Dilma lembrou-me, esta semana, de uma piada que li na velha revista Esquire.
Alguém dizia para Nikita Kruschev na ONU: seu alfaiate deveria ser mandado para
a Sibéria. No caso de Dilma não é quem faz a roupa, mas a agenda, que deveria
passar um tempo na Sibéria. No auge da crise econômica, condenada por um rombo
no orçamento que pode ser de R$ 50 bilhões, desemprego em alta, lojas fechando,
carros oficiais sem gasolina, ela decide ir à Suécia reafirmar uma compra
milionária de caças.
Compreendo que a Aeronáutica precise dos caças e que a opção pela
tecnologia sueca tenha sido acertada. Sou, entretanto, de um tempo em que os
presidentes analisavam o momento e, em função dele, definiam sua agendas. Qual
o sentido, no auge dessa crise, de acenar, de novo, com a compra dos caças de
US$ 4,5 bilhões? Não queriam provocar, creio. Talvez tenham pensado que esse
gesto de Dilma, posando ao lado dos caças milionários, iria elevar o ânimo da
galera no Brasil.
Montada no maior
escândalo mundial, gastando US$ 10 mil com a diária, Dilma foi mais longe no
seu delírio: deu a entender que tudo foi obra de um homem só, Eduardo Cunha.
“Lamento que isso aconteça com um brasileiro.” “No meu governo não há
corrupção.” São algumas de suas frases lapidares.
Os fatos diários
mostram ex-ministros encrencados com propina (como é o caso de Edson Lobão,
Paulo Bernardo e Gleisi Hoffmann), ministros atuais investigados pelo Supremo
(Edinho Silva e Aloizio Mercadante), uma Petrobras arruinada, milhões de
pessoas nas ruas protestando contra a corrupção. Isso não é com ela, nem com
seu governo. É raro um momento histórico em que a verdade dos fatos seja
espancada com tanto vigor e cinismo.
Às vezes, a verdade
sofre grandes abalos, como mostra Isaiah Berlin em seu ensaio sobre o
romantismo alemão do século XVIII. Naquele momento, tratava-se da afirmação de
uma verdade subjetiva, uma espécie de inversão, de dentro para fora. Berlin
aponta esse momento como um dos decisivos no pensamento ocidental. Os próprios
modelos humanos se deslocavam. Saía de cena, o sábio que alcança a felicidade
ou a virtude pela compreensão. E entrava o herói trágico que busca realizar a
si próprio, a qualquer custo, sem se importar com as consequências. Para
Berlin, isso era uma virada quase tão grande como a produzida pelas ideias de
Maquiavel, para quem os valores políticos não são apenas divergentes, mas podem
ser contraditórios, com os valores cristãos.
O que acontece hoje,
no entanto, não me parece uma versão decadente dessas teorias que abalaram o
pensamento ocidental. Os franceses descrevem a cara de pau dos políticos com a
expressão langue de bois. E a definem como discursos cortados da realidade com
o objetivo de manipular o interlocutor. O que acontece, na verdade, me parece
um pouco mais com a descrição da linguagem infantil de Jean Piaget. Ele notou
que, até uma certa idade, a linguagem das crianças era egocêntrica: falavam sem
se preocupar em serem entendidas, falavam para si próprias.
A visão de que a luta
política é uma sucessão de narrativas — eu crio a minha, você cria a sua e
vamos em frente — acaba dando margem a uma conversa infantil e egocêntrica. Não
importa se o outro acredita, essa é a minha verdade. Vou continuar repetindo-a,
independentemente dos fatos. Eles são secundários, pois tenho uma narrativa.
Num país onde
política e delinquência andam juntas, a atmosfera não está apenas coalhada de
versões, mas de álibis. Para entendê-los, valho-me da experiência de repórter
policial e não da política. Nesse campo, as negativas costumam ser radicais,
como o criminoso que diz que estava fora de si, o corpo desobedeceu a mente.
Paulo Maluf diz que
não tem conta na Suíça, a assinatura não é sua. Eduardo Cunha diz que apenas
seu advogado pode dizer se tem ou não contas na Suíça. Dilma diz que no seu
governo não há corrupção, Lula que não tinha intimidade com o pecuarista José
Carlos Bumlai, a quem deu acesso livre ao seu gabinete.
Na verdade, não estão
falando para a sociedade, mas para a polícia. Sua linguagem pode me parecer
egocêntrica, pelos padrões de uma conversa adulta. Mas é a única que conseguem
falar nesse momento. Os suspeitos seguem em cena e a vida do país se
degradando, na economia com o desemprego, no meio ambiente com El Niño. Mais de
uma centena de cidades do Rio Grande do Sul em emergência. Seca no Sudeste e no
Nordeste. Em Minas, aumentou em 77% o número de incêndios em área de
preservação ambiental. Três grandes metrópoles — São Paulo, Rio e Belo
Horizonte — vão ter menos água ainda. Falar de El Niño nesse universo político
é arriscar o álibi uníssono; mas esse filho não é meu. Se as versões são
livres, que tal esta, que o poeta Affonso Romano dizia, quando jovem pregador
em Minas: “Arrependei-vos, ó raça de víboras, o juízo final está próximo”.