quinta-feira, 19 de junho de 2014

CORAÇÕES E MENTES

Os doutrinadores do lulo-petismo construíram um estratégia política que lhes garantiu a vitória nas eleições presidenciais por três vezes sucessivas. Aplicando conceitos extraídos do leninismo renovado (basicamente nas doutrinas de Gramsci), erigiram um conjunto de procedimentos, seguidos com a disciplina stalinista, que lhes desse a hegemonia em todos os campos da vida social, cultural, econômica e política. 

O projeto é simples na sua concepção, porém de complexa execução quando posto em prática. Ganhar ou perder eleições nunca foi o objetivo maior a ser alcançado. Tanto isso é verdade que ao longo dos últimos trinta anos o PT marchou sozinho – ou com alguns fiéis partidos satélites – em disputas de toda ordem. Buscaram, antes, consolidar um nicho que ancorasse seus movimentos no futuro, que ganhar mandatos a qualquer preço em eventuais disputas. Consolidado, passou a admitir então qualquer tipo de composição com outras forças sociais e políticas, desde que eles, petistas, detivessem o controle e o comando último.

Para que este projeto de larga duração obtivesse êxito seria necessária, todavia, a conquista dos corações e das mentes, não só das massas populares quanto, também, de artistas, professores, intelectuais e outras lideranças políticas, empresariais, eclesiásticas e militares. Mais que as mentes, aliás, o fundamental seria conquistar os corações, em toda sua extensa significação e valor simbólico. Laços baseados no afeto são mais duradouros que aqueles forjados pela fria inteligência. David Hume, o notável racionalista inglês, já reconhecia a razão como escrava das paixões. Nenhum argumento, por exemplo, nem o mais consistente, levaria um torcedor apaixonado a renegar seu time, quando derrotado, pelas cores de outro, mesmo que este seja persistentemente vitorioso.

O desespero da cúpula dirigente do petismo com as manifestações críticas nos estádios de futebol e nas ruas tem, pois, razão de ser. O povo brasileiro denota claramente que está com preguiça de dona Dilma e sua corte de patifes – Sarney, Collor, Calheiros, Zé Dirceu, Genoíno, Delúbio etc. Do mais graduado ao mais reles, a relação é enciclopédica, quase infinita. Quem quer que tenha sua própria lista de políticos corruptos poderá constatar: todos com Dilma, sem tirar nem por, em qualquer estado da federação. 

Em sua volúpia hegemônica os petistas açambarcaram, sem pudor, de caquéticos e anacrônicos coronéis nordestinos, a modernosos tecnocratas gatunos, como os que abundam na Petrobrás e outras empresas públicas. Até Maluf, ícone inconteste e notório da velhacaria e cinismo nacional, antigamente tratado pelo PT a tapas, agora andam aos beijos, sôfregos, nas enxovias, próximos dos cofres. Enlouquecidos pela soberba, os petistas julgaram que o afeto popular lhes perdoaria qualquer crime. Mas o filtro de tolerância que beneficiou o partido durante tantos anos se esgarçou. Perderam.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A RELAÇÃO PROFESSOR/ALUNO (Zygmunt Bauman)

O grande escritor argentino Jorge Luis Borges, falando das origens de um de seus extraordinários contos – “A busca de Averroe” – disse que tinha a intenção de “narrar o processo de uma derrota”, de um fracasso; como o de um teólogo à procura da prova definitiva da existência de Deus; de um alquimista à procura da pedra filosofal; de um aficionado por tecnologia em busca da trissecção do ângulo; de um matemático em busca da prova da quadratura do círculo. Mas depois conclui que seria “mais poético o caso de um homem que se propõe um fim que não é vedado aos outros, mas somente a ele”.
Averroe, o grande filósofo muçulmano que se dedicou a traduzir a Poética de Aristóteles, “encerrado no âmbito do Islã, nunca pôde saber o significado das palavras tragédia e comédia”. Averroe parecia, de fato, destinado ao fracasso, pois queria “imaginar o que é um drama sem ter jamais suspeitado o que é um teatro”. (Cf. em O Aleph, editado pela Cia das Letras, em 2008).
O caso escolhido por Borges revela-se efetivamente “mais poético” como tema para uma esplêndida história narrada por um grande autor. Mas, de um ponto de vista sociológico – menos inspirado, mais prosaico e banal – ele parece também mais trivial. Somente algumas poucas almas intrépidas saem em busca da solução dos problemas da geometria clássica ou da pedra filosofal; mas todos já sentimos na própria pele e repetimos diariamente a experiência de tentar compreender algo que os outros entendem sem dificuldade. Isso acontece conosco, no século XXI, mais do que com nossos antepassados em outros tempos. Basta lembrar um exemplo: a tentativa de se comunicar com os filhos, para quem os tem, ou com os pais, para quem ainda não os perdeu.
A incompreensão recíproca entre gerações, entre os “velhos” e os “jovens”, e a desconfiança que isso gera têm uma longa história. Seus sintomas podem ser encontrados facilmente em tempos bem antigos. Mas a desconfiança intergeracional assumiu importância muito maior na era moderna, marcada por mudanças permanentes, rápidas e profundas das condições de vida. A aceleração radical do ritmo das mudanças, característica dos tempos modernos, permitiu que se percebesse no curso de uma única vida humana que “as coisas mudam” e “não são mais como antes”; trata-se de uma constatação que sugere uma associação (ou nexo causal) entre as mudanças da condição humana e a sucessão das gerações.
A partir do advento da modernidade e em todo o seu percurso, as gerações que vêm ao mundo em fases diferentes da sua contínua transformação tentem a divergir nitidamente na avaliação das condições de que partilham. Os filhos em geral enfrentam um mundo drasticamente diferente daquele que seus pais, guiados pelos educadores, aprenderam a considerar um padrão de “normalidade”. Além disso, nunca poderão conhecer esse mundo já desaparecido em que os pais viveram quando eram jovens.
Aquilo que, para algumas gerações, pode parecer “natural” – da série “as coisas são assim”, “normalmente, as coisas são feitas assim” ou “deveriam ser feitas assim” – para outras pode ser uma aberração: um afastamento da norma, um estado de coisas extravagantes e talvez até irracional, ilegítimo, injusto, abominável. Aquilo que, para algumas gerações, pode parecer uma condição confortável e familiar, pois permite o uso de habilidades e rotinas aprendidas e dominadas, poderia parecer estranha e desagradável a outras. Nas situações em que alguns se sentem desconfortáveis, confusos e perdidos, outros poderiam se sentir como um peixe dentro d’água.
As diferenças de percepção tornaram-se hoje tão multidimensionais que, ao contrário dos tempos pré-modernos, as gerações mais velhas não atribuem mais aos jovens o papel de “adultos em miniatura” ou de “aspirantes a adulto” – de “seres ainda não completamente maduros, mas destinados a amadurecer” (“a amadurecer até serem como nós”). Não se espera mais, nem se presume, que os jovens “estão se preparando para ser adultos como nós”: eles são vistos como uma espécie muito diferente de pessoa, destinada a permanecer diferente “de nós” por toda a vida. As diferenças entre “nós” (os velhos) e “eles” (os jovens) não são mais um problema temporário que vai se resolver e evaporar quando os mais novos tiverem (inevitavelmente) que encarar as coisas da vida.
O resultado é que as velhas e as novas gerações tendem a se olhar reciprocamente com um misto de incompreensão e desconfiança. Os mais velhos temem que esses recém-chegados ao mundo estejam prontos a arruinar e destruir a acolhedora, familiar e decorosa “normalidade” que eles, os pais, construíram com esforço e conservam com amoroso cuidado; os jovens, ao contrário, sentem um forte impulso de endireitar os que os antigos estragaram e desequilibraram. Nem uns nem outros estão satisfeitos (pelo menos não completamente) com o modo como as coisas vão e com a direção que seu mundo parece tomar, acusando-se mutuamente por essa insatisfação.
Em dois números consecutivos, uma prestigiosa revista semanal inglesa publicou há pouco duas acusações bastante diferentes uma da outra: um colunista acusou os jovens de serem “bovinos, preguiçosos, depravados e imprestáveis”; e um leitor responde irado que a juventude supostamente indolente e indiferente obtém, na realidade “ótimos resultados acadêmicos” e demonstra “preocupação com os estragos que os adultos fizeram”. Aqui, como em tantas outras discussões semelhantes, trata-se de uma divergência de avaliação e de pontos de vista impregnados de subjetivismo. Em casos assim, é difícil resolver “com objetividade” a controvérsia.
Ann-Sophie, de 20 anos, estudante da Copenhagen Business School, deu as seguintes respostas a um questionário organizado por Fleming Wisler: “Não quero ser muito controlada por minha vida. Não quero sacrificar tudo à carreira... A coisa mais importante é ficar bem... Ninguém quer permanecer preso muito tempo ao mesmo trabalho”. Em outras palavras: mantenham abertas todas as opções.Não jurem fidelidade “até que a morte nos separe” a nada ou a ninguém. O mundo está cheio de possibilidades maravilhosas, atraentes, promissoras; seria loucura perdê-las por estar de pés e mãos atados em compromissos irrevogáveis.
Não é surpreendente que, na lista das capacidades fundamentais que os jovens são chamados a dominar (e desejam fazê-lo, impacientes), surfar supere amplamente os conceitos cada vez mais obsoletos de “indagar” e “aprofundar”. Como observou Katie Baldo, orientadora pedagógica da Cooperstown Middle School no estado de Nova York: “os adolescentes perdem alguns importantes sinais sociais porque estão muito concentrados em seus iPods, celulares ou videogames. Na sala de aula, percebo continuamente que não conseguem cumprimentar nem estabelecer contato visual”.
Fazer contato visual ou permitir a aproximação física de um outro ser humano é sinônimo de desperdício, pois equivale a dedicar algum tempo, escasso e precioso, a “aprofundar”: decisão que poderia interromper ou impedir o surfe em tantas outras superfícies convidativas.
Na vida de contínua emergência, as relações virtuais levam a melhor facilmente sobre a “coisa real”. O mundo off-line convida os jovens a estar em constante movimento. Mas solicitações deste tipo de pouco adiantariam se não fosse a capacidade, baseada na eletrônica, de multiplicar os encontros interindividuais, transformando cada um deles num ato rápido, superficial, de tipo “use e jogue fora”. Relações virtuais são equipadas com a tecla “delete” e com “antispam”, mecanismos que protegem das conseqüências incômodas (e sobretudo dispendiosas em termos de tempo das interações mais profundas.
É impossível não lembrar o personagem de Chance (interpretado por Peter Sellers no filme de Kal Ashby, Além do Jardim, de 1979). Na rua movimentada em que se encontra de repente, recém-saído de um prolongado tête-à-tête com “o mundo que se vê na TV”, Chance tenta inutilmente afastar um perturbador grupo de freiras de seu campo de visão com a ajuda de um controle remoto.
Para os jovens, a principal atração do mundo virtual deriva da ausência de contradições e objetivos contrastantes que infestam a vida off-line. O mundo on-line, ao contrário de sua alternativa off-line, torna possível pensar na infinita multiplicação de contatos como algo plausível e factível. Isso acontece pelo enfraquecimento dos laços – em nítido contraste com o mundo off-line, orientado para a tentativa constante de reforçar os laços, limitando muito o número de contatos e aprofundando cada um deles.
Essa é uma verdadeira vantagem para homens e mulheres sempre atormentados pela eventualidade (apenas eventualidade) de que cada passo possa se revelar um erro; ou pela eventualidade (apenas eventualidade) de que seja tarde demais para anular as perdas que ele possa causar. Vem daí a aversão a qualquer coisa “a longo prazo”, seja o planejamento da própria vida, sejam os compromissos assumidos com outros seres vivos.
Uma publicidade recente, apelando, claro, para os valores da jovem geração, anunciava a chegada de um rímel que “prometia solenemente durar 24 horas” com o seguinte comentário: “Estamos falando de uma relação séria. Basta um toque e seus belos cílios desafiarão chuva,suor, umidade e lágrimas. Para retirá-lo, basta um pouco de água morna”. Vinte e quatro horas já soam como um “compromisso sério”. Porém, mesmo este compromisso deixaria de ser atraente se não fosse fácil remover seus vestígios.
Qualquer que seja a escolha feita, ela sempre lembrará mais o “leve manto” de um dos fundadores da sociologia moderna, Max Weber – o manto que pode ser colocado sobre os ombros e despido à vontade e a qualquer momento – do que a “crosta de aço” que oferece uma eficiente e durável proteção contra turbulências, mas dificulta os momentos de quem a usa e limita muito o espaço do livre-arbítrio (Cf. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, editado pela Cia das Letras em 2005).
O que importa aos jovens é conservar a capacidade de recriar a “identidade” e a “rede” a cada vez que isso se fizer necessário ou esteja prestes a sê-lo. A preocupação de nossos antepassados com a identificação é substituída pela reidentificação. As identidades devem ser descartáveis; uma identidade insatisfatória, não satisfatória o bastante ou que revele sua idade avançada deve ser fácil de abandonar. Talvez a biodegradabilidade seja o atributo mais desejado da identidade real.
A capacidade interativa da internet é feita sob medida para essa nova necessidade. É a quantidade das conexões, mais que sua qualidade, que faz a diferença entre as possibilidades de sucesso ou fracasso. Ela permite manter-se informado sobre a “última moda” – os sucessos mais ouvidos, as camisetas da moda, os mais recentes e comentados festivais, festas e eventos com pessoas famosas. Ao mesmo tempo, ajuda a atualizar os conteúdos, a redistribuir os traços característicos no retrato do próprio Eu e a apagar rapidamente os traços do passado, os conteúdos e características já vergonhosamente ultrapassados.
No conjunto, ela facilita muito, solicita, ou melhor, impõe o esforço perene de reinvenção numa medida impensável na vida off-line. Esta é, provavelmente, uma das principais explicações para o tempo que a “geração eletrônica” dedica ao universo virtual – um tempo que cresce sempre à custa do tempo vivido no “mundo real”.
As referências dos principais conceitos que enquadram e mapeiam a Lebenswelt, o mundo em que vivem e sobrevivem os jovens, o mundo experimentado pessoalmente, têm sido transplantadas do mundo off-line de modo gradua, mais incessante, para o mundo on-line. Entre eles, destacam-se conceitos como “contatos”, “encontros”, “reuniões”, “comunicar”, “comunidade” ou “amizade” – todos referentes às relações interpessoais e aos laços sociais. Umas das principais conseqüências da nova localização desses referentes é que os laços e os compromissos sociais correntes são percebidos mais como fotos instantâneas batidas no âmbito de um processo de negociação contínua do que como condições estáveis destinadas a durar um tempo indeterminado.
No entanto, essa metáfora não me parece totalmente satisfatória: embora “instantâneas”, as fotos ainda exibem uma tendência a durar mais que os laços e compromissos mediados pela eletrônica. A palavra “instantâneo” pertence ao vocabulário da impressão e do papel fotográfico, que só aceita uma imagem, enquanto, no caso dos laços eletrônicos, atos como apagar e reescrever ou sobrescrever, inconcebíveis no caso dos negativos em celulóide e do papel fotográfico, são opções particularmente importantes e muito utilizadas – são, aliás, os únicos atributos indeléveis dos laços mediados pela eletrônica.
Mas é bom lembrar também que grande parte da presente geração de jovens jamais experimentou grandes privações, como uma depressão econômica prolongada, desprovida de perspectivas e com desemprego em massa. Eles nasceram e cresceram num mundo em que podiam se abrigar sob guarda-chuvas socialmente produzidos e administrados, à prova de ventos e tempestades, que pareciam estar ali desde sempre para protegê-los do mau tempo, da chuva fria e dos ventos gelados. Um mundo em que cada manhã prometia um dia mais ensolarado que o anterior e mais rico de aventuras agradáveis (Cf. Ortega y Gasset).
Enquanto escrevo estas linhas, as nuvens se acumulam sobre esse mundo. A feliz, confiante e promissora condição que os jovens acabaram por considerar como o estado “natural” do mundo pode estar desmoronando. Uma depressão econômica (que, como dão a entender alguns observadores, ameaça se revelar tão ou mais profunda que as crises que a geração dos pais sofreu na juventude), talvez esteja à espreita na primeira esquina. Por isso, é cedo demais para compreender de que modo as visões de mundo, e os comportamentos profundamente arraigados dos jovens de hoje, irão se adequar ao mundo que virá, e de que maneira esse mundo irá se amoldar a suas expectativas profundas.

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OBSERVAÇÃO: Este texto foi publicado pela primeira vez em 2009.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Linguagem e pornografia política

A crua linguagem popular, quando transcrita e publicada, pode violar normas editoriais; pior, ainda, quando os brados soam retumbantes nos ouvidos, trazendo junto ao eco as imagens da ira e de repúdio dos que lançam injúrias aos poderosos do momento, tal qual vem ocorrendo nas ruas e, principalmente, nos grandes estádios brasileiros onde se disputa a copa do mundo. Governistas no Brasil pretendem, com tal pretexto, cultivar agora um gosto refinado pelo qual nunca mantiveram maior apreço. Em palavras mais contundentes, os petistas e seus aliados querem implantar a censura no Brasil.

Reverbera nas profundezas dos cránios os apodos pornográficos com os quais o povo vem brindando as autoridades do país. E isso dói. Dói pela força da verdade que contém. Em reação à vontade popular, os petistas querem, enfim, retirar do cidadão seu direito mais elementar: o de espernear e de dirigir aos governantes as palavras mais duras possíveis, como reação ao habitual comportamento irresponsável, leviano e corrupto observado na última década, desde que Lula ascendeu ao governo da república. 
É, portanto, um direito, sim, do povo, o de protestar, que adquire legitimidade pelo insuportável da situação vivida pela maioria. 

Josemaría Escrivá é um dos santos mais recentes do panteão católico. Em sua obra - Caminhos - no Ponto 850, o príncipe da Igreja, dirigindo-se a um discípulo, aconselha-lhe um curioso, insólito, meio de reação contra aqueles que nos infernizam:

"Que conversas! Que baixeza e que... nojo! E tens de conviver com eles, no escritório, na universidade, no consultório..., no mundo. Se pedes por favor que se calem, ficam caçoando de ti. Se fazes má cara, insistem. Se te vais embora, continuam. A solução é esta: primeiro, pedir a Deus por eles e desagravar; depois..., ir de frente, varonilmente, e empregar O APOSTOLADO DOS PALAVRÕES (grifo meu). Quando te vir, hei de dizer-te ao ouvido um bom repertório".

Não é exclusividade de Josemaría Escrivá tal compreensão dos limites do suportável. Outro santo homem - Thomas Morus, mártir da Igreja, beatificado por Leão XIII, em 1886, e canonizado por Pio XI, em 1935 - questionou Lutero duramente, em sua célebre obra "Responsio ad Lutherum". Além de usar os mais chocantes palavrões disponíveis, repete-os e, ainda, os floreia. A justificativa dada por ele ao emprego da linguagem obscena foi: responder com puras contestações eruditas à baixeza de Lutero, seria conceder-lhe um honra imerecida, motivo que o levou a usar os seguintes termos:

"Enquanto continuardes a dizer essas desavergonhadas mentiras, a outros será PERMITIDO QUE JOGUEM DE VOLTA NA VOSSA BOCA CHEIA DE MERDA (grifo meu, em tradução livre), verdadeiro depósito de toda merda, a sujeira e merda inteira que vossa execrável podridão vomitou, e esvaziar todos os esgotos e privadas na vossa coroa despida da dignidade da coroa sacerdotal, em prejuízo da qual decidistes bancar o palhaço" (Cf. The complete works of St. Thomas More, ed. Jonh M. Headley, vol. V, New Haven: Yale University Press, 1969, pag. 181).

Palavrões, enfim, frequentam de há muito a literatura, a poesia e, até, a teologia, conforme se pode ver.
No Canto XX, Inferno, Dante tripudia sobre os trapaceiros que negociavam cargos públicos, ou roubaram os seus amos, sendo por isso condenados a ficar mergulhados em piche fervente, na quinta vala, sob a severa vigilância de Barbarícia e seus demônios (Zé Dirceu que se cuide; seu futuro será deplorável). A partir de imagem tão asquerosa, o ilustre florentino constrói refinados versos elaborando o que há de mais sórdido:
(...)
"À sestra os dez então fizeram rosto;
Nos dentes cada qual mostra primeiro,
Por mofa a língua ao cabo já disposto;

E ele trompa fazia do traseiro".

A inusitada descrição de Barbarícia (peidorreiro infame), em surpreendente e sublime linguagem  não é repetida em outros momentos das literaturas erótica ou da fescenina exceto, talvez, com Verlaine (vide Para ser caluniado), e certamente nas 1001 Noites. Veja-se o caso de L'art de péter, de Pierre Hurtaut, para quem "peidar seria uma arte que, bem praticada, se tornaria uma arma social", publicado meio milênio após a Comédia, em 1751. Vale destacar que nos tempos de Hurtaut ainda não se conhecia o elevador, local hoje de costumeiros atentados terroristas olfativos.

Ora, se tais licenças linguísticas são permitidas a sofisticados pensadores, por qual razão censuraríamos o comum do povo no seu exercício legítimo de injuriar ou insultar os poderosos, estes sim, pornográficos habituais em suas falas, atitudes e comportamentos?

Estamos testemunhando um fenômeno de massa que, por incrível que pareça, encontrou o tom certo para fazer os mandarins que nos mal governam passar recibo sobre o que ouviram em alto e bom som. A partir de agora Dilma, Lula e companhia entenderão corretamente o profundo sentimento de insatisfação popular que vai se apoderando do país, de norte a sul, de leste a oeste.

A conduta popular seria fruto da razão e fundada em base científica? Claro que não! A virtude não se relaciona com a ciência. Em sua costumeira irreverência, Lacan afirma que não há episteme da areté. As massas, melhor que nós - pessoas que somos eventualmente devotadas a complexos discursos - acertou bem no meio do alvo com seu Hai Kai picaresco, ironia levada ao paroxismo nas ruas e nos templos futebolísticos, redutos da impessoalidade e do anonimato dissolventes, que reduzem os indivíduos à condição de malta.

Gente como Lula, Dilma e os demais que os acompanham não se ofendem quando chamados de ladrões, corruptos ou incompetentes. Acostumados com as sujeiras, e desejosos delas no seu inconsciente, só se sentem atingidos com alusões anais. Aliás, observados bem de perto, o que mais predomina na elite petista que subjuga o Brasil são os traços caracterológicos de submissão e agressão autoritárias, propensão a pensar de acordo com categorias rígidas, inclinação a valorizar aspectos místicos no destino individual etc. A vontade obsessiva de impor uma sistematização aos outros, vistos como resistentes, é peculiar aos possuidores de viés psicótico próprio da fixação na fase anal, ao longo do processo de construção da personalidade.

Dilma e as vaias



Dona Dilma recebeu cartão vermelho; todo o mundo viu e ouviu. Não só lá, é bom não esquecer, mas em diferentes lugares onde alguma multidão se reuniu para assistir os jogos da seleção brasileira. As imagens divulgadas a respeito mostraram homens e mulheres apelando para fescenina injúria, aos berros, à atual presidente da república. Os maus modos sempre praticados e estimulados pelo lulo-petismo, ao que parece, fizeram escola. Tremenda façanha que pode ser debitada, também, a dona Dilma que ainda outro dia pontificou, com desassombro, que nas eleições era permitido fazer o diabo. Pois aí está. As incivilidades costumeiras protagonizadas pelos expoentes do PT (Lula à frente, como não podia deixar de ser), impregnaram o sentimento popular: eis aí parcela das mais consistentes da herança maldita que essa gente vai deixar, aliás, já deixou.

O petismo não se incomoda com as críticas feitas a seu peculiar modo de governar. As denúncias de suas trapaças, corrupção e incompetência generalizadas são respondidas com desdém, isso quando a turma se dá ao trabalho de responder. Tais críticas, elaboradas por lideranças políticas, pensadores, artistas e outros intelectuais encontra-os fechados em copas, na obtusa convicção de que aqueles que os questionam não possuem legitimidade para fazê-las. O petismo, de fato, é impermeável à voz da razão. Os exemplos são colossais. Dariam para preencher um volume do tamanho de uma lista telefônica, daquelas antigas. Seus maiorais, quando pegados com a boca na botija, e tal como o demonstra o caso do mensalão, são considerados por eles quase que santos, apesar de criminosos: companheiros inocentes – acreditam - devotados à nobre causa de transformar o Brasil numa filial combinada de Cuba e Venezuela, estas repúblicas dignas dos mais imundos yahoos (Swift nada sabia do Brasil, mas nos profetizou há trezentos anos).

Impossibilitado o diálogo sobre os fatos e os rumos futuros, o povo brasileiro tem apelado para o argumento último dos desesperados: as vaias nos campos de futebol. Um típico fenômeno de massa que faz o PT sangrar na veia da verdade. Muito diferente dos Black Blocs, arruaceiros gestados nas entranhas do petismo para intimidar o povo. Este só tem sua voz para ferir, no centro do alvo, o ponto fraco destes totalitários que nos infelicitam. As massas, agora sem a canga dos que se julgam seus donos traduzem, numa crua expressão dirigida à cúpula governista, a repulsa às sujeiras que viraram costume na última década. Uma compreensão da natureza humana notável, digna de um psicanalista. Os poderosos, que nunca se tocavam com as elaboradas construções simbólicas dos críticos intelectualizados (aquele nhem-nhem-nhem típico de tucanos), sofrem doravante com a linguagem direta do homem comum. Com suas impublicáveis alusões indecentes, o povo demonstra que aprendeu bem a lição: a pornografia política não é mais monopólio do PT.