Uma juíza vendeu sentença a um traficante. Outra manteve presa ilegalmente uma menina de 15 anos, que foi brutalmente torturada pelos demais presos. Que punição receberam?
O caso da juíza Olga Regina de Souza
Santiago, do Tribunal de Justiça da Bahia, é de dar medo em qualquer brasileiro
que imagina estar sob a proteção da lei. A juíza é a personagem central de uma
história de negação absoluta da justiça — não se trata de injustiça,
exatamente, mas de recusa do Estado em submeter um de seus agentes às leis que
valem para o resto da população, prática que costuma ser encontrada apenas nos
países mais totalitários do mundo.
O que houve? Houve que a doutora Olga, em
pleno exercício de sua função, recebeu dinheiro de um traficante de drogas
colombiano como pagamento de propina para deixá-lo fora da cadeia — mas não
foi, nem será, punida por isso. A juíza vinha sendo investigada desde o
distante 2007; agora, após quase dez anos de “processo disciplinar” e com base
em todas as provas possíveis, de gravações de conversas a comprovantes de
transferência bancária, o Conselho Nacional de Justiça declarou, enfim, que ela
é culpada de corrupção passiva e outros crimes — e como única punição para isso
deve se aposentar, com vencimentos integrais.
O apavorante é que não houve
nenhum favor especial para a doutora Olga, longe disso; apenas se aplicou o que
a Justiça brasileira, desde 2005, considera ser a lei. É ou não para assustar?
Vamos falar as coisas como elas são:
uma criança de 7 anos, ao ouvir uma história como essa, sabe que o final está
errado. Como a Justiça pode decidir que alguém cometeu um crime e, exatamente
ao mesmo tempo, não mandar para a cadeia quem praticou o crime? Por mais
respeito que se tenha pelos argumentos que tentam explicar tecnicamente a situação,
sobretudo quando apresentados pelos maiores cérebros jurídicos do país, está
acima da moral comum entender que possa haver algo correto na recusa de aplicar
as leis criminais a um cidadão pelo simples fato de que ele é um juiz de
direito. Pois foi precisamente isso que aconteceu.
Qualquer outra pessoa, tendo
feito o que a juíza Olga fez, seria condenada a até doze anos de prisão, pena
agravada de um terço, pelo artigo 317 do Código Penal brasileiro; mas o máximo
de castigo que se aplica a ela é que, sendo criminosa, deixe de ser juíza ao
mesmo tempo. E mais: continuará recebendo o salário inteiro, pelo resto da vida
(no seu caso, não se sabe exatamente qual será o custo disso para o
contribuinte, que não cometeu crime algum, mas pouco não vai ser; já podem ir
contando com uns 40 000 reais por mês, pelo menos).
O pior de tudo é que não se
trata de uma exceção; essa é a regra, e, se a regra é essa, está claro que o
aparelho da Justiça brasileira parou de funcionar como um sistema lógico. Não
pode existir lógica quando o CNJ, o órgão de controle mais elevado do Poder
Judiciário, aceita tomar decisões dementes. O resto, para 99% dos seres humanos
normais, é pura tapeação — de novo, com todo o respeito.
Quantos magistrados brasileiros
estariam dispostos a admitir que existe alguma coisa insuportavelmente errada
num sistema em que acontecem fatos como esse? O que temos aqui é uma tragédia
permanente. Quase um mês antes da decisão sobre Olga Santiago, o mesmo CNJ
resolveu que outra juíza, Clarice Maria de Andrade, do Pará, deve ficar dois
anos afastada das funções por ter se recusado a atender, também em 2007, a um
pedido para retirar de uma cela do interior do estado, onde estava presa
ilegalmente, uma adolescente com 15 anos de idade.
Durante mais de vinte dias, a menina foi brutalmente torturada pelos demais
presos, até, enfim, ser retirada dali — e, por causa disso, a juíza Clarice
recebeu a aposentadoria compulsória em 2010. Achou que era uma injustiça.
Recorreu da decisão, foi desculpada pelo Supremo Tribunal Federal e agora
recebe do CNJ a determinação de ficar afastada por dois anos — ou seja, nem
aposentada ela acabou sendo. Mas ainda assim não está bom: a doutora Clarice
vai recorrer da decisão, pois não aceita nem mesmo esse curto afastamento do
cargo.
A Associação dos Magistrados Brasileiros manifestou-se publicamente a
seu favor. É essa a realidade. Simplesmente não há, para os juízes, sentença
contrária, pois mesmo quando são condenados a decisão, na prática, é a favor —
e ainda assim eles recorrem.
O balanço final é um horror. De 2005 para cá, o
CNJ examinou 100 casos de magistrados e todo tipo de acusação: corrupção,
principalmente, sob a forma de venda de sentenças, mas também homicídio
qualificado, extorsão, peculato, abuso sexual, e por aí afora. Cerca de 30% dos
casos acabaram em absolvição; nos restantes, a punição mais grave foi a
aposentadoria compulsória ou, então, a aplicação de penas como “disponibilidade
do cargo”, “censura”, ou “advertência”.
Há um ou outro caso, raríssimo, de
prisão, quando o processo corre fora do nível administrativo — e isso é tudo. O
contribuinte gasta dezenas de milhões com essas aposentadorias. Não há um
cálculo exato de quanto, mas é caro — em nenhum estado brasileiro a média
salarial dos magistrados é inferior a 30 000 reais por mês, e nos estados que
pagam mais ela passa dos 50 000 mensais. É só fazer as contas.
É aí, nos ganhos dos juízes — além de
procuradores e promotores de Justiça —, que está outra aberração em estado
integral. A Justiça brasileira gasta cerca de 80 bilhões de reais por ano, 90%
dos quais vão direto para a folha de pagamento, que, pelas últimas contas
oficiais, sustenta mais de 450 000 funcionários.
A qualidade do serviço que
presta é bem conhecida por todos. O gasto, porém, é um dos maiores do planeta.
Cada um dos 17 500 juízes brasileiros custa em média 46 000 reais por mês, ou
mais de meio milhão por ano — em que outra atividade o custo médio do trabalho
chega a alturas parecidas? Para os desembargadores à frente de tribunais de
Justiça, essa média passa dos 60 000 por mês, e ainda assim estamos longe do
pior.
É comum, nas Justiças estaduais e na federal, salários mensais de 100
000, ou mais — o senador Renan Calheiros, que quer examinar melhor o assunto,
cita muito o valor de 170 000, e há casos comprovados de 200 000 ou mais.
Como
pode dar certo uma coisa dessas? Nossos juízes, que se dizem cada vez mais
preocupados com a justiça social, parecem não perceber que estão sendo
beneficiados por uma das situações de concentração de renda mais espetaculares
do mundo — resultado da distribuição pura, simples e direta de dinheiro público
a uma categoria de funcionários do Estado. Faz sentido, numa sociedade como a
do Brasil?
Não faz, mas é proibido
tocar no assunto. Quando se lembram casos como os das juízas Olga ou Clarice, a
reação imediata dos defensores do sistema é perguntar: “Mas por que tocar
nessas histórias justo agora? O que há por trás disso? A quem interessa o
assunto?”. Da mesma maneira, criticar as “dez medidas anticorrupção” tornou-se
uma blasfêmia.
Espalha-se a ideia de que ações como a de Renan em relação aos
salários, e as de outros políticos que pensam numa lei de responsabilidades com
sanções mais severas para o abuso de autoridade, não valem nada, porque são
feitas com más intenções; o que eles propõem pode até ser correto, mas seus
objetivos finais são suspeitos. É tudo uma conspiração para “abafar a
Lava-Jato”. É culpa de Lula e da esquerda. É culpa do governo e da direita, e
por aí se vai. Mas o fato é que dois mais dois são quatro — e, se o senador diz
que são quatro, paciência; a conta não passa a ser cinco só porque é ele quem
está dizendo que são quatro.
Não é essa a realidade que os militantes do
Judiciário intocável aceitam; querem tudo exatamente como está. O resultado é,
e continuará sendo, a situação aqui descrita.