210 mil vezes no YouTube, o de Dona Doida não foi visto nem por 3 mil pessoas. Eu ajudo os carentes de bilheteria, embora eu ache que Marilena precisa caprichar na marquiagem e não pode esquecer o nariz vermelho na próxima intervenção. O cabelo tá bom — emula com o do Bozo.
Viram? Então vamos lá. É impressionante! É possível a esquerdistas argumentar falando só a verdade? Estou convencido de que não. E é por isso, Olavo de Carvalho tem razão, que é inútil debater com eles. Vocês ouviram Marilena afirmar que Serra começou a campanha criticando os programas sociais e agora diz que vai dar continuidade a eles. É mentira! Nunca criticou! Nem na campanha nem antes. Não que não possam ser criticados ou não tenham aspectos criticáveis. Ocorre que ele não fez isso...

...A tese do latifúndio. Na sua alastrante ignorância, Marilena diz que Serra ganhou nos estados do agronegócio, que, diz ela, no seu tempo, era chamado de “latifúndio”, todos com severos problemas ambientais. Uma besteira tripla. Em primeiro luar, acreditar no latifúndio como uma categoria econômica, política ou de economia política já é sinal de atraso mental. Em segundo lugar, mesmo aqueles que acreditam não tratam o “latifúndio” como sinônimo de agronegócio. A afirmação revela ignorância de Marilena até sobre as teses de esquerda. Em terceiro lugar, Serra ganhou em oito estados: Paraná, São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Acre, Roraima e Rondônia. Vamos ver.

Santa Catarina é o estado por excelência da pequena propriedade, até pelo tipo de colonização que ali se deu. Paraná e São Paulo já não têm mais fronteiras agrícolas — este último, no que concerne ao meio ambiente, tem as leis mais avançadas do país. Mais da metade de Roraima está nas mãos do governo federal ou dos índios. O Acre, que caminha para 16 anos de governo petista, e Rondônia não têm os problemas ditos do “latifúndio” — tanto é que a turma de João Pedro Stedile nem está por lá. O Mato Grosso do Sul simplesmente não tem estoque de terra para abrigar latifundiários por causa de sua geografia. No Mato Grosso, há sim, um conflito entre produtores rurais e ambientalistas — mas a questão nada tem a ver com reforma agrária. De todo modo, ainda que ela falasse a verdade, qual é a suposição? Serão, então, tantos assim os latifundiários a ponto de dar a vitória a Serra? Mas essa categoria, por definição, não deveria ser minoritária? Pobre Marilena! Chegar aos 69 nessa penúria intelectual… Coisa melancólica!

Qual é o estado em que mais há conflitos de terra no país, em que mais se mata e mais se morre por causa da terra? O Pará, governado pela petista Ana Júlia Carepa — parece que o estado será libertado no dia 31 de dezembro… Quem ganhou no Pará? Dilma! Qual é o estado em que o MST é mais forte e, diga-se, mais violento? Pernambuco! Foi onde Dilma deve a sua vitória mais expressiva. Terá finalmente desaparecido do Nordeste, onde a petista venceu, o que as esquerdas chamavam, de fato, latifúndio — e que nunca foi sinônimo de “agronegócio”? Marilena conta uma mentira a seu distinto público — que, eu sei, não estava ali nem para ouvir verdades nem para aplaudir a legalidade, já que a manifestação era ilegal.

Autoritária mas vamos lá.

Digamos que esses estados fossem mesmo caracterizados pelo “latifúndio” ou estivessem nas mãos do agronegócio — São Paulo, Jesus Cristo!, é o estado mais industrializado do país!!! Marilena, como vemos, considera que isso é um defeito, que é algo a ser superado, certo? Para ela, uma reforma agrária tem de dar conta desse grave problema. Feito isso, depreende-se de seu “raciossímio” que a oposição, então, não ganharia eleição mais em lugar nenhum!

Entenderam? No dia em que o Brasil for como ela sonha, a democracia e a alternância de poder serão desnecessárias porque, então, o PT seria o governo natural do Brasil. Pensem bem: se a oposição só ganha onde há latifúndio, sem o latifúndio, não ganharia mais nada. Esse é o horizonte mental e moral de uma esquerdista como Marilena Chaui. Se o seu partido não vence a disputa, é porque a sociedade está doente.

Liberdade de expressãoMarilena foi a autora intelectual da tese do “golpe da mídia” durante o mensalão. É por isso que digo que ela é a “pensadora” que fundiu Spinoza (que ela chama “Espinosa”) com Delúbio Soares. Sua tese poderia se chamar “A Ética de Espinosa na Nervura do Real dos Recursos Não-Contabilizados”. Prestem atenção a esta fala da valente:

“O que caracteriza a democracia e distingue a democracia de todos os outros regimes políticos são duas coisas: em primeiro lugar, a defesa da liberdade de pensamento e de expressão, isto é, a defesa do direito à opinião pública.”

Epa! Notem no vídeo que ela fala a palavra “pública” numa espécie de explosão. Uma ova! A liberdade de pensamento e expressão sempre será a liberdade do indivíduo, minha senhora, já que a vontade do público é vária e inconstante. Eis aí: esse é o Spinoza filtrado pelo marxismo bocó. O que é a “opinião pública” senão a multiplicidade de opiniões dos homens? Essas coisas, na boca de um esquerdista, nunca são inocentes. Por que eles se organizam em ONGs e observatórios disso e daquilo e querem criar conselhos para monitorar a “mídia!”? Porque se consideram mais do que a representação do público — o que já não são! Eles se consideram a sua encarnação. Uma banana para esses macacos autoritários! Voltemos à moça:

"Ora, para isso, é preciso que você tenha acesso aos meios pelos quais você exprime essa opinião. Ora, quando esses meios são um monopólio, quem vem falar pra mim de democracia? É a ausência dela".

Cadê o monopólio? Onde está a lei que o determina? Fiquemos com a prata da casa primeiro. A VEJA não monopoliza as revistas, por exemplo. Ela só tem muito mais leitores dos que as concorrentes por uma decisão dos… leitores! A TV Globo tem mais telespectadores porque essa é uma decisão dos… telespectadores! Deram quase R$ 700 milhões por ano para Franklin Martins brincar de TV com Tereza Cruvinel. Conseguiram fazer algo com o humor e a picardia dele e o charme intelectual dela. Resultado: é o traço mais caro da TV mundial. Vamos seguir:

"Porque, para que ela exista, sei que é preciso que, em igualdade de condições, duas ou três ou quatro opiniões pudessem se exprimir no mesmo tempo e no mesmo espaço. O que nós temos é o controle da opinião e a impossibilidade da contestação."

Besteira! Por que Marilena não faz essa proposta aos jornais da CUT, por exemplo? Ora vejam: os que lançaram o Manifesto em Defesa da Democracia, suprapartidário, numa puderam ocupar a cadeira em que esta senhora senta. Porque, em nome da liberdade de pensamento e de expressão, só se admitiu na Sala dos Estudantes, um prédio público, uma manifestação pró-Dilma. Na pluralidade “deles”, só o PT fala. Marilena está pouco se lixando para a diversidade de opiniões. Ela não gosta mesmo é de uma reportagens que evidenciem as falcatruas de seu partido. Acha que são sabotagem. Já as que atingem os adversários, e são muitas, são virtudes.

"Então não venham me falar em democracia. Eu costumo dizer que a defesa da liberdade de pensamento e de expressão, que é aquilo pelo que o filósofo que (sic) eu trabalho desde a juventude,ele deu a vida - vocês sabem que ele foi banido da sinagoga, impedido pelo templo e pela Igreja, ele foi escorraçado como um subversivo perigoso para ordem, porque ele escreveu em defesa da liberdade de pensamento e de expressão, como característica da República e da democracia, Spinoza. Então a última coisa que passaria pela cabeça de alguém como seu seria a recusa da liberdade de pensamento e de expressão”.

Entenderam? Como Marilena estuda Spinoza desde a juventude e como ele deu a vida pela liberdade, então ninguém estaria habilitado a debater o assunto com ela. E pensar que esta senhora escreveu um livro chamado “Cultura e Democracia” — é verdade que ela copiou alguns trechos de Claude Lefort, seu amigo do peito — em que ela ataca justamente esse expediente que emprega: recorrer ao “discurso competente” para tentar silenciar os adversários. Vou confessar: eu li Marilena Chaui. E posso dizer: Marilena Chaui é uma fraude intelectual. Vocês não precisam acreditar em mim. O filme acima a expõe de modo completo no amor pela verdade e no rigor conceitual.

Para encerrarMarilena começa a sua fala atacando as tais “três famílias” que dominariam a mídia. Quais seriam? Posso imaginar. Essas três, como se nota, conspirariam contra a “opinião pública”, impedindo o exercício do contraditório. Essa defesa prática da censura e essa truculência fingindo-se defesa da democracia não são novas. Alguém mais sinistramente capaz do que Marilena já fez isso antes.

Publiquei aqui no dia 20 de setembro o texto Somos os “judeus insolentes” do petismo. Ou: “Um dia a gente cala vocês!”. Traduzi, então, um discurso feito por Goebbels no dia 10 de fevereiro de 1933, 11 dias depois de Hitler ter sido nomeado chanceler da Alemanha. Marilena ataca as “três famílias”; Goebbels atacava os “judeus que mandavam na imprensa”. Marilena, como vimos, acredita que a vitória de Serra em oito estados é tisnada pelo “latifúndio” (!); Goebbels já enxerga a conspiração dos “vermelhos”. Marilena acha que as “três famílias” impedem o livre exercício da opinião; Goebbels acreditava que os judeus conspiravam contra o nacional-socialismo. Vocês já viram o discurso da companheira. Seguem alguns trechos da fala do “companheiro” (íntegra da tradução naquele link). O que vocês acham desse meu exercício de história comparada?

Discurso de Goebbels: "Companheiros, antes de o encontro começar, gostaria de chamar a atenção para alguns artigos da imprensa de Berlim que asseguram que eu não deveria merecer a atenção das rádios alemãs, uma vez que sou insignificante demais, pequeno demais e mentiroso demais para poder me dirigir ao mundo inteiro.
Nesta noite, vocês testemunharão um evento de massa como nunca aconteceu antes na história da Alemanha e, provavelmente, do mundo.(…)Quando a imprensa judaica reclama que o movimento Nacional Socialista tem a permissão de falar em todas as rádios alemãs por causa de seu chanceler, podemos responder que só estamos fazendo o que vocês sempre fizeram no passado. Há alguns anos, não falávamos da boca pra fora quando dizíamos que vocês, judeus, são nossos professores e que só queremos ser seus alunos e aprender com vocês. Além disso, é preciso esclarecer que aquilo que esses senhores conseguiram no terreno da política de propaganda durante os últimos 14 anos foi realmente uma porcaria. Apesar de eles controlarem os meios de comunicação, tudo o que conseguiram fazer foi encobrir os escândalos parlamentares, que eram inúteis para formar uma nova base política.(…)Se hoje a imprensa judaica acredita que pode fazer ameaças veladas contra o movimento Nacional-Socialista e acredita que pode burlar nossos meios de defesa, então, não deve continuar mentindo. Um dia nossa paciência vai acabar e calaremos esses judeus insolentes, bocas mentirosas! E se outros jornais judeus acham que podem, agora, mudar para o nosso lado com as suas bandeiras, então só podemos dar uma resposta: “Por favor, não se dêem ao trabalho!”
Ademais, os nossos homens da SA e os companheiros de partido podem se acalmar: a hora do fim do terror vermelho chegará mais cedo do que pensamos. Quem pode negar que a imprensa bolchevique mente quando o [jornal] Die Rote Fahne, este exemplo da insolência judaica, se atreve a afirmar que o nosso camarada Maikowski e o policial Zauritz foram fuzilados por nossos próprios companheiros?
Esta insolência judaica tem mais passado do que terá futuro. Em pouco tempo, ensinaremos os senhores da Karl Liebnecht Haus [sede do Partido Comunista] o que é a morte, como nunca aprenderam antes. Eu só queria acertar as contas com os [nossos] inimigos na imprensa e com os partidos inimigos e dizer-lhes pessoalmente o que quero dizer em todas as rádios alemãs para milhões de pessoas."


Encerro. É isto: somos os “judeus insolentes” do petismo! E está na cara que eles querem nos pegar e acham que estamos com os dias contados."

Por Reinaldo Azevedo

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

"NÃO PRECISO DE MARQUETEIRO..." (Discurso de José Serra, em 01-09-2010)

"Fico feliz de estarmos todos reunidos neste momento tão crucial para a História do Brasil. Qualquer eleição é sempre uma aposta sobre o futuro, mas só se pode olhar para o futuro tendo o passado como referência.
Vejo nos olhos de cada um de vocês o reflexo da luta que travamos pela democracia, aqueles anos de sacrifício em que demos nossas melhores energias para que hoje todos os brasileiros pudessem ter sua voz ouvida.
Vejo nos olhos de vocês os reflexos da luta que empreendemos para reconstruir o Brasil. Eu quero dizer que tenho muito orgulho do Brasil democrático que eu ajudei a construir. Eu me reconheço neste Brasil que se deseja cada vez mais livre e vibrante. Tenho certeza de que o mesmo orgulho bate no peito de cada um de vocês. E é essa caminhada comum que me inspira a enfrentar os imensos desafios colocados diante de nós.
Aliás, que futuro queremos para os nossos filhos e netos? Quando entramos numa luta dura, como esta agora, acho que é a primeira pergunta a se fazer. Eu disse em 10 de abril: “No país com que eu sonho, o melhor caminho para o sucesso e a prosperidade será a matrícula numa boa escola, e não a carteirinha de um partido político.”
Porque esta foi uma lição que eu aprendi com o meu pai. O sucesso deve vir como resultado do trabalho duro e do esforço. Não da esperteza, dos expedientes escusos, do favorecimento ou da delinqüência. E aqui nós chegamos a um ponto vital nesta discussão sobre a liberdade. Ela é essencial também porque todo ser humano precisa ser livre para buscar o progresso para si mesmo, para sua família, para sua comunidade.
Sem liberdade, a igualdade de oportunidades fica capenga. Eis porque, amigos, amigas, companheiros e companheiras, quando os tiranos, ou candidatos a tiranos, desejam subjugar uma sociedade aos seus propósitos, começam restringindo a liberdade. Minando a liberdade dos outros. Não apenas a de pensar, ou de falar, mas principalmente a de adotar posições sem a sombra do temor, sem o medo de comprometer o bem-estar e os sonhos, os próprios sonhos e os dos amigos e entes queridos.
Dia sim outro também, alguém deste governo fala em controlar a imprensa. O partido do governo sonha com o dia em que vai poder censurar a imprensa. A expressão, bonita, é “controle social”, como se a palavra “social” pudesse legitimar o conteúdo horroroso. Maquiar as más intenções. Em palavras diretas, querem estabelecer comitês partidários para decidir o que os jornais e as revistas poderão ou não publicar, as rádios, tevês e a internet poderão ou não veicular. Querem sufocar economicamente quem ousa discordar.
Não vamos nos enganar, não vamos maquiar a realidade. É isso que estamos enfrentando nesta eleição. Vamos lutar e vamos vencer.
A defesa da liberdade nos une nesta candidatura, nesta caminhada em condições extremamente desafiadoras, caminhada que vai nos levar ao Palácio do Planalto. Liberdade não apenas de consciência, mas liberdade de ação. Liberdade para empreender e trabalhar. Liberdade para a cidadania plena.
Os brasileiros e brasileiras precisam ser livres para não temer que o Estado, financiado com o dinheiro de todos nós, seja ocupado por uma máquina partidária que ameaça e persegue as pessoas, que viola nossos direitos fundamentais. Como ,por exemplo, o direito ao sigilo bancário e fiscal. As notícias estão aí, o segredo fiscal de pessoas que o governo identifica como adversárias foi quebrado por gente na Receita Federal evidentemente a serviço de uma operação político-partidária.

Quando se viola o sigilo bancário de um caseiro, viola-se a Constituição. Quando se viola o sigilo fiscal de representantes da oposição, viola-se a Constituição. Quando se viola o sigilo telefônico e de correspondência de adversários, viola-se a Constituição. Não perguntem jamais quem é Francenildo Pereira. Francenildo são vocês. Francenildo somos nós. Não passo a mão na cabeça de malfeitores. Exijo é que se respeitem os Francenildos e as Marias, os Josés e as Anas.

Sabem o que é o mais impressionante? O mais impressionante é que ninguém do governo, do partido do governo, ou da campanha da candidata do governo deu-se ao trabalho de fingir que acha grave, de simular indignação, de vir a público para dar alguma satisfação à sociedade. Dão de ombros, emitem notas protocolares, ameaçam até processar as vítimas. Indignação? Nem pensar! Como acham que podem tudo, acreditam que podem também violar as leis do país e seguir em frente assoviando.
Mas o Brasil é maior do que eles. Com muito trabalho, luta e fé, vamos derrotá-los. O Brasil, repito, não precisa de alguém que “tome conta” da gente, como se nós, brasileiros e brasileiras, fôssemos incapazes de construir nossos próprios caminhos. E é isso que nós vamos fazer.
Nosso projeto político está claro há muito tempo para o Brasil. Para nós, democracia, estado de direito e justiça social são coisas inseparáveis. Repudiamos quem usa o desejo profundo dos brasileiros por mais justiça social e menos desigualdade para negar às pessoas o direito fundamental de viver num país que seja realmente de todos. Mas todos mesmo, e não só dos amigos, sócios, cupinchas ou cúmplices.
Na economia, somos o país campeão dos altos impostos, campeão dos juros, campeão do atraso na infraestrutura. Você vê o horário eleitoral deles, você vê a propaganda do governo, paga com o dinheiro do povo, e parece que todos os problemas do Brasil foram resolvidos. Obras que não existem, que andam mais devagar que tartaruga, são divulgadas dia e noite como se já estivessem prontas. Eles seguem a receita repugnante, repudiada pela História, de que a mentira repetida mil vezes se transforma em verdade. Só que eles não sabem que a receita está errada. O povo não é bobo.
Claro que há avanços, pois este governo teve a felicidade de colher o que os outros plantaram. Talvez estejamos assistindo à mais escancarada exibição de falta de caráter de que se tem notícia na história da política brasileira. A ingratidão é um defeito de caráter, a ingratidão é a cicatriz que revela uma alma complicada. O que é o PT? Um partido que tenta destruir os que o antecederam no governo, enquanto governa sobre as bases construídas com muito esforço e suor por quem veio antes. Governa e estraga essas bases.
O Novo Brasil - que se depara com o futuro do pré-sal, de uma nova e pujante classe media, que vai sediar Copa do Mundo e a Olimpíada - ainda precisa enfrentar grandes problemas: metade dos adolescentes fora das escolas, a necessidade de uma completa reforma do sistema de saúde, organizar o combate ao crime e as drogas, a construção e recuperação da infraestrutura, o déficit habitacional que chega a milhões de moradias. Grandes problemas que precisam de uma economia forte para serem resolvidos.
Agora, no momento de escolher um novo Presidente, é hora de perguntar: “Quem tem mais condições de manter a estabilidade?” Nesse terreno, um passo em falso que seja pode trazer prejuízos irremediáveis para os brasileiros. Quem tem mais condições de brigar lá fora para defender a economia do Brasil? Quem tem mais condições de defender os ganhos da estabilidade que chegaram ao bolso dos brasileiros na forma de salário, crédito e benefícios? Somos nós! É de nós que o Brasil Novo precisa.
Aí alguém vai me dizer. “Poxa, Serra, tudo bem falar disso. Mas e das outras coisas? Será que este é o melhor discurso para a eleição?” Essa é mais uma diferença. O PT diz a cada momento o que é mais conveniente, tem uma conversa para cada platéia. Nós temos um só discurso, uma só personalidade, uma só cara.
Nós não nos escondemos, não somos bonecos de ventríloquo, não precisamos andar na garupa de ninguém. Nós, acima de tudo, não somos produto de uma fraude. Nenhum pedaço da minha biografia precisa ficar trancado no cofre na época da eleição. E, se o povo brasileiro me der a honra de governar este país, saberá quem está a governar. Nós não seremos reféns de um projeto continuísta nem do apetite enlouquecido de um partido por posições de poder, que é forma bonita de chamar as verbas orçamentárias e os cargos cujos salários são pagos com o dinheiro do povo. Nós não somos candidatos a donos do Brasil. Somos candidatos a servir ao Brasil e ao nosso povo.
No horário eleitoral, nas entrevistas, nas palestras, tenho deixado claro o que pretendo fazer em benefício do Brasil e dos brasileiros. Por isso, faço propostas de cara limpa, sendo quem sou. Porque o grande patrimônio que tenho e que submeto ao julgamento da população é, sim, a minha biografia; é, sim, o meu trabalho; é, sim, o meu compromisso com o bem-estar de todos; é, sim, o meu compromisso com a liberdade; é sim, a minha luta por justiça e igualdade. E isso ninguém vai me tirar. Em campanhas eleitorais, nossos adversários têm optado pelo caminho da sordidez; sabotadores da ordem democrática se movem nas sombras para manchar reputações, para manchar biografias. É inútil no meu caso. Desde os meus tempos de presidente da UNE, são quase 50 anos de vida pública. Cinqüenta anos de uma vida ficha limpa!
- Não tenho nada a esconder do meu passado;- não preciso que reescrevam a minha vida excluindo passagens nada abonadoras;- não preciso que tentem me vender, como se eu fosse um sabonete;- Não preciso de marqueteiro que mude a minha cara, o meu pensamento, a minha trajetória de vida. Ninguém precisa dizer à população quem sou eu. Inventar coisas que não fiz e esconder coisas que fiz. É a minha vida pública que diz quem sou. Posso fazer cara feia às vezes. Mas é uma cara só. Não digo uma coisa hoje para desdizer amanhã. E ninguém me diz o que tenho de falar ou não. Respondo pelas minhas palavras e pelas minhas escolhas. Não fui inventado por ninguém! Foi a luta democrática que me fez. Foram as minhas escolhas de vida que me trouxeram até aqui.
Vocês não imaginam a tristeza que eu sinto quando vejo o governo do meu país transformado num porta-voz planetário de todo tipo de ditador, de facínora, de genocida ou candidato a genocida. Transformaram o Brasil num avalista dos negadores de que tenha existido um Holocausto contra os judeus na Segunda Guerra Mundial. Pensam que enganam alguém, mas ajudam a criar um ambiente favorável a que os novos fascistas do século 21 construam a bomba atômica.
Meus amigos, minhas amigas, meus companheiros, minhas companheiras. Obrigado a todos vocês, a todas vocês, por terem vindo aqui hoje. Obrigado por terem vindo ouvir o que eu penso sobre esta luta e sobre o futuro. Obrigado por terem me dado a oportunidade de falar sobre os meus valores, sobre as idéias que defendo para o meu Brasil.
Obrigado por estarem comigo nesta caminhada. Que é difícil, eu sei. Exige muita firmeza, mas, para nós, pode ser conduzida com suavidade, serenidade, tranqüilidade. Pois, nesta campanha, nós temos a felicidade de poder defender exatamente aquilo que pensamos.
Nossa caminhada é difícil, mas Deus só dá a missão a quem pode realizá-la. Por isso nossa caminhada é também suave, já que, nela, podemos ser nós mesmos, sem precisar mentir, esconder, conspirar.
Vamos em frente, pela democracia, pela justiça, pela liberdade, pela igualdade, em defesa do Brasil livre e democrático que nós ajudamos a construir e que vamos ajudar a fazer avançar muito mais.
Pois, de uma coisa, nosso Brasil pode ter certeza:

“Verás que um filho teu não foge à luta,
Nem teme, quem te adora, a própria morte.
Terra adorada,
Dentre outras mil,
És tu, Brasil, Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada Brasil!”

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Sociedade em rede - entrevista com Manuel Castells

(Entrevista Roda viva:

"Heródoto Barbeiro: Essas e outras questões envolvendo informação e sociedade são temas do nosso Roda Viva de hoje com Manuel Castells. Ele é catedrático de sociologia e de planejamento urbano e regional da Universidade da Califórnia, em Broocklin, desde 1979. Já foi professor em universidades de Paris, Madri e também na América Latina. Manuel Castells já publicou 20 livros editados em 11 idiomas e acaba de lançar no Brasil, pela Editora Paz e Terra, o primeiro volume de uma trilogia baseado em 20 anos de pesquisa sobre a era digital. Este livro "A sociedade em rede" é uma análise da dinâmica social e econômica na era da informação. Um estudo que busca a compreensão das transformações que as novas tecnologias estão produzindo e ainda vão produzir em nossas vidas. Para entrevistar o professor Manuel Castells, nós convidamos o ambientalista Washington Novaes, consultor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo. O jornalista Wilson Moherdaui, diretor dos jornais Informática Hoje e Telecon. Regina Meyer, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Kátia Mello, que é repórter da revista Isto É. O cientista político Gildo Marçal Brandão, professor da Universidade de São Paulo. O jornalista Luiz Weis, articulista do jornal O Estado de S. Paulo. O sociólogo Ricardo Abramovay, professor do Departamento de Economia e do Programa de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo. Professor Castells, boa noite.

Manuel Castells: Boa noite.

Heródoto Barbeiro: Professor, inicialmente eu gostaria que o senhor contasse ao nosso telespectador o que é exatamente o chamado capitalismo informacional e qual a diferença desse capitalismo com este outro que nós estamos vivendo desde a segunda metade do século XX?

Manuel Castells: É capitalismo, mas é muito diferente do que vivemos até agora. É informacional porque a geração de riqueza, através da produtividade e da competitividade de empresas, países, regiões, pessoas, depende, sobretudo, de informação e conhecimento e da capacidade tecnológica de processar essa informação e gerar conhecimento. Além do mais, é um capitalismo global pela primeira vez, realmente, na história da humanidade e que funciona em rede, quer dizer, tem uma nova forma organizacional, altamente flexível, altamente dinâmica, que, ao mesmo tempo, inclui o que vale e exclui o que não vale. É um mundo novo. Capitalista, sim, mas novo.

Heródoto Barbeiro: E o que difere de todo esse capitalismo que nós vivemos após 1950?

Manuel Castells: Bem, por exemplo, em termos econômicos, o capitalismo funcionava baseado em que se investia naquele que viria a ter maior taxa de lucro, nas empresas que tinham taxa de lucro. Hoje em dia, investe-se em função de qual será o aumento do valor das ações dessa empresa. Por exemplo, as empresas de software, de internet, neste momento, não ganham dinheiro. Algumas perdem, outras se mantêm, mais ou menos, mas aumentaram seu valor em 1000%, 1500%, no último ano. Com base em quê? Em que as pessoas pensam que vão aumentar de valor e, portanto, comprando hoje, terão valor amanhã. Então, estamos em um capitalismo, no qual a tecnologia gera valor e a expectativa de geração de valor dessa tecnologia acaba criando dinheiro.

Washington Novaes: Professor, o senhor acha que esse capitalismo é sustentável? O último relatório das Nações Unidas sobre o desenvolvimento humano diz que o que nós temos no mundo hoje não é sustentável e não deve ser sustentado, seja pela concentração de renda que produz, seja pela concentração do consumo. 86% do consumo hoje estão apenas nos países industrializados, onde estão menos de 20% da população. E também não é sustentável pela sobrecarga sobre os recursos naturais, para estender o padrão de consumo do Primeiro Mundo hoje, do chamado Primeiro Mundo, a todo o mundo, não haveria recursos suficientes. Então diz o relatório da ONU, textualmente, “não é sustentável e não deve ser sustentado”. O senhor acha que é sustentável?

Manuel Castells: Participei desse relatório da ONU; por conseguinte, minha opinião é que, em última instância, não é sustentável, mas não é sustentado por algumas centenas de anos, o que é um prazo muito longo. Creio que devemos distinguir o que é a crítica que fazemos a esse modelo capitalista da idéia de que ele vá se afundar por si mesmo. Tem fortes contradições, mas é, ao mesmo tempo, muito dinâmico. Então, por um lado, existe a possibilidade de um capitalismo que inclua, no conjunto do planeta, setores minoritários de muitas sociedades, majoritários em outras sociedades, que gerem tanto valor, tanta produtividade e tanta riqueza, que funcionem, do ponto de vista econômico, dentro de um planeta que se encolhe, dentro de um planeta em que 1/3 da humanidade, por exemplo, funcione dentro de um mundo altamente protegido, enquanto que o resto fica desprotegido e não é necessitado. Nesse sentido, há um passo da exploração à irrelevância, para boa parte do planeta. Então, eu acho que, se, neste momento, o modelo de produtividade do capitalismo informacional é tão dinâmico, é muito possível que continue se desenvolvendo com base neste setor da humanidade, excluindo, ao mesmo tempo, boa parte das pessoas, que não são interessantes. Os recursos naturais são outro problema. Mas, com os recursos naturais, de certo modo, o capitalismo informacional é menos destrutivo do que o industrialismo, tanto capitalista quanto socialista. As novas tecnologias, a curto prazo, são menos destrutivas para o meio ambiente. Creio que devemos diferenciar a crítica ética e social, que compartilho, do que é a capacidade dinâmica desse modelo, que é o modelo que criamos e é o que existe.

Luiz Weis: Professor, eu gostaria de sair da economia e da ecologia por um momento para falar da política. Recentemente nós tivemos, pela primeira vez em 44 anos, eleições livres na Indonésia, com largo comparecimento. Uma semana antes das eleições da Indonésia, nós tivemos eleições na África do Sul, a segunda desde o fim do apartheid, com 35% de comparecimento. Na mesma semana das eleições na África do Sul, tomou posse na Nigéria o presidente eleito democrático. Para encurtar os exemplos, nunca tão ampla parcela da espécie humana viveu num regime democrático como agora. Nunca tantos seres humanos tiveram a oportunidade de exercer, como agora, o ato elementar da cidadania política, que é o direito de votar. E não obstante, no seu livro, o senhor afirma e eu cito, “que os sistemas políticos da atualidade estão mergulhados numa crise estrutural de legitimidade”. Professor, eu não estou entendendo o que o senhor escreveu ou não estou entendendo os fatos que me referi.

Manuel Castells: Efetivamente, o grande paradoxo é que, no momento em que grande parte da humanidade, a grande maioria, na verdade, chega à democracia política, essa democracia política está se esvaziando de conteúdo e está perdendo legitimidade. Isso, por um lado. A democracia é indispensável. Creio que a democracia em países...

Luiz Weis: E quais são as evidências dessa perda de legitimidade?

Manuel Castells: A falta total de confiança na classe política, no mundo todo.

Luiz Weis: E por que as pessoas votam?

Manuel Castells: As pessoas votam contra, não a favor. As pessoas votam a favor do que lhes parece menos mau, como gesto de defesa contra o que pode ser ainda pior. E as pessoas, em muitos países, votam cada vez menos. E votam por opções diferentes das que são dos principais partidos do sistema político. Nos Estados Unidos, a grande democracia, votam, mais ou menos, 50% para presidente; para o Congresso, votam uns 40%; nas eleições locais e estaduais, votam menos de 30%. Isso, por um lado. Mas, sobretudo, a relação entre voto e legitimidade não é direta. As pessoas têm cada vez mais problemas em aceitar que sua vida possa ser resolvida pela política. Acho que é um problema fundamental. Realmente, é uma crise que não podemos permitir que continue se desenvolvendo. Mas é a constatação objetiva. A perda de confiança nos políticos, na classe política e nas instituições representativas, como forma de resolver os problemas da vida. Além de pensar que, em geral, a classe política é corrupta. Coisa que é evidentemente falsa, mas que é o sentimento majoritário de grande parte da população, em todos os países.

Luiz Weis: Desde que existe política, isso não é propriamente novo. A desconfiança, o desprezo pelos políticos é uma coisa que convive com a prática política desde que o mundo é mundo. Enfim, eu não quero me prolongar nisso...

Manuel Castells: Não estou de acordo, porque o que acontece hoje em dia é que a política é uma política de mídia que vive por e nos meios de comunicação. E, assim, o que se constrói nos meios de comunicação determina em grande parte, a opinião política dos cidadãos. E, como os meios de comunicação têm como norma (por ser o que vende, o que influencia) que só as más notícias são notícias, o que se está recebendo como informação política, é, sobretudo, aqueles elementos que tornam ilegítimo o exercício da política. Assim, quanto mais entramos em um mundo de informação, mais os cidadãos estão expostos a uma série de informações contra pessoas, mas do que contra projetos e, desse ponto de vista, a personalização da política leva a tornar ilegítima a política de conteúdo. Isso é novo.

Ricardo Abramovay: Queria voltar um pouco ao ponto que o Washington pegou. Essa capacidade dinâmica que a sociedade informacional agora vem manifestando de maneira espantosa, quer dizer, o ritmo das transformações é aceleradíssimo. O senhor sustenta no seu livro e acaba de reiteirar na resposta ao Washington, que é perfeitamente possível, que uma parte significativa, maior ou menor, segundo uns países, inclusive é muito interessante no seu livro, que a parte da humanidade irrelevante, ela não está simplesmente no hemisfério sul, nós estamos diante de outras polaridades diferentes das polaridades norte e sul, São Paulo, Nordeste, das polaridades convencionais. Então essa idéia de que é possível um capitalismo extremamente dinâmico e ao mesmo tempo excludente de uma grande de massa da população, ela não é contraditória com a nossa experiência histórica, muito imediata, quero dizer com a experiência histórica do final da Segunda Guerra Mundial para cá, onde cresceram - eu não estou falando simplesmente dos países europeus e do Japão - cresceram os países que foram capazes ao mesmo tempo de - e foi a lição que eu penso ter conseguido tirar do seu livro - os países que ao mesmo tempo conseguiram investir em formação dos seus cidadãos, educação. O senhor não toca no tema da reforma agrária, também não dá para tocar em tudo, mas obviamente dos países asiáticos, países que fizeram reforma agrária, distribuíram renda, países que se inseriram num ambiente competitivo e países cujo o Estado auxiliou as elites econômicas no sentido da montagem de uma estratégia econômica nacional e regional. Pois bem, é possível, inclusive mais atualmente o senhor cita o caso do Chile diferenciando o regime Pinochet do regime democrático chileno e dizendo que o regime democrático chileno conseguiu conciliar, compatibilizar crescimento e bem-estar. O crescimento, para que ele seja minimamente durável, ele não tem que estar associado ao bem-estar, ou seja, a falta de bem-estar, a irrelevância de uma parte significativa da população, além de um problema ético, ela não coloca também para o dinamismo do sistema econômico um problema seriíssimo em termos das suas pesperctivas de médio prazo?

Manuel Castells: Há um problema muito sério. Mas vamos partir de dados empíricos. Ao mesmo tempo que, nos últimos 10 anos, tivemos um aumento substancial de produtividade, de crescimento de valor econômico, de desenvolvimento tecnológico sem precedentes, ao mesmo tempo, tivemos um extraordinário aumento de desigualdade social, de polarização, de exclusão social, no conjunto do planeta e na maioria dos países, dentro dos países. Ou a manutenção da desigualdade social, como no caso do Brasil, que melhorou algo, mas que ainda se mantém em níveis muito altos. De novo, esse sistema é sustentável? Creio que depende de dois elementos. Por um lado, da possibilidade de ampliação de mercado para um sistema tão dinâmico, que precisa integrar pessoas para poder, realmente, ter um consumo que permita o desenvolvimento. Por outro lado...

Ricardo Abramovay: Mercado interno?

Manuel Castells: Mercado interno e mercado externo. Creio que, cada vez mais, a distinção entre mercado interno e mercado externo na economia globalizada desaparece. Quer dizer, é o mercado. Pode-se intervir em diferentes mercados, em diferentes economias. A ampliação geral do mercado. E isso é importante porque, justamente, as empresas do Brasil, ou da Coréia, não necessariamente precisariam de seu mercado interno, se podem competir internacionalmente. Se pode, além disso, haver uma ampliação generalizada de mercado em todos os países juntos, é ainda mais importante para todo mundo. Para poder entrar nesse mercado, as pessoas precisam ser produtivas e produtoras. E, para isso, fazem falta, ao mesmo tempo, infra-estrutura tecnológica para o novo sistema e capacidade educativa. As pessoas sem educação não podem ser trabalhadores e, portanto, consumidores desse sistema novo.

Gildo Marçal Brandão: E renda, e falta renda.

Manuel Castells: Mas falta renda porque as pessoas não têm educação, ou a capacidade de agregar valor suficiente para poderem ser pagas em termos de renda.

Washington Novaes: Mas a renda mundial não é inelástica, ela tem limites. Isso não pode crescer pura e simplesmente, isso está provado em muitos países, há muitos países onde os limites são muito claros. Apesar das pessoas terem qualificação, hoje o desemprego das pessoas qualificadas é muito alto.

Manuel Castells: Perdão. Não estou de acordo com isso. As pessoas altamente qualificadas têm muito pouco desemprego, muito menor desemprego do que as outras pessoas. E, no caso das economias que deram o salto ao novo desenvolvimento tecnológico, como os EUA, não há desemprego. No Japão, não há desemprego. Os EUA estão no nível mais baixo de desemprego, em 30 anos, e a maioria dos novos empregos criados é de alto nível.

Washington Novaes: Em compensação, cai o salário médio nos Estados Unidos, o salário real está em queda nos Estados Unidos.Manuel Castells: Caiu até dois anos atrás.

Washington Novaes: E o caso norte-americano é muito especial, os Estados Unidos são os grandes beneficiários do processo, da globalização.

Manuel Castells: Isso é certo. Mas ao mesmo tempo, é especial, como também é especial porque é o primeiro país em que se desenvolveu plenamente o novo modelo de produtividade econômica.

Gildo Marçal Brandão: Mas não há um certo dualismo no livro, no sentido de que aparentemente, como eu não li o segundo volume, então não sei como que o senhor vai resolver a questão. Mas aparentemente, tem uma teoria, uma análise do sistema, do capitalismo informacional que é positiva, que é até um pouco apologética, pelo menos o senhor de alguma maneira tira de lado certas críticas usuais que são feitas a esse tipo de capitalismo. Por exemplo, o senhor defende que tecnologia não cria desemprego, essa nova tecnologia, na verdade, acaba gerando mais empregos e melhores empregos. E que o desemprego europeu - a América Latina o senhor não analisa muito - se deve mais a opções econômicas e políticas dos governos e das empresas. A tecnologia é neutra, o clima é positivo, não há desemprego estrutural, apesar de haver conhecimento da concentração de renda e de exclusão. Por outro lado, o senhor está dizendo que do ponto de vista político, o tipo de política desse capitalismo é ruim, porque ele é virtual, ele é mediado pela televisão, ele é cada vez mais personalizado, ele cada vez mais joga com símbolos que têm uma certa diferença em relação ao mundo real. Então, é como se nós tivéssemos num capitalismo que do ponto de vista econômico fosse uma grande novidade e do ponto de vista político ele é um imenso atraso. Seria isso?

Manuel Castells: Em primeiro lugar, quero precisar que meu livro não é normativo e não toma posição. Não toma posição em nada. Nem defende, nem ataca. É uma opção pessoal que tomei, porque acho que é importante ter a cabeça fria e analisar a transformação do mundo sem partir, primeiro, de uma posição ideológica. É uma posição discutível, mas tento ser o mais rigoroso possível. Posso estar equivocado, mas o que apresento são os dados do que existe atualmente e como funciona esse sistema. As novas tecnologias não destroem o emprego. Não por princípio, mas porque, empiricamente, pode-se provar que não o destrói. Que há desemprego e destruição de emprego é certo, mas as novas tecnologias, como tais, não só não destroem empregos como, em alguns países, os criam. Caso dos Estados Unidos e caso do Japão.

Washington Novaes: Nós não temos desemprego estrutural.

Manuel Castells: Existe desemprego estrutural, mas não devido às novas tecnologias. Ao contrário, sem novas tecnologias, destroem-se empregos. Por que há desemprego? Tomemos o caso do Brasil, para não ir a outros países. Há um problema sério de desemprego muito doloroso; não é tanto quanto parece, como dizem algumas manchetes. Parece ser bem menor, segundo o Instituto Brasileiro de Estatística. Mas, em qualquer caso, no desemprego brasileiro, como em muitos outros, juntam-se três fatores. Por um lado, o fator da estrutura da população. A chegada de uma população jovem e a chegada, a entrada maciça da mulher no trabalho remunerado. Fator extremamente positivo, mas que requer criar postos de trabalho. No Brasil, mais ou menos entre 1995 e 2010, requerem-se 25 milhões de novos postos de trabalho. Em segundo lugar, é um problema de reestruturação produtiva, como dizem os economistas. Algo que parece muito complicado mas, na realidade, é muito fácil. É que certo tipo de indústria e certo tipo de produto vão esgotando seu mercado. E não é aí onde se geram empregos. O caso de São Paulo, por exemplo, onde há toda uma parte de velha indústria, como foi em Detroit, como foi no Ruhr alemão, que não tem competitividade, porque há uma mudança de tecnologia industrial e uma mudança de mercado. Então, gera desemprego em São Paulo. Mas, ao mesmo tempo, há outras indústrias, em outros lugares, que geram emprego. Li, na semana passada, na [revista] Veja, uma reportagem que assinalava, por exemplo, que, em Santa Rita, Minas Gerais, havia 65 novas empresas de eletrônica e telecomunicações que geraram 7.500 empregos, de, relativamente, alto nível. Ou um nicho de mercado, como Veranópolis, Rio Grande do Sul, onde não há desemprego porque produzem bolas de futebol e outros artigos esportivos. Mudança da reestruturação industrial e pessoas que caem nesse processo de mudança. Isso para as pessoas não é um consolo, e os governos devem ajudar essa transição e apoiar essas pessoas, nesse momento de transição. Mas não é porque haja um novo sistema tecnológico que se destroem empregos, se não que muda o tipo de emprego. Fundamentalmente, eu diria algo mais. O que realmente fazem as novas tecnologias é mudar o tipo de relação trabalhista. Há o passo do emprego estável, de longo prazo, em uma empresa, em uma administração, para muitos anos, com uma progressão previsível, para um emprego flexível, que deve adaptar-se constantemente, a novas indústrias, novas relações trabalhistas e novas tecnologias. Então, o que aconteceu é que, naquelas sociedades, em que um setor protegido de emprego, continua sendo protegido, sem exposição direta à competitividade, naquelas sociedades, há uma falta de investimento de capital para criar novos postos de trabalho nesses setores. Pois, como o capital é global e o trabalho é local, investe-se capital onde se pode criar empregos flexíveis, aos que não se está atado pelo resto da vida. Este é o verdadeiro problema.

Regina Meyer: Na conclusão da resposta eu vou engatar minha pergunta. Eu achei muito... O livro comparado aos seus escritos dos anos 70, que para mim foram escritos formadores, eu li mais de uma vez, La question urbaine em francês, você escreveu em Paris. Então, a questão do conflito e da dimensão que o conflito tomava nas reivindicações urbanas, as reivindicações políticas - você falava das reivindicações urbanas - ela desaparece desse universo descrito pela sociedade em rede. A impressão que eu tive lendo A sociedade em rede é que não tem mais lugar para esse tipo de conflito, que a sociedade mudou a tal ponto, que do lugar não emerge conflito. E, ao mesmo tempo, no livro, você fala que as metrópoles ainda são marcadas pela sua história. E a história de uma cidade como São Paulo, que você conhece bem, porque já esteve aqui várias vezes, é uma história de conflitos permanentes; agora, basta andar por São Paulo para ver esses conflitos. Embora São Paulo, em alguns aspectos, ela queira, pretenda ser uma candidata a essa rede internacional, que você, de certa forma, desqualifica no seu trabalho, a idéia de cidade global, você mostra como a cidade é global e não global simultaneamente. Então, como que você lê em São Paulo o conflito urbano ganhando essa dimensão de conflito político, que você tanto escreveu e de certa forma apontou caminhos na década de 70.

Manuel Castells: Eu estou totalmente de acordo que a sociedade é conflito. Sempre. Toda sociedade. E a experiência histórica, e não há nenhuma razão para não ser assim. Devo dizer que não é porque queira fazer publicidade, absolutamente, para o segundo volume da trilogia, mas este livro não é um livro...Realmente, quando há três volumes, é porque o editor decidiu não pôr...

Regina Meyer: Mas você tomou cuidado, a última palavra do livro é “continua”.

Manuel Castells: Claro. Continua no segundo volume, que é onde há a análise dos movimentos sociais e dos processos de conflito político. Nesse sentido, é um livro. Mas, deixando de lado o livro, pois o que importa são as idéias e a análise, há conflitos. Agora, que tipo de conflitos? Não que tipo de conflito pode haver. Não falo do futuro, falo do que está acontecendo. Os conflitos que observei têm duas características fundamentais. São conflitos em boa parte, defensivos e reativos. Não de dentro do sistema, mas contra o sistema, em seu conjunto. E organizam-se, sobretudo, em torno de valores de identidade. Valores em que, em um mundo em que os fluxos de informação, os fluxos de capital, dissolvem as bases materiais da existência das pessoas... O que está acontecendo é que muita gente centra-se na religião, no nacionalismo, no território, na etnia, no gênero e, a partir dessa identidade, propõe uma mudança de valores com respeito ao que está acontecendo no mundo. Portanto, por um lado, temos uma rede de fluxos de capital, de tecnologia, de informação que funciona quase de forma autônoma e, por outro lado, uma sociedade que propõe valores alternativos, no lugar do que tínhamos na sociedade industrial, uma interação entre, digamos, patrões e operários, onde os dois lutavam em torno de um mesmo sistema produtivo. Esse é o novo, o que está acontecendo. No caso de São Paulo, que conheço bem historicamente, conheço menos o que está acontecendo ultimamente, mas há mobilizações de resistência defensiva contra os efeitos sociais de uma globalização desigual. Há também movimentos de identidade das pessoas, em suas diferentes culturas, contra a falta de assimilação dos valores que existem nessa gente por parte do capitalismo informacional. Em último caso, o que acontece, também, é que esses valores e esses movimentos sociais entram nos fluxos de informação. Por exemplo, o movimento zapatista, no México. O movimento zapatista, a partir da defesa da identidade indígena e da luta contra a exclusão social, entra na internet, utiliza a política de mídia e invade o espaço, que era o espaço privilegiado dos fluxos de informação. Portanto, não só o conflito não acaba, como o conflito começa em um nível mais fundamental, que é o nível da identidade dos valores e não, simplesmente, as reivindicações econômicas.

Heródoto Barbeiro: Doutor Castells, nós vamos fazer um intervalo. Nós vamos então ao intervalo, daqui a pouco nós voltamos entrevistando o nosso convidado de hoje, que é o sociólogo espanhol Manuel Castells. Até já.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro: Nós voltamos aqui com o Roda Viva. Hoje nós estamos entrevistando o sociólogo espanhol Manuel Castells. Antes de passar para os nossos convidados, doutor Castells, eu gostaria de, rapidamente, que o senhor, em função de tudo que foi dito no primeiro bloco, o senhor dissesse também ao nosso telespectador o seguinte: O que se entende por comunidade virtual e se essa comunidade virtual está associada, atrelada a todas essas explicações que o senhor deu? E se isso é responsável pelo enfraquecimento do Estado Nacional como nós conhecemos até agora?

Manuel Castells: Por comunidade virtual entende-se a comunicação entre pessoas através de meios eletrônicos. Nesse sentido, o que se estudou empiricamente mostra que não somente não debilitam as relações sociais, como as reforçam, em muitos casos. Não é responsável pela crise do Estado Nacional. O que é responsável, em parte, é a globalização. O fato de que os grandes processos de circulação de capital, os grandes processos de informação, tudo o que conta no mundo está organizado globalmente e não há nenhum Estado que, como Estado, possa controlá-lo. Pode influenciar, o Estado é muito importante, pode influenciar esses processos em função dos interesses de seus cidadãos, mas não pode controlá-lo. Nesse sentido, perdeu-se a soberania. E como os Estados tentam juntar-se entre eles para organizar associações de Estados que controlem, de algum modo, um pouco melhor, perdem mais soberania porque o que lhes resta de soberania têm que compartilhar. Portanto, a relação entre os interesses dos cidadãos, as reivindicações dos vários setores e o que faz o Estado-Nação é muito midiatizado por processos muito complexos e muito globais que, portanto, distanciam, objetivamente, o cidadão do Estado. Em último lugar, o cidadão reage ao fim de um processo, em uma espécie de caixa negra de decisões políticas, as quais não vê muito bem o que acontece, e só o que faz é ir contabilizando se para ele é bom ou é ruim. O que é uma individualização total da relação com o Estado. No fundo, é uma crise da noção de cidadania. É o consumidor que espera que a “empresa-Estado” lhe proporcione melhores condições de vida e de trabalho.

Heródoto Barbeiro: Kátia, por favor.

Kátia Mello: Vou voltar ao ponto da Regina, que é arquiteta, que falou sobre as cidades. O senhor fala no seu livro que justamente as etnias, as religiões fazem com que as pessoas se agrupem cada vez mais dentro da sociedade de rede. A tecnologia ela favorece em quê isso? E também queria fazer uma ligação com os movimentos sociais que o senhor também cita isso no seu livro, né? Quer dizer, qual é o papel dos movimentos sociais na sociedade de rede?

Manuel Castells: O mesmo que sempre foi: mudar os valores sobre os quais a sociedade está organizada. Creio que há uma distinção fundamental entre movimentos reivindicativos, que pedem mais do mesmo, mais daquilo que existe, e movimentos sociais, que são movimentos que tratam coletivamente, por meio de ação coletiva e pressão sobre instituições, a mudança de valores sobre os quais a sociedade está organizada. Por exemplo, o movimento das mulheres, mudar uma sociedade fundada sobre o patriarcado, ou seja, a dominação institucional de mulheres e crianças por homens, no seio da família, a uma família igualitária e a uma sociedade em que as mulheres tenham igualdade de oportunidades. Ou os movimentos ecológicos, que tratam de mudar os valores da relação entre sociedade e natureza, de forma que a conservação da natureza integre-se nos objetivos do crescimento econômico e do desenvolvimento material. Os movimentos sociais são mais importantes do que nunca. Em uma sociedade em que, ao ser centrada na informação, informação é cultura e, por conseguinte, a forma em que pensamos traduz-se, diretamente, na forma em que produzimos, em que administramos o resultado dessa produção.

Kátia Mello: Em relação a essa primeira pergunta. O senhor não acredita que nós estamos cada vez mais nos enclausurando dentro desses segmentos?

Manuel Castells: O que as tecnologias fazem é proporcionar um amplo leque de possibilidades. O que acontece, depois, com as tecnologias, depende do que acontece na sociedade. Concretamente, isso quer dizer: sociedades que tratam de se relacionar cada vez mais dentro dessa sociedade, como a Finlândia, por exemplo, as novas tecnologias permitem um desenvolvimento de relações sociais, de participação cidadã muito maior. Sociedades onde, pelo contrário, há uma tensão, inclusive uma violência entre distintos grupos sociais, como pode ser São Paulo, como pode ser Los Angeles, como pode ser, na Europa, Paris, neste momento, aí as novas tecnologias permitem que grupos de alto nível de receita e de educação deixem a cidade, organizem seu guetos de ricos e relacionem-se, entre eles e com o mundo em geral, através da internet. Por conseguinte, segundo as condições, o desenvolvimento da internet pode criar comunidades entre um grupo social determinado, mas cortando esse grupo do resto da sociedade, aumentando a segregação social.

Wilson Moherdaui: Identidades primárias, quer dizer, grupos que se aglutinam em torno de identidades primárias para se defender de uma certa forma desse fenômeno de globalização cultural. Isso explica, isso poderia explicar a acentuada explosão de seitas religiosas localizadas, e a exacerbação do fanatismo, do fundamentalismo, cristão, islâmico, enfim. Esse movimento de defesa da sociedade diante desse processo é que poderia estar resultando nesses processos?

Manuel Castells: Efetivamente. Mas, cuidado para não assimilar a afirmação de identidade e os valores absolutos, como os valores religiosos, ao fundamentalismo. O que assistimos, hoje em dia, no mundo, com exceção da Europa Ocidental, claro, é uma explosão do sentimento religioso e da busca de valores religiosos. Talvez uma das grandes surpresas para os intelectuais de esquerda de 20 anos atrás seja isto: em vez de uma sociedade cada vez mais laica, é o contrário. Neste momento, os grandes movimentos de oposição à globalização são movimentos religiosos. As grandes tendências de organização em comunidades de base são religiosas de todo tipo. Dentro disso, há um setor muito importante, fundamentalista. Nos EUA, o movimento social mais importante é o cristianismo fundamentalista. No mundo islâmico, o fundamentalismo... Não é todo o Islã, é uma minoria do Islã. O Islã, em si, não é fundamentalista, é muito tolerante, como religião. Mas, no mundo islâmico, há um setor fundamentalista importante, inclusive budistas. O que é uma contradição, budista fundamentalista, mas há, por exemplo, uma tendência muito forte no Japão.

Luiz Weis: Professor, eu gostaria de fazer uma pergunta. Eu queria voltar à questão do Estado especificamente. A questão do papel social do Estado na nova ordem mundial. Eu queria me referir a sua interpretação no seminário que foi organizado em Brasília, um pouco antes da posse do presidente Fernando Henrique, em que o senhor disse que um dos papéis do Estado, “que o Estado tem que passar da proteção do trabalhador à proteção do cidadão”. Eu queria entender isso, porque eu entendo claramente o que quer dizer o Estado proteger o trabalhador, ele protege o trabalhador do capital, ponto número 1. Eu não sei de quem o Estado deve proteger esse cidadão abstrato. Em segundo lugar, a maioria dos cidadãos ainda são trabalhadores, sobretudo, ou dependem, ou aspiram a um posto no lugar, ao um posto de trabalho. Então eu não sei se isso não desvitaliza o papel social que, segundo até pensadores liberais americanos, como Thomas Friedman, do New York Times que diz que ao contrário de não intervir, é de responsabilidade dos Estados Unidos promover uma ativa participação do Estado na vida das sociedades, na promoção social, justamente para anular os efeitos perversos da globalização.

Wilson Moherdaui: Só pegando uma carona na pergunta do Weis, gostaria só que o senhor complementasse. O papel do Estado foi fundamental na criação das grandes redes de comunicação, tanto da internet, a rede global, quanto do Minitel na França, que é a versão caipira, francesa da internet. Foram iniciativas do Estado para, de alguma forma, pulverizar o sistema de comunicação e torná-lo menos vulnerável, no caso de um ataque nuclear ou uma ecatombe qualquer. E a evolução desse processo, essas redes se desprenderam da iniciativa original dos Estados, no caso dos Estados Unidos, da França, para se transformarem em instrumento de democracia, quer dizer, pelo menos de liberação do acesso à informação para grande parte da população, que não tinha acesso à informação. Eu queria que o senhor comentasse o papel do Estado também nesse sentido.

Manuel Castells: Muito obrigado. Vamos por partes. O senhor se refere ao debate fundamental sobre como se financia a proteção social das pessoas: como cidadãos ou como trabalhadores. Eu me referia, nesse texto que citou, a algo que existe no Brasil. Os cidadãos têm direito universal à saúde, como pessoas, independentemente de sua situação trabalhista. A maior parte dos sistemas de seguridade social no mundo ainda estão baseados no posto de trabalho. Isto cria uma carga de impostos sobre a empresa que é um dos principais fatores que faz com que não se criem empregos estáveis e que se desenvolva a economia informal. Então, o debate que está proposto é como passar de uma cobertura centrada no trabalho a uma cobertura centrada nos direitos da pessoa. Por ser uma pessoa, tenho direito à saúde, tenho direito à educação, tenho direito à segurança, uma série de direitos que o Estado deve cobrir. Deve cobrir como? Através, claro, de uma carga de impostos sobre a criação de riqueza no país. Esta é uma mudança fundamental no que era o estado de bem-estar. Mas sua pergunta vai muito além. Qual é o papel do Estado em um sistema global, informacional, como o que temos? Em primeiro lugar, o primeiro papel do Estado é um papel prévio. Ou seja, pode uma sociedade, um país, uma economia funcionar, ou não, neste novo sistema global? Porque se não pode funcionar é simplesmente como entrar sem eletricidade na era industrial. Assim, o primeiro aspecto é o esforço de um Estado para participar da globalização. E aqui está a contradição. Por um lado, participar da globalização exige um esforço de modernização da economia, mobilização da sociedade e mudança institucional, o que faz que o Estado, na realidade, esteja solapando, destruindo as bases de sua autonomia. Concretamente, o capital, o dinheiro, todo o nosso dinheiro, funciona em um mercado financeiro global. A sua poupança, a minha poupança, estão voando por algum lugar, neste momento, e tanto faz que saibamos ou não, porque nos próximos três segundos estarão fazendo algo diferente. Portanto, se o mercado financeiro, onde está o capital, não é controlável pelo Estado, significa que não temos controle sobre os movimentos de capital, na realidade. Mas temos a possibilidade de criar condições para que esses movimentos de capital não fujam, não evitem uma determinada economia. Foi o que o Brasil fez nos últimos anos e é o que todo mundo está fazendo. Ao ter de homogeneizar, relativamente, as condições de funcionamento econômico, os Estados perdem a sua capacidade de intervir diretamente na política econômica. Diariamente, trocam-se, no mercado mundial, US$ 1,5 trilhão em várias moedas. Não há banco central que possa controlar essas trocas. O mercado mundial de derivados financeiros, só de derivados financeiros, é de US$ 360 trilhões, que é mais ou menos, 12 vezes o produto bruto de todo o planeta. Não é possível controlar isso, mas há possibilidade de influenciar, de navegar, de administrar. Os Estados têm, na minha opinião, duas grandes responsabilidades: uma, equipar a economia de um país em tecnologia e em recursos humanos, e já vou para sua pergunta, para ser capaz de operar nesse novo circuito; e, segundo, organizar a transição tecnológica e econômica para esse novo mundo, em que já estamos, de forma que os custos sociais sejam o menor possível.

Luiz Weis: Mas é possível fazer, é possível o Estado fazer coisas substantivas capaz de dotar a globalização de uma face humana?

Manuel Castells: É possível, e creio que há esforços em muitos países, mas tenho também de constatar, empiricamente, que, de momento, os primeiros 10 anos desse sistema novo, aumentaram a exclusão social, a desigualdade, mas é possível, como disse antes. Em que sentido é possível? É possível desenvolver programas de educação, que é o investimento fundamental produtivo e, ao mesmo tempo, o essencial para remediar a desigualdade social. A desigualdade social hoje está baseada na educação.

Heródoto Barbeiro: Por favor, Washington.

Luiz Weis: Ele ficou me devendo minha resposta.

Manuel Castells: Então, efetivamente, em relação a essa pergunta, que realmente estava ligada, a relação do Estado com o desenvolvimento tecnológico é central. Contudo, foi muito mais importante o momento do lançamento desse novo processo tecnológico na Europa, nos Estados Unidos. Nesses momentos, o que os Estados devem fazer é, mais precisamente, facilitar as condições para que o desenvolvimento tecnológico entre na sociedade através das empresas, através das forças que já existem na sociedade. Por exemplo, neste sentido, o mais importante é atuar sobre a universidade, sobre a educação, sobre o potencial científico e técnico e ajudar o desenvolvimento, através das empresas, de infra-estrutura, de telecomunicação, de desenvolvimento de softwares e de internet. Assim, o que era o papel do Estado como centro de impulsão de política tecnológica, neste momento, tem de ser, sobretudo, uma política de acompanhamento para que a sociedade e as empresas estejam preparadas para esse tipo de desenvolvimento.

Luiz Weis: Quanto menor a intervenção em sistemas de comunicação, de rede, como a internet, por exemplo, quanto menor a intervenção do Estado ou de quem quer que seja, melhor para a sociedade, é isso?

Manuel Castells: Mas tem de favorecer o desenvolvimento da internet nas escolas. O que não quer dizer, simplesmente, introduzir a internet através de computadores, mas proporcionar professores que saibam o que fazer com a internet.

Luiz Weis: Mas a diferença hoje entre o saber e o não saber aumentou muito mais, portanto a necessidade de conhecimento é muito maior, ok?

Manuel Castells: Absolutamente.

Luiz Weis: Isso não impõe sobre os Estados uma tarefa que eles não têm condições, porque é uma corrida perdida de antemão?

Manuel Castells: Não. O investimento maciço na educação não é uma corrida perdida. O essencial é retomar recursos do processo de criação de riqueza da altíssima produtividade que estamos gerando para redistribui-los na educação. Porque isso permite não só de corrigir a desigualdade como, além disso, é uma força produtiva. Pois a fonte de produtividade em nossa sociedade é a capacidade educativa dos indivíduos. Portanto, podemos, ao mesmo tempo, corrigir a desigualdade e reforçar a produtividade que, no fim, ajuda a corrigir a desigualdade. É um círculo virtuoso em um círculo vicioso.

Heródoto Barbeiro: Por favor, Washington?

Washington Novaes: O senhor no seu livro descreve em vários pontos essa questão dos governos terem que reagirem em tempo real a esses mercados financeiros globalizados, que o senhor acaba de escrever, com esses números todos, embora haja muitos números, alguns maiores, outros menores do que esses aí. Mas isso significa, então, os governos terem que reagir ao que está acontecendo no mercado naquele momento, e vários autores têm mostrado isso, que isso significa a perda dos tempos da política. A política exige tempos mais lentos, de mediação, de negociação, de discussão, então, a política perdendo o seu lugar. E vários autores, entre eles, por exemplo, professor José Eduardo Faria, têm escrito bastante sobre isso, mostrando que isso é uma ameaça enorme à democracia e ao processo democrático. Por outro lado, a página 493 do seu livro, o senhor diz que os fluxos financeiros, esses grandes capitais, tendem a assumir o controle dos impérios de mídia que influenciam os processos políticos. Então, eu lhe pergunto: onde é que vai ficar a democracia, onde é que vai ficar a possibilidade do cidadão se defender diante dessas coisas? A democracia, os tempos da democracia desaparecem, os governos reagem em tempo real ao que o capital financeiro faz. Por outro lado, esses fluxos financeiros, como diz o senhor, tendem a dominar os impérios da mídia. Ou seja, o cidadão será excluído do processo político, a julgar pelos raciocínios que o senhor desenvolve no seu livro. Então, isso que eu queria saber, onde é que fica o cidadão?

Kátia Mello: Sobre esse mesmo ponto, em relação também à integração econômica, não só as macros regiões que o senhor cita, né? Quer dizer, política e economia, como é que elas caminham? A França está saindo da esfera e não querendo entrar mais, por conta dos subsídios agrícolas. Como que isso fica? Nós vamos ter agora uma reunião no Rio de Janeiro, justamente para discutir isso. Quer dizer, unindo a pergunta dele, como é que ficam as macro regiões e como caminha a política e a economia nisso?

Manuel Castells: Na realidade, são duas perguntas relacionadas. Permita-me então, tomá-las na seqüência. Não creio que a democracia esteja em perigo, nem que a democracia desapareça. A democracia, no sentido defensivo, é fundamental e está, conforme o que se disse antes, mais reforçada do que nunca no mundo. Ou seja, as instituições democráticas com certas formas de controle. A democracia, como a definia o filósofo francês, Robert Escarpi, “é democracia quando batem à noite, na porta de sua casa, e você crê que é o leiteiro e não a polícia que vem prender você”. Isso é democracia, para começar.

Washington Novaes: Mas se o senhor me permite, o professor José Eduardo Farias que eu citei, disse: “ Neste Estado que reage em tempo real, ao cidadão só resta como face do Estado a face da segurança, a face policial”. Só esta face é que lhe resta. A face econômica é banida e a face política é banida no sentido em que ele está excluído da decisão. Porque o Estado reage em tempo real.

Manuel Castells: Certo! Por isso, eu dizia: diferenciemos a democracia. A democracia, como tal, expande-se e não corre perigo. Mas a distância entre as decisões do estado democrático e o cidadão é crescente. Não digo que seja uma inevitabilidade histórica. Isso não vem das tecnologias, vem da inadequação entre o novo sistema de globalização e de decisão em tempo real e as instituições democráticas que temos neste momento. Há uma defasagem entre instituições e funcionamento real do sistema. Por conseguinte, há essa crise e, por isso, há essa crise de legitimidade. Isso relaciona-se, realmente, com o problema que a senhora mencionou, Kátia Mello, o problema da reação entre política e economia. Se estamos em uma economia global, estamos. A globalização não é uma ideologia e não há que estar a favor ou contra. É. Então, atuamos na globalização dependendo de distintos interesses e com distintas estratégias. Há muitas formas de atuar sobre a globalização e isso importa politicamente. Então, a relação entre política e economia pode ser abordada do ponto de vista de acreditar que o mercado, pela sua própria dinâmica, soluciona tudo, e, por conseguinte, retirar o mais possível o Estado, esperando que o mercado, por sua dinâmica, estabeleça um sistema de equilíbrio, e que, por exemplo, redistribua, enfim, a riqueza criada. Ou, pelo contrário, uma capacidade política de orientar o que o mercado faz. Creio que esta é a grande diferença fundamental.

Regina Meyer: Eu queria fazer uma pergunta sobre o Estado e a cidade. O Estado produziu as possibilidades para que o capitalismo industrial se instalasse. Brasil anos 50, Juscelino [Kubitschek, presidente do Brasil entre 1956 a 1961, foi o responsável pela construção da nova capital federal - Brasília. Político desenvolvimentista, celébre pela frase "cinquenta anos em cinco"], etc. Hoje, para que a nossa sociedade realmente possa se incorporar nesse universo inelutável, da globalização - estou falando agora do Brasil e das grandes metrópoles brasileiras - é absolutamente fundamental que o grande investimento seja feito nas cidades, que haja modernização da cidade. A modernização em São Paulo se deu em faixas da cidade, onde a gente tinha edifícios com fibra ótica, sem esgoto, sem infra-estrutura. Quer dizer, que foi a contradição absoluta que as marginais viveram. Agora já parece que algumas partes já estão sanadas. Mas, de qualquer maneira, esse capital da modernização das cidades, que no caso da Europa, do mercado comum, foi um grande capital que os bancos europeus investiram, quer dizer, o grande banco que o mercado comum criou para a melhoria das condições de vida na cidade. Aqui em São Paulo, por exemplo, olhando na realidade nossa, que você conhece, veio aqui tantas vezes, nós temos que modernizar setores e ir buscar setores, cujo nível de atraso é tão extraordinário, que, simplesmente abandoná-los, compromete a nossa participação. Quer dizer, a forma do Estado atuar, no caso do Rio, São Paulo, talvez algumas outras grandes metrópoles, faz com que o Estado tenha ainda compromissos importantes de atuação e de investimento na modernização das cidades, não exclusivamente para torná-las competitivas, mas para torná-las viáveis.

Manuel Castells: Absolutamente. E, por isso, nesse sentido, completando a frase, mas aplicada à cidade, o mercado, por si só, não soluciona nem os problemas sociais, nem os ambientais, nem os políticos, nem a integração cidadã e nem sequer os problemas funcionais. Ou seja, o mercado requer instituições; o mercado requer sistemas de gestão e de participação. Nunca houve um mercado puramente selvagem. Isso é uma ideologia perigosa. Se quiser ver o exemplo mais perigoso disso, é a Rússia atual. A Rússia atual foi suscitada por gente admiradora de Pinochet, como [Yegor] Gaidar [economista e político russo, foi primeiro ministro da Rússia de junho a dezembro de 1992] , que decidiram fazer um mercado sem controle, como transição do comunismo. O resultado é uma economia destruída, uma sociedade fracionada e uma economia que funciona em sistema de troca em 50%. Voltando a São Paulo. Creio que, efetivamente, deixar que o mercado seja o único mecanismo de reestruturação de São Paulo leva a aberrações, como a criação de novas periferias, de grandes sistemas de edifícios comerciais e residenciais, separados da cidade real, ao mesmo tempo em que se abandona e se deteriora o patrimônio existente, o patrimônio urbano, Avenida Paulista, centro da cidade, etc. Por conseguinte, a idéia que observo em São Paulo é que houve uma terrível gestão urbana, nos últimos 10 anos. A capacidade de administrar é fundamental na globalização, sobretudo no local. A capacidade nacional da globalização consiste, mais precisamente, em movimentos adaptativos, mas o que chega à vida cotidiana das pessoas é a administração local. E Barcelona e São Paulo estão, ambas, na globalização, e não pode haver duas cidades mais diferentes em termos de qualidade de vida, em termos de como funciona. Barcelona nem sempre foi assim. Durante minha infância em Barcelona, era um desastre de cidade, e funcionava muito mal. E neste momento funciona bem e é capaz de administrar a globalização. Portanto, São Paulo não é uma cidade destruída pela globalização, mas por uma má administração da globalização.

Heródoto Barbeiro: Nós vamos fazer mais um intervalo. Daqui a pouco nós voltamos. Nós estamos hoje entrevistando o sociólogo espanhol, nosso convidado, doutor Manuel Castells. Até já.

Heródoto Barbeiro: Nós voltamos com nossa entrevista, hoje o nosso convidado é o sociólogo espanhol Manuel Castells. Professor, antes de passar para os nossos convidados, combinamos de fazer perguntas bem curtinhas. Eu queria fazer uma bem curtinha, para o senhor dizer para o nosso telespectador. Tem uma afirmação do senhor dizendo o seguinte: “a tecnologia determina a sociedade”. É nesta época deste capitalismo em final de século que isso acontece?

Manuel Castells: A tecnologia não determina a sociedade, nem agora e nem nunca. O que acontece é que nada do que fazemos se poderia fazer sem essa tecnologia. Mas o que fazemos depende de nossa vontade. Além disso, mais do que nunca, o que queremos e pensamos converte-se em realidade com mais força porque tecnologia é uma tecnologia de informação. Portanto, está instalada no nosso cérebro, não nas máquinas. As máquinas processam o nosso cérebro. Por isso, temos, ao mesmo tempo, extraordinários efeitos positivos e extraordinários problemas porque todos somos anjos e demônios. Através da tecnologia temos, ao mesmo tempo, criatividade extraordinária cultural, musical, e pornografia na internet.

Gildo Marçal Brandão: Eu confesso que fiquei impressionado com o seu livro. Não só pela extensão dele, devem ser mais de 1500 páginas na edição brasileira, com a tentativa de explicar e integrar uma massa de informações e tentar dar uma solução teórica para essa realidade do mundo contemporâneo. Eu também achei muito simpático o que o senhor polemizasse com várias teses que estão no dia-a-dia, embora no dia-a-dia mais ou menos, digamos assim, identificadas com o que se chama de pensamento neoliberal. O senhor insiste no papel do Estado, insiste na questão da sociedade de mercado e não da economia de mercado pura e simplesmente, quer dizer, nas instituições, no papel das instituições. Mas eu fiquei preocupado e é essa a minha questão, no seguinte - é claro que talvez no segundo volume o senhor responda isso - mas se nós temos uma situação em que o capital é global, o trabalho é local, existe um capitalismo global, não existe uma classe capitalista global, a solução é, a contestação a esse sistema é só local e defensiva. Ora, se esses atores locais estão diante de um ator ou de um sistema internacional, o fato deles ficarem só no plano local não os condena à derrota, e nesse sentido o trabalhador e o cidadão não teriam vez nesse sistema?

Manuel Castells: Você expôs muito bem a contradição atual. Daí nasce a extraordinária insegurança dos cidadãos no mundo todo e a crise de legitimidade política. Porque, entre o que as pessoas vêem como problema e o que podem entender do que fazem seus governos, seus partidos, etc, há uma distância enorme. Eu não tenho solução para esse problema. Eu constato o que se está observando e tento ver, então, que embriões de reconstrução, de controle político e de orientação política, estão ocorrendo. Não o que eu penso, nem sequer o que eu quero, mas o que está acontecendo. Estão acontecendo diversas coisas ao mesmo tempo, em termos de reconstrução. O local é, primeiro, uma trincheira de resistência, um organismo de resistência. Mas, também, tenta mudar as condições de administração do global no local, mediante programas municipais, programas urbanos, programas de desenvolvimento cultural, programas de previdência social. Há múltiplos exemplos no mundo. Segundo, os Estados podem ter políticas diferentes e, portanto, impor maior controle aos processos de globalização. Exemplo: a Finlândia é a primeira sociedade de informação no mundo, neste momento, segundo os indicadores. Ao mesmo tempo, é uma sociedade social democrata, com cobertura universal dos direitos sociais, alta produtividade e competitividade de suas empresas, democracia participativa na internet. É um modelo diferente do Silicon Valley. Se devemos economizar expressões como “neoliberalismo”, por exemplo, todos me dizem: “ No Brasil, há um governo neoliberal”. Não. Um governo neoliberal, no sentido estrito do termo, é um governo que pensa que o mercado vai fazer tudo. Não é um governo que faz cobertura universal da saúde, como quer Hilary Clinton [(1947-), política estadunidense do Partido Democrata, senadora pelo estado de Nova York desde 2001. Foi primeira dama dos EUA, entre 1993 a 2001, na condição de esposa do presidente Bill Clinton, é pré-candidata à presidência dos EUA em 2008] não pode fazer; não é um governo que faz reforma agrária; não é um governo que faz política habitacional; não é um governo que aumenta enormemente a educação. Esse não é um governo neoliberal. Então, o estar manejando a globalização não é o neoliberalismo. O neoliberalismo é dizer que o mercado arrumará tudo. Aí sim, há um problema e há muitas situações em muitos países onde isto acontece. Outro embrião de reconstrução de sentido: os movimentos sociais, que chamo pró-ativos, que propõem diferentes projetos, diferentes projetos de vida, como é o movimento feminista, o movimento das mulheres, em geral, como é o movimento ecológico. Enfim, a conexão de movimentos de defesa, como os sindicatos, como os movimentos de trabalhadores, que não desaparecem e não vão desaparecer, mas que têm de começar a articular suas estratégias, por um lado, em nível global, e, por outro lado, incorporando as novas formas de trabalho produtivo e as novas formas de organização em rede, sem o que serão, simplesmente, um bastião de resistência, mas não uma fonte de mudança.

Ricardo Abramovay: Professor Castells, o seu livro, no terceiro capítulo, sobre a economia informacional e o processo de globalização, ele, que aliás é uma virtude do livro como um todo, quer dizer, de recuperar a nossa história recente, não para traçar leis gerais, mas para nos fornecer certos horizontes e possibilidades de desenvolvimento. Assim como o senhor tem insistido nessa entrevista me parece, de maneira com a qual eu concordo, que os dados estão lançados, mas o resultado não está antevisto e não está definido.

Manuel Castells: Correto.

Ricardo Abramovay: Nesse sentido, da mesma maneira que o problema da cidade é um problema de gestão e não um problema da globalização, eu fiquei com a sensação que com relação à América Latina, no capítulo que o senhor fala da economia informacional, enfim, esse capítulo da economia informacional, o processo de globalização, a América Latina acabou se dando muito mal no processo de globalização, com, talvez a exceção chilena e em alguma medida, exceção mexicana e alguns setores do Brasil. Mas globalmente, sobretudo, do ponto de vista social, há um contraste nítido entre a situação latino-americana e a situação asiática. Claro, que nós não somos o Quarto Mundo, como é a África subsaariana, nós não estamos em situação de desintegração como está a Rússia, mas nós não conseguimos nos engatar de maneira dinâmica no processo de globalização de maneira que esse dinamismo beneficiasse amplas massas da população. E quando a gente vai examinar as razões pelas quais isso aconteceu, não é por falta de poupança interna, não é por falta de elites internas. Eu fiquei com a imagem que é, sobretudo, pela maneira como o Brasil se submeteu aos organismos – Brasil não – a América Latina se submeteu aos organismos financeiros internacionais, inclusive há um elogio ao governo brasileiro em 1994, pelo fato de ter conseguido a façanha histórica de negociar diretamente com os bancos sem se submeter ao FMI. Embora o seu livro não seja normativo, esta não submissão ao FMI aparece como um caminho a ser seguido no sentido não da recuperação da soberania nacional do velho estilo, mas de compatibilizar a inserção na ordem global com uma economia capaz de promover coesão social.

Manuel Castells: O problema está muito bem exposto. Primeiro, sobre os dados, esse volume, esse livro, tal como está, foi terminado em 1996. A situação mudou um pouco, desde então. Melhorou, substancialmente, no Brasil, de 1996 a 1998; melhorou, substancialmente, na Argentina, nesse período. E, em geral, na América Latina, houve uma integração mais negociada no processo de globalização. Portanto, há processos em marcha. Ao mesmo tempo, em 1997, 1998, houve a grande crise da Ásia e, em boa medida, o naufrágio do modelo do Pacífico Asiático centrado no Estado desenvolvimentista. Mas a pergunta central que você coloca, por que, por exemplo, Brasil ou Argentina, entram em uma fase recessiva no final de 1998 e durante parte de 1999, embora eu creia que o Brasil começou a crescer outra vez, está crescendo 1%, neste momento. Mas eu creio que aí o problema vem, fundamentalmente, de como funciona o mercado financeiro global. O mercado financeiro global funciona só em parte por critérios econômicos. Funciona também, e cada vez mais, pelo que chamo de turbulências de informação. O que quer dizer turbulência de informação? Que o que dizem certos personagens, ou como avaliam certas empresas, para países, ou para governos, geram grandes movimentos de psicologia coletiva nos mercados financeiros que são incontroláveis. Criaram nos mercados financeiros uma entidade, um planeta, que se chama mercados emergentes, em que estão em pé de igualdade Rússia, Indonésia, Brasil, Coréia. Qualquer coisa que ocorra em um desses países, sem que nada tenha a ver com a economia, tem impacto sobre os outros países. Por conseguinte, tem impacto sobre o Brasil; indiretamente, tem impacto sobre a Argentina. Assim, o grande problema da América Latina é que, ao integrar-se cada vez mais na globalização, torna-se cada vez mais vulnerável a esse tipo de movimento. Portanto, é preciso saber navegar. Se comparo o que ocorreu na Indonésia, o que ocorreu na Malásia, no Sudeste Asiático com o que ocorreu no Brasil e na Argentina, creio que a América Latina está navegando melhor nesses mares turbulentos da globalização. O Fundo Monetário Internacional, eu o chamo de “Fetiche Monetário Internacional”, porque, na verdade, não dão dinheiro, dão a promessa de uma linha de crédito para que os investidores recuperem a confiança. É ideologia, é informação o que fazem. No caso da Ásia, como foi demonstrado empiricamente, agravaram a crise financeira, na Indonésia, provocaram o pânico e a economia naufragou. No caso do Brasil, houve algo diferente. O Brasil não aceitou todos os termos da negociação e o que aconteceu no Brasil é que, pela primeira vez, o FMI aceitou algo que restabelece mais a sua função econômica, que é a intervenção preventiva. Ou seja, os países que têm uma política de ajuste podem ter a possibilidade de uma linha de crédito imediata para prevenir turbulências de informação, que geram pânicos financeiros. Isso é novo e foi a conseqüência da negociação com o Brasil. Portanto, há uma mudança.

Luiz Weis: Gostaria de fazer uma pergunta. Há um aspecto do seu livro pelo menos no primeiro volume dessa trilogia ao qual tivemos acesso, que me chamou muito a atenção, foi o fato que é muito raro para tipo de trabalho dessa envergadura, dessa ambição intelectual, o senhor não cita entre os autores o velho Marx. Eu gostaria de saber: o senhor acha que o marxismo é inútil como instrumento de compreender o mundo atual que o senhor descreve? E ele é obsoleto como instrumento de transformação?[?]: As categorias básicas do livro são modo de produção e modo de desenvolvimento.[?]: Já que é para partir para o ataque pessoal, eu gostaria que o senhor se identificasse politicamente.[?]: Ninguém está partindo para o ataque pessoal![?]: Brincadeira.

Manuel Castells: Uma pergunta perfeitamente legítima. Neste livro, não cito Marx e não cito muita gente que fez coisas muito importantes, inclusive recentes.

Luiz Weis: Mas é atípico, o senhor vai concordar.

Manuel Castells: E advirto que só cito o que utilizo diretamente. Não faço uma revisão bibliográfica. Não é um livro sobre livros.

Heródoto Barbeiro: Mas vamos às perguntas.

Manuel Castells: É um livro sobre o mundo em que vivemos. Então, nesse sentido, é significativo não que não cite, mas que não utilize Marx. Por que não o cito? Porque não me serve, efetivamente, para este mundo. Serve-me para uma certa construção teórica, como a do modo de desenvolvimento, como a do modo de produção, que tem matriz marxista. Eu fui marxista, não sou antimarxista, como todos os marxistas franceses que logo se tornaram pós-modernos e antimarxistas. Para mim, o marxismo é um instrumento e não uma religião. E não uma política, porque a política marxista é terrível.

Luiz Weis: Mas é um instrumento obsoleto ou ainda válido como um instrumento de transformação?

Manuel Castells: É válido para alguns problemas sociais; é válido para entender o modo de produção, é válido para entender exploração. Não é válido para entender o que é uma economia informacional e para entender o que é o atual processo de globalização.

Washington Novaes: Se o senhor me permite voltar a essa polarização entre o social e o político e a globalização. Porque embora o senhor diga que o senhor descreve, que o senhor não defende, aqui na página 502, o senhor escreve o seguinte: “na verdade, contradizendo profecias apocalípticas de análises simplistas, há mais empregos e uma proporção maior de pessoas com idade para o trabalho, empregadas, que em qualquer outra época da história. Quem não parar um pouco, vai tomar isto como uma verdade. Agora, acontece o seguinte, realmente há mais empregos que em qualquer outra época da história, mas há mais população que em qualquer outra época da história. Proporcionalmente isso não se sustenta.

Manuel Castells: Não é correto. Empiricamente não é correto.

Washington Novaes: O senhor, a proporção de pessoas sem emprego hoje...

Manuel Castells: É muito maior do que nunca, porque as mulheres não eram força de trabalho paga. Costuma-se esquecer disso.

Washington Novaes: Mas não é só por isso, é porque a população também cresceu extraordinariamente...

Manuel Castells: A proporção não muda com...

Washington Novaes: E a proporção, na verdade, não é essa. Além disso, volto ao relatório do qual o senhor é consultor. O senhor tem hoje no mundo, segundo esse relatório, mais de 1 bilhão de pessoas que ganham menos de um dólar por dia.

Manuel Castells: Mas isso não tem nada a ver com terem emprego ou não. Não é tudo de uma vez: falta de emprego, pobreza... E lhe digo mais: há 40% de pessoas no mundo que ganham menos de dois dólares por dia. Eu participei desse informe, portanto, não é porque não tenham trabalho, não é porque não tenham trabalho, é porque têm mau trabalho e mal pago. É um problema diferente e, analiticamente, fundamental.

Washington Novaes: Não é só. Eu também trabalhei para esse relatório e queria dizer o seguinte. Há um outro pressuposto no seu livro que é o seguinte: a tecnologia não é neutra, a tecnologia está sempre a serviço, atendendo a determinadas necessidades de determinados modelos. Então ela pode ser perversa, ela pode perfeitamente ser perversa, e no caso social e político hoje, ela tem extraordinários efeitos perversos.

Gildo Marçal Brandão: Na verdade, na tese da tecnologia neutra, eu acho que ele reverte a Marx. Porque o problema é a utilização que se faz na sociedade, não é a tecnologia em si que pode ter efeitos positivos ou negativos, é anti-Marcuse [referência a Herbert Marcuse, influente sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano], digamos assim. Me pareceu que o livro é anti-Marcuse. A idéia...

Manuel Castells: A tecnologia não é perversa; aumenta as tendências perversas da sociedade ou as tendências positivas da sociedade. As duas coisas.[?]: Bem ou mal, ela potencializa tudo.

Kátia Mello: Em relação a isso, eu até gostaria que o senhor comentasse. Estamos aí com a situação dos grampos telefônicos e estamos pensando também até onde vai a privacidade do indivíduo. Eu queria que o senhor associasse até outros casos, como os casos de pedofilia, os casos de meninos que montam bombas caseiras, como foi o caso dos Estados Unidos, e vão nas escolas e levam suas bombas.[?]: Deixa eu pegar uma carona, mas aí é uma carona mesmo...

Manuel Castells: Vamos por partes. Não há privacidades.

Kátia Mello: O senhor diz ser um anarquista, quer dizer, não há privacidade. Deve haver censura?

Manuel Castells: É um dado. Não há privacidade.

Kátia Mello: Deve haver censura, não deve haver censura?

Manuel Castells: Não pode haver censura, não é possível censurar. Há capacidade tecnológica de superar a censura.

Regina Meyer: Nós não devemos lutar para que haja mais privacidade?

Manuel Castells: Não sei.

Kátia Mello: Não tem limite a tecnologia, o desenvolvimento tecnológico?

Manuel Castells: Primeiro...[?]: [interrompendo Manuel Castells] Mas como não há censura? O senhor me desculpe, a Arábia Saudita não tem internet.

Manuel Castells: Exato. Só há possibilidade de... Não estão ligados à internet, estão fora da rede. Primeiro, por grandes problemas tecnológicos de censura. Mas, segundo, porque nos Estados Unidos, o centro da internet, há uma decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos de que é anticonstitucional estabelecer qualquer tipo de controle sobre a internet porque há o direito constitucional aos caos. É uma expressão interessante.

Ricardo Abramovay: Tudo que é crime fora da internet, é crime na internet também.

Manuel Castells: Claro!

Ricardo Abramovay: Portanto a sociedade tem que se defender com as suas armas.

Manuel Castells: Mas, uma vez que seja... Quando há algo na internet, como pedofolia, pode-se perseguir, depois de ocorrido. Não é que eu esteja de acordo com que haja pornografia na internet. Só quis dizer que a internet expressa o mesmo que há na sociedade. Se há pedofolia na sociedade, haverá pedofolia na internet. A internet não é necessária para o que, hoje em dia, é um comércio de turismo sexual global, em que há centenas de milhares de crianças exploradas sexualmente por operadoras de turismo, do mundo todo, que vão a Tailândia, Costa Rica, Brasil, para esse negócio. Mas isso não é a tecnologia. É o tipo de sociedade. É que criamos uma sociedade em que a violação de crianças é um valor de mercado.

Kátia Mello: O senhor não acha que deve ser repensada a ética, por exemplo, no caso da biotecnologia, da clonagem, de tudo isso?

Manuel Castells: Claro. Aí, sim, exponho um problema com certo alarme. Agora, já temos a capacidade, não é o futuro, é já, a capacidade de manipular geneticamente a vida. Se não criarmos uma sociedade muito mais responsável, no nível dos indivíduos, não só das instituições, haverá usos terríveis da manipulação genética. Mas não vamos deter isso, controlando a engenharia genética, porque ela vai se desenvolver de todas as maneiras. Isso expõe o desafio de que tipo de educação, de que tipo e moralidade, de que tipo de instituições temos na sociedade.

Luiz Weis: E de que tipo do controle do capital que está por trás disso, ou não?

Manuel Castells: Mas é que o capitalismo e os perversos não são a mesma coisa?

Luiz Weis: Não, não é o mesmo, mas é o mesmo capital.

Manuel Castells: Eu sou bastante crítico do capital incontrolado, mas nem todos os males do mundo são apenas do capital.

Luiz Weis: Não estou dizendo isso.

Regina Meyer: Castells eu queria fazer uma pergunta. Sobre a questão da violência, que é uma questão que te chamou atenção, no Rio de Janeiro você fez umas observações sobre violência. E na entrevista que você deu a uma revista essa semana, você fala do futuro da cidade. Que a cidade será um conjunto de guetos ou de nichos segregados e etc. Quer dizer, um futuro tenebroso que você descreve, né? Futuro sombrio para a cidade. E hoje nós estamos vivendo uma situação, onde a violência é muito grande, nós temos poucos elementos, poucos conceitos, poucas formas de pensar a violência, especialmente nas cidades e temos uma novidade do ponto de vista de organização da sociedade, que é uma proximidade física vinculada a uma distância social, que é o modelo que nós estamos vivendo, especialmente no Brasil, acho que algumas outras cidades americanas ainda têm isso. A violência é dada, muitas vezes se explica de maneira simplista, através do desemprego, pobreza e etc. No teu livro, quando você descreve o futuro das cidades, eu acho que a violência começa a se explicar por esse futuro que você descreve.

Manuel Castells: De acordo, sob a condição de insistir que não descrevo o futuro, mas o presente das cidades.

Regina Meyer: Está certo, mas ali você... Foi na revista que você... Uma entrevista que você deu.

Manuel Castells: Então, para mim, o que parece ser o problema, o maior paradoxo urbano que estamos vivendo, é que chegamos ao mundo urbano. Chegamos a um mundo em que a maioria das pessoas, pela primeira vez na história, vive em cidades. No Brasil, são 80%. Ao mesmo tempo, pode ser um mundo urbano sem cidades. Isto é, um mundo urbano em que se perde a cidade como sistema de convivência, como cultura, como instituição de gestão local, fragmentada em mercados e tribos identidárias.

Regina Meyer: Urbano, como contraponto de cidade?

Manuel Castells: Exato. Isso é o que estou vendo.

[?]: Isso é o pior dos mundos possíveis.

Manuel Castells: Então, como se opor a isso? Através de coesão social, gerada através das instituições públicas e de gestão de um novo tipo de cidade. Às vezes, acredito que, em São Paulo, não se está medindo a verdadeira São Paulo. O mesmo eu diria de outras cidades brasileiras. Todo mundo me fala do extraordinário dinamismo das cidades do interior de São Paulo: de Araraquara, de Campinas, etc. E se pensássemos que, na realidade, não estamos em uma megacidade, como São Paulo – é um velho conceito – mas em um sistema de núcleo urbanos articulados em uma grande região metropolitana, em que, na realidade, as pessoas vivem e trabalham nesses núcleos, mas se articulam entre eles. O problema então...

Washington Novaes: Mas esses núcleos do interior de São Paulo repetem o modelo de São Paulo. Campinas tem os mesmos problemas...

Manuel Castells: Isso mesmo.

Gildo Marçal Brandão: [?] políticas para operar essa megacidade.

Manuel Castells: Exato. Então o problema é que a dinâmica espacial pode ser corrigida com base na integração de diferentes núcleos. Mas o senhor tem razão: os problemas sociais se reproduzem nesse sentido. E se reproduzem pelas causas estruturais de pobreza, pela incapacidade de gestão, pela incapacidade de integração política e por algo mais, que é a emergência, pela primeira vez na história, de uma economia criminal global, organizada sistemicamente como forma de conexão perversa dos excluídos, em que a droga e a violência se combinam.

Heródoto Barbeiro: Doutor Castells, nós estamos chegando ao final do nosso programa, eu gostaria de fazer uma pergunta ao senhor, até para fechar alguma coisa que foi dita aqui, em que foi discutido um pouco de marxismo, um pouco a respeito de capitalismo, acho que alguma coisa ficou um pouco no ar. Eu gostaria de saber do senhor o seguinte: no chamado capitalismo informacional, afinal de contas, existe ou não existe luta de classes? Existe ou não existe a mais-valia, ou essas coisas pertencem a um capitalismo do passado?

Manuel Castells: Existe luta, mas não de classes. Existe geração de valor, porém, não através apenas, nem fundamentalmente, de capitalistas individuais, mas de uma rede de fluxo de capital, que, conjuntamente, como se fosse um autômato incontrolado, organiza o conjunto das economias de todos os países, com base em transações nesse mercado financeiro, sem referência a qualquer valor social. A contradição não é mais entre capital e trabalho, mas entre autômato financeiro e os valores da humanidade que se estão perdendo.

Heródoto Barbeiro: E onde está essa contradição que é inerente ao próprio sistema capitalista?

Manuel Castells: É inerente a contradição, não entre capital e trabalho, e sim, entre forma de apropriação de valor e experiência humana. A contradição fundamental não é que um patrão tire dinheiro de um trabalhador, mas que toda nossa vida seja organizada com base nas diferentes taxas de financiamento em um mercado financeiro global.

Luiz Weis: Mas, dada a crescente desigualdade entre esses dois atores sociais básicos, o capital, não o trabalho, mas a sociedade. O cenário de uma globalização, de um capitalismo informacional com face humana é uma quimera, é uma utopia?

Gildo Marçal Brandão: É uma sociedade matriz.

Manuel Castells: Não, porque existem projetos políticos que tentam negociar, que tentam reconstruir. Poucos, mas existem. Creio que onde há dominação, há resistência, e onde há exploração, há capacidade de reorganização da sociedade. Essa é a história humana e temos que ver como se desenvolve, nos próximos anos.

Luiz Weis: Sim, mas a resistência que existe hoje é uma resistência medievalista, uma recusa ao capitalismo liminar.

Manuel Castells: Não só. O movimento ecológico não é medievalista, o movimento feminista não é medievalista e as tentativas de articulação entre política do Estado e política de informação, como na Finlândia e em alguns países da América Latina, de alguma forma, tampouco são medievalistas. Há embriões, mas não sabemos quais serão seus resultados, porque a História não se escreve de antemão. A História se vive, se faz e, depois, chegamos nós, os sociólogos, e a interpretamos.

Heródoto Barbeiro: Doutor Castells, nós queremos, então, agradecer sua gentileza, sua participação conosco. Muito obrigado pela participação, pelo debate com nossos convidados. Nós queremos também agradecer a todos que participaram conosco nesse programa Roda Viva.