sexta-feira, 12 de março de 2010

"Repudiamos todas as servidões"... (Nelson Ascher)

"Os ataques infames ao Demétrio Magnoli são uma afronta ao espírito democrático do debate, ao livre mercado de idéias no qual elas se impõem (provisoriamente) por seu conteúdo de verdade e coerência interna, e não na base do grito, da claque ou da torcida organizada; eles constituem, ademais, outra frente de batalha, aquela cujo objetivo é o de calar os dissidentes e quem discorde. Através de Demétrio, nós todos estamos sendo agredidos e/ou ameaçados.

É notório que Demétrio e eu temos discordâncias claras acerca do conflito no Oriente Médio, sobre suas causas e possíveis soluções; trocamos já palavras duras nas páginas da Folha quando éramos seus articulistas, e eu garanto que nunca nenhum de nós teve de consultar previamente qualquer instância do jornal ou de sua direção, submeter-se a qualquer censura antecipada ou cumprir determinações “superiores”: ambos expressamos abertamente e sem mediações nossas mútuas diferenças - e é assim que deve ser, pois ambos pensamos independentemente de ordens ou determinações de patrões, chefes, líderes, partidos, governos, grupos de pressão etc.
Não posso, ademais, deixar de observar que os próprios termos usados no ataque infame do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e da Federação Nacional dos Jornalistas ao Demétrio seguem de muito perto aqueles usados contra mim num abaixo-assinado de 2003 que, capitaneado pela intelectualha esquerdofrênica USP-Unicampiana, pretendia tolher minha liberdade de expressão. Como aconteceu então comigo, estou certo de que os ataques ao Demétrio provam que ele está de fato fazendo seu trabalho honesto e competente de pensador independente e, com isso, tornando-se um empecilho para os que querem nos aprisionar num pensamento único, monocórdio, o dos atuais donos de um poder que toma características menos democráticas e legítimas a cada dia que passa, bem como dos asseclas, apaniguados e bajuladores (pagos ou não) desses.

O fato é que Demétrio está totalmente correto no debate a respeito das cotas raciais e da atual tentativa de racializar a cidadania brasileira, uma investida que carrega em si os germes da guerra civil e mesmo do genocídio, como vimos recentemente nos Bálcãs e em Ruanda. Esta é, hoje em dia e não só no Brasil, a nova frente de batalha daqueles que nunca desistiram de tentar derrubar pilares centrais da ordem democrática e moderna, como os direitos e responsabilidades individuais. Trata-se de uma loucura, mas, como se diz, de uma loucura com método. Sua proposta delirantemente utópica é a de fazer algum tipo de justiça histórica, só que uma justiça informada por uma historiografia enviesada e deturpada, bem como por recortes inviáveis e inaceitáveis da cidadania.

Nas mãos desses delinqüentes, a história, que é sempre uma hipótese em construção e ininterruptamente debatida a respeito do passado, converte-se em desculpa para dividir cidadãos constitucionalmente iguais em grupos artificiais aos quais, paralelamente, atribui-se uma vitimização ou uma culpabilidade ancestral. X% de melanina a mais na pele, e a pessoa deixa de ser um indivíduo igual aos demais em seus direitos e obrigações, um cidadão como qualquer outro, passando a se tornar sobretudo o representante de um grupo que, oficialmente tido como vitimizado, merece reparações; Y% a mais de melanina torna outro indivíduo o membro de um grupo marcado por culpas e crimes que ele pessoalmente jamais perpetrou, obrigando-o a pagar de alguma forma por isso.

Vale a pena lembrar que um dos objetivos centrais da democracia sempre foi o de acabar com a hierarquização social fundamentada em privilégios ou obrigações de nascença. Cria-se, assim, uma nova aristocracia de vítimas hereditárias e uma nova servidão cujas vítimas são indivíduos que, reduzidos apenas a membros de um grupo, carregam uma culpa igualmente hereditária, tudo isso fundamentado numa leitura parcial, mal-informada e delinqüente, de uma leitura altamente seletiva e anacrônica das hipóteses de alguns historiadores. Assim como, séculos a fio, os judeus foram considerados coletivamente culpados pela morte de Jesus Cristo, todos os doravante classificados como brancos serão eternamente culpados pela escravização de todos aqueles doravante classificados como negros em nosso país. Não haverá mais cidadãos nem haverá mais brasileiros, só os novos privilegiados e os novos responsáveis.

É preciso apontar a primeira falha, a falha central desse uso pseudojurídico da história: a escravidão foi, durante milênios e até há cerca de dois séculos, a regra, não a exceção, no mundo inteiro. Populações de todo o tipo foram escravizadas pelos mais variados agentes. A própria palavra “escravo” se refere originalmente aos eslavos cativos (ancestrais dos atuais russos, poloneses, iugoslavos etc.) que eram vendidos, na Idade Média, nos mercados de Bizâncio e do Oriente Médio muçulmano. Todas as civilizações antigas ou medievais se valeram do trabalho escravo, incluindo as pré-colombianas da Meso-América, que, antes da chegada dos europeus, faziam prisioneiros de guerra entre as demais tribos ou civilizações locais não apenas para submetê-los ao trabalho forçado, mas também para sacrificá-los no alto de suas pirâmides e, em seguida, consumir canibalisticamente sua carne.

Europeus escravizaram europeus, asiáticos escravizaram asiáticos, americanos pré-colombianos escravizaram americanos pré-colombianos e africanos escravizaram africanos. Ainda nos séculos 18 e 19, piratas do norte da África capturavam regularmente navios europeus ou americanos e vendiam suas tripulações e passageiros nos seus mercados de escravos. O tráfico transatlântico, do qual participaram membros das mais diversas etnias, línguas e confissões, foi, sem dúvida, uma das maiores empreitadas escravistas, mas o tráfico negreiro rumo às terras islâmicas não foi menor e perdurou por mais tempo. Hoje mesmo, em muitos pontos do planeta, ainda há milhões de escravos, inclusive na África, em países como o Sudão e a Mauritânia.

E, se estamos falando de escravidão, não podemos deixar de mencionar os dois movimentos totalitários que a recriaram em partes do mundo que já haviam se livrado dessa instituição: o nazismo e o comunismo. Ambos escravizaram parcelas imensas das populações sobre as quais reinaram ou, em alguns casos, ainda reinam, como na Coréia do Norte e Cuba, país caribenho cuja população pertence ao estado ditatorial marxista e à família de capitães-de-mato que o chefia. É curioso, portanto, ver aqueles que ou fazem a apologia ou simplesmente fecham os olhos à escravização de toda a população cubana culparem pessoas inocentes pela escravização de gente morta há mais de um século. Acontece que não foi a esquerda que iniciou a campanha contra o trabalho escravo, mas sim europeus e americanos, em primeira lugar cristãos ingleses como William Wilbeforce.

De resto, é um anacronismo óbvio aplicar categorias normativas atuais (e, como podemos ver a respeito de Cuba, categorias nem sempre implementadas ou respeitadas mesmo hoje) a uma outra era histórica. Qualquer pessoa minimamente alfabetizada em história sabe disso, vale dizer, sabe que os homens e mulheres do passado pensavam, agiam e viviam de maneira diferente. Legislar retroativamente com vistas a compensar ações que não eram, nem tinham como ser consideradas criminosas no passado equivale, entre outras coisas, a um sentimento totalitário de prepotência, à idéia de que, de alguma maneira, o passado pode ser alterado, corrigido, punido ou compensado. Os escravos que existiram e morreram, bem como os senhores ou traficantes, fossem eles africanos, brasileiros, árabes, otomanos, bizantinos, chineses, mongóis, persas, aztecas etc., que também viveram e já morreram estão além e a salvo da justiça ou injustiça dos viventes.

Quem conheça a história e ame seu estudo sabe que ela é, em boa parte, uma procissão de horrores. Como queria Stephen Dedalus, o herói de James Joyce, ela é um pesadelo do qual nos cabe acordar. Ao contrário do que querem os que tentam nos entorpecer com estórias mal-contadas acerca do passado, a ação dos homens e mulheres vivos deve se dirigir a melhorar o presente e o futuro. A única - insatisfatória, mas nem por isso menos difícil ou urgente - forma de que dispomos de fazer não a inalcançável justiça histórica, mas, sim, uma espécie de justiça poética às inumeráveis vítimas do passado é garantindo a erradicação de qualquer forma de escravidão no nosso mundo atual e lutando para assegurar a plena igualdade de direitos (acompanhados de suas respectivas responsabilidades) a todos os indivíduos vivos ou por nascer.
A liberdade de expressão que os candidatos a censor fazem de tudo para tolher é uma das principais ferramentas desse esforço. Sem ela, que permitiu, por exemplo, todas as campanhas abolicionistas na Europa, Estados Unidos e Brasil, é bem provável que a escravidão teria perdurado por mais tempo. A bem dizer, uma das liberdades confiscadas ao escravo é a de se expressar.

Quem quer que tente impedir a livre expressão das opiniões alheias não está, de modo algum, compensando ou remediando a escravidão passada, mas, sim, instaurando a futura. A escravidão mais perigosa e perniciosa não é aquela abolida há um século ou mais, mas, antes, aquela que já existe e aquela que segue nos ameaçando com seu retorno iminente em cada ato ou ação que corrói e enfraquece a democracia. Por sorte, e ao contrário do que sucede com a escravidão do passado, esta é uma contra a qual todos os homens de bem podem -e devem-lutar."

Publicado em 12-03-2010 no blog do Reinaldo Azevedo

quinta-feira, 11 de março de 2010

Revoluções Tecnológicas: impactos sociais

“Todo aquele que tem familiaridade com as categorias das ciências sociais e que conheça, ainda que superficialmente, a história do desenvolvimento social deve compreender claramente que as conseqüências da segunda revolução industrial se manifestarão não apenas na formação econômica da sociedade, mas também em suas formações social e política, o que significa dizer que irão se manifestar não apenas na base mas também em sua superestrutura.Da maneira como é utilizado aqui, o termo “formação” deve ser interpretado como a totalidade de relações sociais definidas entre seres humanos (portanto sociais, econômicas, políticas etc.), que formam determinado sistema. Isto significa que elas estão de tal modo ligadas entre si que a mudança num dos elementos do sistema produz mudanças nos outros elementos. Há, além disso, um elemento neste sistema (ou, dito de outra maneira, uma parte das relações a que nos referimos), cujas mudanças determinam a base da dinâmica dos demais elementos. No caso da formação econômica da sociedade, este papel é desempenhado pelas forças produtivas, e no caso da formação social, relas relações de classe características.

Quando falamos em “classe social” nos referimos à totalidade de seres humanos inter-relacionados no interior de uma dada formação econômica, antes de tudo em função de uma mesma relação de propriedade com as forças produtivas (o que eqüivale a dizer que ou são proprietários das forças produtivas ou carecem dessa propriedade). É na relação entre as diferentes classes sociais que vemos a força motriz da formação social das sociedades baseadas em classes. É neste sentido que nos perguntamos sobre as implicações sociais da atual revolução industrial: o que acontecerá na esfera das relações de classe?Evidentemente, não se trata de uma pergunta isolada; a resposta a ela está estreitamente vinculada à análise das mudanças que se produzem na formação econômica da sociedade, já que estas mudanças desempenham sempre um papel dominante. Apesar disso, tal pergunta pode e deve estar sujeita a uma análise relativamente independente.

Os prognósticos das mudanças na estrutura de classes da sociedade informática – que é o que nos interessa principalmente aqui – dependem sobretudo da análise do futuro do trabalho assalariado e das possíveis e diversas formas de ocupação que o substituirão. Baseio minhas conclusões no pressuposto de que o trabalho, no sentido tradicional da palavra, desaparecerá gradualmente (isto é, o trabalho que consiste no emprego da própria capacidade em troca de um determinado salário ou seu equivalente sob a forma do preço recebido pelo fruto de trabalho de alguém). Este desaparecimento será uma conseqüência dos avanços da automação e da robotização produzidos pela revolução da microeletrônica. Para evitar erros de interpretação, devemos salientar que a eliminação do trabalho (no sentido tradicional da palavra), não significa o desaparecimento da atividade humana, que pode adquirir a forma das mais diversas ocupações. Este desaparecimento não é possível por vários motivos que examinaremos em seguida.

Quem quisesse polemizar com as minhas próximas afirmações deveria começar por refutar, ou pelo menos questionar profundamente, esta premissa do meu raciocínio, tanto mais que sua conseqüência lógica é a tese do desaparecimento da classe trabalhadora, o que modificaria totalmente a idéia da realidade social que conhecemos hoje.À primeira vista, essas afirmações parecem escandalosas e nos induzem a pensar na ficção científica. Contudo, isto se deve exclusivamente às características conservadoras do nosso pensamento, quando não – para piorar as coisas – ao mecanismo da dissonância cognitiva, um mecanismo que torna a mente humana impermeável às verdades novas nos casos de conflito entre a ideologia que se defendeu até aqui e os fatos que a refutam, conflito que não pode ser resolvido recorrendo-se a argumentos racionais. Não estamos tratando aqui de ficção científica, mas de fatos objetivos que muitas vezes são mais assombrosos que a ficção. É um fato, por exemplo, que a chamada automação plena (que já pode ser observada no Japão não como mero experimento, mas como prática industrial nas chamadas "unmanned factories", nas quais o processo de produção se dá praticamente sem a participação do homem), eliminará inteiramente o trabalho humano, o que sido mais fácil de acontecer – como se tem podido constatar – nos serviços que na produção.

É pois um fato que o trabalho, no sentido tradicional da palavra, desaparecerá paulatinamente e com ele o homem trabalhador, e portanto também a classe trabalhadora entendida como a totalidade dos trabalhadores. Não queremos ainda aqui entrar em considerações sobre se isto é bom ou mau do ponto de vista dos valores que são importantes para o homem; mesmo que chegássemos à conclusão de que seria mau, fatos são fatos e não se pode descartá-los enfiando-se a cabeça na areia como o avestruz.Citarei aqui – como curiosidade histórica e não como prova - ... o fato de que Karl Marx previu a situação hodierna há mais de cem anos (em 1859), no primeiro esboço de O Capital, conhecido pelo título de Grundrisse. Nas páginas 582-600 desta obra ... Marx previu o advento da automação e da plena automação, em decorrência das quais ocorreria uma mudança na posição do proletariado e da estrutura de classes da sociedade.
Na sociedade informática a ciência assumirá o papel de força produtiva. Mesmo hoje a força de trabalho se modifica e desaparece em sentido social. Na nova estrutura de classes da sociedade, a classe trabalhadora também desaparecerá. Como será, então essa estrutura?

Referimo-nos aqui, folgo dizer, a uma perspectiva ampla, a algo que virá, digamos, em trinta ou cinqüenta anos, uma vez que essas mudanças não ocorrem instantaneamente, pois necessitam de tempo para que surjam forças e mecanismos sociais adequados. A classe trabalhadora desaparecerá. Mas e a classe capitalista, ou seja, aquela classe que é formada pelos proprietários dos meios de produção, incluídos os grandes latifundiários? Isto depende da natureza e do ritmo da mudança social que terá lugar no futuro próximo, isto é, dentro de uns vinte anos.
Como dissemos, pode ser que ocorram mudanças de caráter socialista. Estas poriam fim à propriedade privada dos meios de produção e dos serviços em larga escala e, conseqüentemente, também à classe capitalista, o que corresponderia a uma modificação radical da estrutura social. Como vimos, no caso dos países mais industrializados, a barreira que se opõe a um tal rumo são os fenômenos negativos que se manifestam nos países do socialismo real. Por outro lado, a existência desses países é um elemento positivo na medida em que servem como instrumento de defesa diante do perigo de uma intervenção de fora. No caso dos países mais industrializados, portanto, as intervenções seriam raras, ou não se produziriam, ainda que não possam ser totalmente excluídas.

Uma outra variante parece mais provável, a saber: sociedades com uma classe trabalhadora que desaparece e uma classe de capitalistas rurais e urbanos fortemente debilitada e destinada, também ela, a desaparecer. Ainda que os acontecimentos se limitem a que o Estado, através de uma política fiscal adequada, fique com a maior parte das rendas dos capitalistas e impeça, mediante uma legislação adequada, que os filhos herdem as propriedades dos pais, a situação resultante se parecerá mais com o modelo de sociedade proposto por Lênin – isto é, uma sociedade que compra as propriedades dos capitalistas e atribui a eles o papel de administradores – do que com alguma forma de capitalismo clássico.

Vemos, pois, uma sociedade cujas duas principais classes estão desaparecendo. Deixamos de lado aqui o campesinato, embora também esta classe deverá ser arrastada no processo de mudança ao longo do desenvolvimento da automação. Quem ocupará o lugar destas classes? Provavelmente o lutar destas classes desaparecidas será ocupado por um estrato social integrado por cientistas, engenheiros, técnicos e administradores, que se incumbirão do funcionamento e dos progressos da indústria e dos serviços. Um lugar especial no interior deste estrato caberá aos especialistas na distribuição dos mais variados bens. É bastante compreensível que as fileiras deste estrato social sejam formadas principalmente por técnicos e administradores na qualidade de organizadores da produção e dos serviços. Quem em suas fileiras sejam incluídos os representantes das ciências (não só das disciplinas tecnológicas, mas também das ciências fundamentais como, por exemplo, a matemática, a física, a química, a biologia etc.), sem as quais seriam impossíveis os progressos da moderna tecnologia, pode ser facilmente explicado pelo fato de que a ciência é hoje um instrumento de produção cuja importância é crescente e cada vez mais determinante para o progresso em geral. Este estrato social será em certo sentido novo, mas apenas em certo sentido: os especialistas e os profissionais existiam ontem como existem hoje; o mesmo cabe dizer da utilização de seus conhecimentos como instrumento de produção. Este estrato não será tão numeroso quanto o conjunto das duas classes que substituirá, mas as substituirá plenamente no que diz respeito à suas funções sociais e, provavelmente, também com um nível mais elevado de eficiência.Porque então utilizamos o termo “estrato” e não “classe social”? Isto está relacionado com a definição do conceito de “classe social”, definição hoje aceita universalmente, que identifica as diversas classes com base na relação de seus membros com os meios de produção. Pode-se, é claro, mudar este critério específico; e, quando desaparecer o trabalho no sentido tradicional da palavra e modificar-se a propriedade privada dos meios de produção, uma nova definição do conceito de “classe” será mesmo necessária. Não apenas a propriedade dos meios de produção, mas também, por exemplo, o exercício do poder político poderia servir como critério de pertinência a uma classe. Poder-se-ia então verificar que a população que tem em comum relações específicas determinadas pela sua função social, que hoje denominamos de “estrato”, seja, de fato, uma classe social. Outro argumento poderia ser buscado no fato de que seus membros seriam proprietários de meios de produção, uma vez que a ciência se converteu já hoje em um meio de produção. Contudo, se levamos em conta a interpretação dos termos hoje predominante, seria mais correto conservar o conceito de "estrato" a fim de evitar equívocos semânticos.

Mas os problemas da estrutura de classes de modo algum esgotam todos os problemas sociais resultantes da atual revolução industrial, embora formem a base destes e de outros problemas. Observemos três deles, todos pertencentes à corrente tradicional do reformismo social inaugurado pelos grandes sistemas do socialismo utópico: a eliminação das diferenças entre trabalho manual e intelectual; a eliminação das diferenças entre trabalho nas cidades e no campo; e o igualitarismo econômico como fundamento para a superação das demais desigualdades sociais.A eliminação das diferenças entre trabalho manual e trabalho intelectual, que pressupunha não apenas a abolição das fadigas do trabalho manual, mas também a eliminação das diferenças de status social entre estes dois grupos de trabalhadores, era um dos sonhos utópicos dos grandes sistemas socialista na passagem do século XVIII para o século XIX. Ela continuou sendo utópica no âmbito marxista, que a recolheu dos postulados dos sistemas anteriores de pensamento socialista. A exigência se tornou realista apenas hoje, na sociedade informática. Esta assistirá ao desaparecimento do trabalho manual; o que restar do antigo trabalho (como ainda o entendemos hoje), assumirá o caráter de ocupações intelectuais, de natureza criativa, dado que o trabalho intelectual rotineiro, que consiste em realizar operações repetitivas que podem ser automatizadas, também desaparecerá. Assistiremos pois à materialização da antiga palavra de ordem não através da equiparação dos dois tipos de trabalho, mas através da eliminação de um deles. A forma de realização do antigo programa será, pois, nova, diversa daquela originariamente prevista, mas em compensação será efetiva. Isto mudará muitas coisas, incluída a condição social da intelectualidade. Se todas as pessoas de uma ou de outra forma se ocuparem intelectualmente, não haverá motivo para singularizar os intelectuais como estrato dotado de características especiais e de tarefas sociais igualmente especiais: a totalidade das pessoas desenvolverá a inteligência. Isto é particularmente evidente se levarmos em conta que a educação permanente será uma das principais formas de resolver o problema do desemprego estrutural. De outro modo se coloca a questão dos intelectuais (no sentido do trabalho criativo) que, em qualquer formação social, permanecerão como um grupo social distinto ainda que relativamente, embora sob as novas condições seu número possa crescer quando comparado aos dados de hoje, a não ser que a engenharia genética torne possível a produção em série de gênios.

Mas isto já faz parte da ficção científica, pelo menos considerando o nível atual dos nossos conhecimentos neste campo.Ao contrário, a eliminação da diferença entre o trabalho no campo (na agricultura), e o trabalho nas cidades (na indústria e nos serviços), continua sendo uma exigência, embora sua realização pareça, hoje, mais promissora que no passado. Já hoje a aplicação da microeletrônica ao maquinário agrícola torna possível realizar automaticamente certas operações no campo inclusive durante a noite: melhor fertilização automática do solo antes da semeadura etc. Os novos avanços da engenharia genética permitirão aos agricultores não apenas incrementar imensamente as colheitas, como também selecionar as plantas mais resistentes às condições climáticas e a pragas e doenças. A simbiose das plantas com certas bactérias permitirá que aquelas assimilem nitrogênio diretamente da atmosfera sem a necessidade da fertilização artificial do solo etc. Os avanços neste campo são enormes e resta esperar que sejam ainda maiores no futuro. Contudo, o trabalho agrícola, especialmente a criação de animais, continua se diferenciando qualitativamente do trabalho nas zonas urbanas, e a eliminação dessa diferença, no entanto, não se apresenta ainda no horizonte.

Evidentemente, o desenvolvimento dos modernos meios de comunicação de massa aproxima as zonas rurais dos centros culturais e permite aos agricultores uma melhor utilização do que produzem. A vinculação de povoados isolados, ou até de granjas isoladas, às cidades por meio das fibras óticas e dos computadores, que já ocorre no Canadá, pode reduzir enormemente a sensação de isolamento de que padecem as pessoas que trabalham na agricultura. Meios de transporte modernos, cada vez mais aperfeiçoados e acessíveis – automóveis, helicópteros, pequenos aviões, barcos a motor etc. – constituem também um passo nesta direção. Apesar disso, permanece sempre a diferença qualitativa e quantitativa entre trabalho agrícola e trabalho urbano (sempre segundo os dados de que dispomos hoje), não obstante a atual revolução industrial. Analogamente, a despeito de todos os progressos realizados, o isolamento do camponês dos grandes centros continuará a incidir negativamente sobre as suas atividades culturais, sociais, políticas etc.Poderíamos obviamente imaginar uma mudança radical no atual modelo de urbanização, com sua tendência a criar megalópoles desastrosas por seu tamanho e pela conseqüente forma de vida que impõem aos seus habitantes. Também poderíamos sonhar com cidades-jardins e com mesclas de assentamentos urbanos e rurais que, ao modificarem seu tamanho e as distâncias entre elas, eliminariam a maior barreira que impede que se aproximem umas das outras do ponto de vista da qualidade de vida. Infelizmente, tudo isto continua sendo ficção científica. Contudo, deveríamos também nos interessar por este gênero literário, pois ele nos revela o que é não só desejável como também plausível, tendo em vista as possibilidades tecnológicas atuais. E isto já é muito.O problema do nivelamento das diferenças sociais existentes, isto é, o problema de um igualitarismo social específico que deve ser obtido como conseqüência das mudanças tecnológicas e da base da sociedade, é todavia mais complexo. Existe uma escola de pensamento que afirma que os avanços no igualitarismo relativo da esfera econômica eliminariam automaticamente outras diferenças da vida social. Creio que esta opinião peca por excesso de otimismo. Tais mudanças podem conduzir a um incremento do igualitarismo social até a abolição das diferenças de classe, mas podem também – e este é um perigo real – produzir a aparição de outras diferenças, talvez ainda maiores que as anteriores, incluindo a formação de um novo tipo de sociedade totalitária. Isto todavia nos leva já a refletir sobre a formação política da sociedade... Por ora queremos apenas assinalar um problema fundamental que pertence à categoria das questões sociais tais como as definimos aqui.

Não cabe qualquer dúvida quanto ao fato de que o desaparecimento do trabalho no sentido tradicional, aliado ao desaparecimento da propriedade privada dos meios de produção – ou pelo menos a uma mudança de status da mesma – com a conseqüente modificação da estrutura de classes da sociedade, eliminará, ou pelo menos debilitará, certas diferenças sociais entre as pessoas. Isto afeta principalmente as diferenças que se baseiam na riqueza e, provavelmente, aquelas relacionadas com a origem de classe (as diferenças relacionadas com a origem nacional e a religião são muito mais persistentes, como tem demonstrado a experiência). Seria um importante passo em direção a um igualitarismo social específico se não acarretasse o perigo de surgirem novas diferenças, que poderiam ser muito profundas sob certas condições políticas.
Quais são as fontes desse perigo?Pode-se produzir uma nova divisão entre as pessoas, a saber: uma divisão entre as que têm algo que é socialmente importante e as que não têm. Este “algo”, no caso, é a informação no sentido mais amplo do termo que, em certas condições, pode substituir a propriedade dos meios de produção como fator discriminante da nova divisão social, uma divisão semelhante, mas não idêntica, à atual subdivisão em classes.Atualmente podemos observar uma divisão clara – algo parecido com a incultura das massas e a cultura de um número ainda reduzido de pessoas iniciadas na ciência dos computadores – entre as que conhecem e as que desconhecem o funcionamento dos computadores. Não me refiro aqui à diferenças entre este “conhecimento” e a “ignorância”, já que este é um fenômeno transitório que não tardará a desaparecer quando forem modificados os currículos escolares. Refiro-me na realidade a algo que será muito mais persistente (e que poderá, inclusive, se agravar), e que diz respeito à “informação”.Quando falamos de sociedade informática referimo-nos a uma sociedade em que todas as esferas da vida pública estarão cobertas por processos informatizados e por algum tipo de inteligência artificial, que terá relação com computadores de gerações subseqüentes. O problema não está no modo como ocorre este processo nas diversas esferas da vida pública; o verdadeiro problema é quem deve gerir os resultados deste processo informático generalizado e como utiliza os dados que tem à sua disposição. Quanto maior é a expansão do processo, maior é o perigo de uma divisão entre os que possuem e os que não possuem as informações adequadas. Esta divisão, sob determinadas condições, pode assumir um caráter de classe, como já constatamos antes. Tentarei explicar esta afirmação geral através de um exemplo concreto.
A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos criou um laboratório especial destinado a estudas a influência das novas técnicas de informação na esfera da vida privada (privacy) e nos direitos civis dos cidadãos americanos. A que se deve esta preocupação? Os perigos resultantes da computadorização generalizada são tão óbvios para estas esferas que os sindicatos começaram a reagir diante deles, não apenas nos Estados Unidos. Tudo começou com a supervisão das operações do trabalhador: o computador registra cada operação, cada interrupção do trabalho, o ritmo, a produtividade etc. Comprovou-se que este controle provoca stress nos trabalhadores, tanto mais que os resultados de tal “observação” podem levar à demissão, e isto num período em que, devido ao desemprego em massa, intensifica-se a concorrência. Neste sentido, é evidente o motivo da intervenção dos sindicatos.

Mas o problema se torna muito mais sério quando levamos em conta todas as informações recolhidas sobre cada cidadão. Toda instituição que tenha contatos com uma pessoa reúne informações sobre ela na esfera de seu interesse e armazena estas informações na memória de um computador. Isto é feito pelos patrões, pelas instituições de seguro social, pelos hospitais e ambulatórios, pelas escolas, pelos partidos políticos, pelos sindicatos etc. Em princípio, cada uma destas instituições recolhe informações para si. Mas imaginemos uma situação em que uma “super-instituição” qualquer (na maioria dos países as informações recolhidas deste modo são secretas e não acessíveis a outras instituições ou cidadãos privados), conseguisse recolher dados pertinentes de todas as instituições que os possuem e submetesse estes dados a uma análise integrada. Estas instituições existem em qualquer país e não estão submetidas à obrigação habitual de guardar segredo quando são chamadas a defender um “interesse mais elevado”. Uma instituição deste tipo poderia não apenas saber praticamente tudo sobre uma determinada pessoa, mas, ademais, na prática, poderia conhecê-la mais e de forma mais confiável do que esta se conhece a si mesma (o que é compreensível se considerarmos as barreiras psicológicas que impedem a auto-análise). Mas poderia proporcionar oportunidades fantásticas, não apenas para a chantagem, mas também para os mais refinados métodos de manipulação de pessoas. Imaginemos pois esta instituição no interior de uma burocracia forte e bem organizada e não estaremos longe da visão de Orwell. Há, pois, motivos para preocupação e para “espremer” o cérebro a fim de evitar o mal... O problema não é simples nem é fácil de resolver.

Mas voltemos à intrigante possibilidade de que surjam novas desigualdades sociais e ao paralelo renascimento de uma divisão quase classista da sociedade informática. Trata-se de algo mais que um perigo, é inevitável que o advento da sociedade informática possa produzir uma nova divisão entre os que têm e os que não têm. Esta situação criará, portanto, uma nova base que, através da diferenciação social, poderá produzir algo semelhante à diferenciação social, poderá produzir algo semelhante à diferenciação existente entre as classes. Mesmo assim, não se tratará da trivial divisão entre aqueles que dispõem de um adequado conhecimento técnico no âmbito da informática e aqueles que carecem de tal conhecimento. Como dissemos, esta divisão poderá ser facilmente eliminada por meio de uma ampliação apropriada dos programas escolares, o que de resto já ocorre hoje. A divisão se dará, antes, entre aqueles que possuem informações pertinentes sobre diversas esferas da vida social e aqueles que estarão privados destas em razão de leis relativas a segredos oficiais. Um grande perigo e um problema difícil! Mas com isso entramos em uma nova esfera igualmente social, a saber: a política”.

(Adam Schaff – A Sociedade Informática)

"Passou do limite" - Editorial FSP de 11-03-2010

NÃO PARECE demais, em nome do registro histórico, reproduzir mais uma vez as palavras do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em entrevista à Associated Press:

"Temos de respeitar a determinação da Justiça e do governo cubanos de deter as pessoas em função da legislação de Cuba. A greve de fome não pode ser utilizada como pretexto de direitos humanos para liberar as pessoas. Imagine se todos os bandidos presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade".

A declaração é escandalosa -mesmo para os padrões de Lula, que habituou os brasileiros a seus disparates. Lembre-se, por exemplo, quando disse, ainda em 2003:

"Quem chega a Windhoek [capital da Namíbia], não parece que está num país africano. Poucas cidades do mundo são tão limpas e bonitas arquitetonicamente quanto esta".

Desta vez, porém, a manifestação não se reveste de nenhuma graça, tosca que seja. E não pode ser atribuída a mais um entre tantos deslizes de quem abusa dos improvisos, não esconde o orgulho por falar errado e se diverte com as gafes que comete. Não. Lula, este personagem satisfeito com as suas próprias precariedades, desta vez passou dos limites na agressão aos valores democráticos.

Vejamos mais de perto a escalada de impropriedades: Lula endossa uma ditadura que reprime a divergência de opinião. Prega "respeito" pela legislação cubana, que autoriza a prisão de pessoas cujo crime é dar sinais de "conduta manifestamente em contradição com as normas da moralidade socialista".

A seguir, avança outra casa ao qualificar os direitos humanos de "pretexto" dos presos políticos que fazem greve de fome. Pretexto? Em 2003, o governo cubano fuzilou três dissidentes que tentaram fugir do país. Outros 75 opositores foram presos, entre os quais Orlando Zapata. Condenado inicialmente a três, ele teve sua pena ampliada para mais de 25 anos de prisão. Morreu após uma greve de fome, no dia em que Lula chegou à ilha, semanas atrás, para visitar Fidel Castro pela quarta vez.

Surpreendido por jornalistas, primeiro alegou desconhecer o apelo que entidades defensoras dos direitos humanos haviam feito para que intercedesse por Zapata. Limitou-se, a seguir, a lamentar que "um preso se deixe morrer por greve de fome".

Como disse ontem à Folha o jornalista e dissidente cubano Guillermo Fariñas, também em greve de fome: "Lula demonstra seu comprometimento com a ditadura dos Castro e seu desprezo com os presos políticos".

Nada supera, porém, o escárnio da conclusão presidencial: os presos políticos da ditadura cubana são equiparáveis aos presos comuns de um país democrático, no caso o Brasil. "Imagine se todos os bandidos presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade."Imaginemos, nós, com mais razão, que tal aberração a serviço da defesa de um regime homicida não seja apenas um tropeço, mas, antes, a revelação do real apreço de Lula pela democracia.