sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A RELAÇÃO PROFESSOR/ALUNO (Zygmunt Bauman)

O grande escritor argentino Jorge Luis Borges, falando das origens de um de seus extraordinários contos – “A busca de Averroe” – disse que tinha a intenção de “narrar o processo de uma derrota”, de um fracasso; como o de um teólogo à procura da prova definitiva da existência de Deus; de um alquimista à procura da pedra filosofal; de um aficionado por tecnologia em busca da trissecção do ângulo; de um matemático em busca da prova da quadratura do círculo. Mas depois conclui que seria “mais poético o caso de um homem que se propõe um fim que não é vedado aos outros, mas somente a ele”.
Averroe, o grande filósofo muçulmano que se dedicou a traduzir a Poética de Aristóteles, “encerrado no âmbito do Islã, nunca pôde saber o significado das palavras tragédia e comédia”. Averroe parecia, de fato, destinado ao fracasso, pois queria “imaginar o que é um drama sem ter jamais suspeitado o que é um teatro”. (Cf. em O Aleph, editado pela Cia das Letras, em 2008).
O caso escolhido por Borges revela-se efetivamente “mais poético” como tema para uma esplêndida história narrada por um grande autor. Mas, de um ponto de vista sociológico – menos inspirado, mais prosaico e banal – ele parece também mais trivial. Somente algumas poucas almas intrépidas saem em busca da solução dos problemas da geometria clássica ou da pedra filosofal; mas todos já sentimos na própria pele e repetimos diariamente a experiência de tentar compreender algo que os outros entendem sem dificuldade. Isso acontece conosco, no século XXI, mais do que com nossos antepassados em outros tempos. Basta lembrar um exemplo: a tentativa de se comunicar com os filhos, para quem os tem, ou com os pais, para quem ainda não os perdeu.
A incompreensão recíproca entre gerações, entre os “velhos” e os “jovens”, e a desconfiança que isso gera têm uma longa história. Seus sintomas podem ser encontrados facilmente em tempos bem antigos. Mas a desconfiança intergeracional assumiu importância muito maior na era moderna, marcada por mudanças permanentes, rápidas e profundas das condições de vida. A aceleração radical do ritmo das mudanças, característica dos tempos modernos, permitiu que se percebesse no curso de uma única vida humana que “as coisas mudam” e “não são mais como antes”; trata-se de uma constatação que sugere uma associação (ou nexo causal) entre as mudanças da condição humana e a sucessão das gerações.
A partir do advento da modernidade e em todo o seu percurso, as gerações que vêm ao mundo em fases diferentes da sua contínua transformação tentem a divergir nitidamente na avaliação das condições de que partilham. Os filhos em geral enfrentam um mundo drasticamente diferente daquele que seus pais, guiados pelos educadores, aprenderam a considerar um padrão de “normalidade”. Além disso, nunca poderão conhecer esse mundo já desaparecido em que os pais viveram quando eram jovens.
Aquilo que, para algumas gerações, pode parecer “natural” – da série “as coisas são assim”, “normalmente, as coisas são feitas assim” ou “deveriam ser feitas assim” – para outras pode ser uma aberração: um afastamento da norma, um estado de coisas extravagantes e talvez até irracional, ilegítimo, injusto, abominável. Aquilo que, para algumas gerações, pode parecer uma condição confortável e familiar, pois permite o uso de habilidades e rotinas aprendidas e dominadas, poderia parecer estranha e desagradável a outras. Nas situações em que alguns se sentem desconfortáveis, confusos e perdidos, outros poderiam se sentir como um peixe dentro d’água.
As diferenças de percepção tornaram-se hoje tão multidimensionais que, ao contrário dos tempos pré-modernos, as gerações mais velhas não atribuem mais aos jovens o papel de “adultos em miniatura” ou de “aspirantes a adulto” – de “seres ainda não completamente maduros, mas destinados a amadurecer” (“a amadurecer até serem como nós”). Não se espera mais, nem se presume, que os jovens “estão se preparando para ser adultos como nós”: eles são vistos como uma espécie muito diferente de pessoa, destinada a permanecer diferente “de nós” por toda a vida. As diferenças entre “nós” (os velhos) e “eles” (os jovens) não são mais um problema temporário que vai se resolver e evaporar quando os mais novos tiverem (inevitavelmente) que encarar as coisas da vida.
O resultado é que as velhas e as novas gerações tendem a se olhar reciprocamente com um misto de incompreensão e desconfiança. Os mais velhos temem que esses recém-chegados ao mundo estejam prontos a arruinar e destruir a acolhedora, familiar e decorosa “normalidade” que eles, os pais, construíram com esforço e conservam com amoroso cuidado; os jovens, ao contrário, sentem um forte impulso de endireitar os que os antigos estragaram e desequilibraram. Nem uns nem outros estão satisfeitos (pelo menos não completamente) com o modo como as coisas vão e com a direção que seu mundo parece tomar, acusando-se mutuamente por essa insatisfação.
Em dois números consecutivos, uma prestigiosa revista semanal inglesa publicou há pouco duas acusações bastante diferentes uma da outra: um colunista acusou os jovens de serem “bovinos, preguiçosos, depravados e imprestáveis”; e um leitor responde irado que a juventude supostamente indolente e indiferente obtém, na realidade “ótimos resultados acadêmicos” e demonstra “preocupação com os estragos que os adultos fizeram”. Aqui, como em tantas outras discussões semelhantes, trata-se de uma divergência de avaliação e de pontos de vista impregnados de subjetivismo. Em casos assim, é difícil resolver “com objetividade” a controvérsia.
Ann-Sophie, de 20 anos, estudante da Copenhagen Business School, deu as seguintes respostas a um questionário organizado por Fleming Wisler: “Não quero ser muito controlada por minha vida. Não quero sacrificar tudo à carreira... A coisa mais importante é ficar bem... Ninguém quer permanecer preso muito tempo ao mesmo trabalho”. Em outras palavras: mantenham abertas todas as opções.Não jurem fidelidade “até que a morte nos separe” a nada ou a ninguém. O mundo está cheio de possibilidades maravilhosas, atraentes, promissoras; seria loucura perdê-las por estar de pés e mãos atados em compromissos irrevogáveis.
Não é surpreendente que, na lista das capacidades fundamentais que os jovens são chamados a dominar (e desejam fazê-lo, impacientes), surfar supere amplamente os conceitos cada vez mais obsoletos de “indagar” e “aprofundar”. Como observou Katie Baldo, orientadora pedagógica da Cooperstown Middle School no estado de Nova York: “os adolescentes perdem alguns importantes sinais sociais porque estão muito concentrados em seus iPods, celulares ou videogames. Na sala de aula, percebo continuamente que não conseguem cumprimentar nem estabelecer contato visual”.
Fazer contato visual ou permitir a aproximação física de um outro ser humano é sinônimo de desperdício, pois equivale a dedicar algum tempo, escasso e precioso, a “aprofundar”: decisão que poderia interromper ou impedir o surfe em tantas outras superfícies convidativas.
Na vida de contínua emergência, as relações virtuais levam a melhor facilmente sobre a “coisa real”. O mundo off-line convida os jovens a estar em constante movimento. Mas solicitações deste tipo de pouco adiantariam se não fosse a capacidade, baseada na eletrônica, de multiplicar os encontros interindividuais, transformando cada um deles num ato rápido, superficial, de tipo “use e jogue fora”. Relações virtuais são equipadas com a tecla “delete” e com “antispam”, mecanismos que protegem das conseqüências incômodas (e sobretudo dispendiosas em termos de tempo das interações mais profundas).
É impossível não lembrar o personagem de Chance (interpretado por Peter Sellers no filme de Kal Ashby, Além do Jardim, de 1979). Na rua movimentada em que se encontra de repente, recém-saído de um prolongado tête-à-tête com “o mundo que se vê na TV”, Chance tenta inutilmente afastar um perturbador grupo de freiras de seu campo de visão com a ajuda de um controle remoto.
Para os jovens, a principal atração do mundo virtual deriva da ausência de contradições e objetivos contrastantes que infestam a vida off-line. O mundo on-line, ao contrário de sua alternativa off-line, torna possível pensar na infinita multiplicação de contatos como algo plausível e factível. Isso acontece pelo enfraquecimento dos laços – em nítido contraste com o mundo off-line, orientado para a tentativa constante de reforçar os laços, limitando muito o número de contatos e aprofundando cada um deles.
Essa é uma verdadeira vantagem para homens e mulheres sempre atormentados pela eventualidade (apenas eventualidade) de que cada passo possa se revelar um erro; ou pela eventualidade (apenas eventualidade) de que seja tarde demais para anular as perdas que ele possa causar. Vem daí a aversão a qualquer coisa “a longo prazo”, seja o planejamento da própria vida, sejam os compromissos assumidos com outros seres vivos.
Uma publicidade recente, apelando, claro, para os valores da jovem geração, anunciava a chegada de um rímel que “prometia solenemente durar 24 horas” com o seguinte comentário: “Estamos falando de uma relação séria. Basta um toque e seus belos cílios desafiarão chuva,suor, umidade e lágrimas. Para retirá-lo, basta um pouco de água morna”. Vinte e quatro horas já soam como um “compromisso sério”. Porém, mesmo este compromisso deixaria de ser atraente se não fosse fácil remover seus vestígios.
Qualquer que seja a escolha feita, ela sempre lembrará mais o “leve manto” de um dos fundadores da sociologia moderna, Max Weber – o manto que pode ser colocado sobre os ombros e despido à vontade e a qualquer momento – do que a “crosta de aço” que oferece uma eficiente e durável proteção contra turbulências, mas dificulta os momentos de quem a usa e limita muito o espaço do livre-arbítrio (Cf. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, editado pela Cia das Letras em 2005).
O que importa aos jovens é conservar a capacidade de recriar a “identidade” e a “rede” a cada vez que isso se fizer necessário ou esteja prestes a sê-lo. A preocupação de nossos antepassados com a identificação é substituída pela reidentificação. As identidades devem ser descartáveis; uma identidade insatisfatória, não satisfatória o bastante ou que revele sua idade avançada deve ser fácil de abandonar. Talvez a biodegradabilidade seja o atributo mais desejado da identidade real.
A capacidade interativa da internet é feita sob medida para essa nova necessidade. É a quantidade das conexões, mais que sua qualidade, que faz a diferença entre as possibilidades de sucesso ou fracasso. Ela permite manter-se informado sobre a “última moda” – os sucessos mais ouvidos, as camisetas da moda, os mais recentes e comentados festivais, festas e eventos com pessoas famosas. Ao mesmo tempo, ajuda a atualizar os conteúdos, a redistribuir os traços característicos no retrato do próprio Eu e a apagar rapidamente os traços do passado, os conteúdos e características já vergonhosamente ultrapassados.
No conjunto, ela facilita muito, solicita, ou melhor, impõe o esforço perene de reinvenção numa medida impensável na vida off-line. Esta é, provavelmente, uma das principais explicações para o tempo que a “geração eletrônica” dedica ao universo virtual – um tempo que cresce sempre à custa do tempo vivido no “mundo real”.
As referências dos principais conceitos que enquadram e mapeiam a Lebenswelt, o mundo em que vivem e sobrevivem os jovens, o mundo experimentado pessoalmente, têm sido transplantadas do mundo off-line de modo gradual, mas incessante, para o mundo on-line. Entre eles, destacam-se conceitos como “contatos”, “encontros”, “reuniões”, “comunicar”, “comunidade” ou “amizade” – todos referentes às relações interpessoais e aos laços sociais. Umas das principais conseqüências da nova localização desses referentes é que os laços e os compromissos sociais correntes são percebidos mais como fotos instantâneas batidas no âmbito de um processo de negociação contínua do que como condições estáveis destinadas a durar um tempo indeterminado.
No entanto, essa metáfora não me parece totalmente satisfatória: embora “instantâneas”, as fotos ainda exibem uma tendência a durar mais que os laços e compromissos mediados pela eletrônica. A palavra “instantâneo” pertence ao vocabulário da impressão e do papel fotográfico, que só aceita uma imagem, enquanto, no caso dos laços eletrônicos, atos como apagar e reescrever ou sobrescrever, inconcebíveis no caso dos negativos em celulóide e do papel fotográfico, são opções particularmente importantes e muito utilizadas – são, aliás, os únicos atributos indeléveis dos laços mediados pela eletrônica.
Mas é bom lembrar também que grande parte da presente geração de jovens jamais experimentou grandes privações, como uma depressão econômica prolongada, desprovida de perspectivas e com desemprego em massa. Eles nasceram e cresceram num mundo em que podiam se abrigar sob guarda-chuvas socialmente produzidos e administrados, à prova de ventos e tempestades, que pareciam estar ali desde sempre para protegê-los do mau tempo, da chuva fria e dos ventos gelados. Um mundo em que cada manhã prometia um dia mais ensolarado que o anterior e mais rico de aventuras agradáveis (Cf. Ortega y Gasset).
Enquanto escrevo estas linhas, as nuvens se acumulam sobre esse mundo. A feliz, confiante e promissora condição que os jovens acabaram por considerar como o estado “natural” do mundo pode estar desmoronando. Uma depressão econômica (que, como dão a entender alguns observadores, ameaça se revelar tão ou mais profunda que as crises que a geração dos pais sofreu na juventude), talvez esteja à espreita na primeira esquina. Por isso, é cedo demais para compreender de que modo as visões de mundo, e os comportamentos profundamente arraigados dos jovens de hoje, irão se adequar ao mundo que virá, e de que maneira esse mundo irá se amoldar a suas expectativas profundas.

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OBSERVAÇÃO: Este texto foi publicado pela primeira vez em 2009.

A relação professor/aluno - Zygmunt Bauman


O grande escritor argentino Jorge Luis Borges, falando das origens de um de seus extraordinários contos – “A busca de Averroe” – disse que tinha a intenção de “narrar o processo de uma derrota”, de um fracasso; como o de um teólogo à procura da prova definitiva da existência de Deus; de um alquimista à procura da pedra filosofal; de um aficionado por tecnologia em busca da trissecção do ângulo; de um matemático em busca da prova da quadratura do círculo. Mas depois conclui que seria “mais poético o caso de um homem que se propõe um fim que não é vedado aos outros, mas somente a ele”.

Averroe, o grande filósofo muçulmano que se dedicou a traduzir a Poética de Aristóteles, “encerrado no âmbito do Islã, nunca pôde saber o significado das palavras tragédia e comédia”. Averroe parecia, de fato, destinado ao fracasso, pois queria “imaginar o que é um drama sem ter jamais suspeitado o que é um teatro”. (Cf. em O Aleph, editado pela Cia das Letras, em 2008).

O caso escolhido por Borges revela-se efetivamente “mais poético” como tema para uma esplêndida história narrada por um grande autor. Mas, de um ponto de vista sociológico – menos inspirado, mais prosaico e banal – ele parece também mais trivial. Somente algumas poucas almas intrépidas saem em busca da solução dos problemas da geometria clássica ou da pedra filosofal; mas todos já sentimos na própria pele e repetimos diariamente a experiência de tentar compreender algo que os outros entendem sem dificuldade. Isso acontece conosco, no século XXI, mais do que com nossos antepassados em outros tempos. Basta lembrar um exemplo: a tentativa de se comunicar com os filhos, para quem os tem, ou com os pais, para quem ainda não os perdeu.

A incompreensão recíproca entre gerações, entre os “velhos” e os “jovens”, e a desconfiança que isso gera têm uma longa história. Seus sintomas podem ser encontrados facilmente em tempos bem antigos. Mas a desconfiança intergeracional assumiu importância muito maior na era moderna, marcada por mudanças permanentes, rápidas e profundas das condições de vida. A aceleração radical do ritmo das mudanças, característica dos tempos modernos, permitiu que se percebesse no curso de uma única vida humana que “as coisas mudam” e “não são mais como antes”; trata-se de uma constatação que sugere uma associação (ou nexo causal) entre as mudanças da condição humana e a sucessão das gerações.

A partir do advento da modernidade e em todo o seu percurso, as gerações que vêm ao mundo em fases diferentes da sua contínua transformação tentem a divergir nitidamente na avaliação das condições de que partilham. Os filhos em geral enfrentam um mundo drasticamente diferente daquele que seus pais, guiados pelos educadores, aprenderam a considerar um padrão de “normalidade”. Além disso, nunca poderão conhecer esse mundo já desaparecido em que os pais viveram quando eram jovens.

Aquilo que, para algumas gerações, pode parecer “natural” – da série “as coisas são assim”, “normalmente, as coisas são feitas assim” ou “deveriam ser feitas assim” – para outras pode ser uma aberração: um afastamento da norma, um estado de coisas extravagantes e talvez até irracional, ilegítimo, injusto, abominável. Aquilo que, para algumas gerações, pode parecer uma condição confortável e familiar, pois permite o uso de habilidades e rotinas aprendidas e dominadas, poderia parecer estranha e desagradável a outras. Nas situações em que alguns se sentem desconfortáveis, confusos e perdidos, outros poderiam se sentir como um peixe dentro d’água.

As diferenças de percepção tornaram-se hoje tão multidimensionais que, ao contrário dos tempos pré-modernos, as gerações mais velhas não atribuem mais aos jovens o papel de “adultos em miniatura” ou de “aspirantes a adulto” – de “seres ainda não completamente maduros, mas destinados a amadurecer” (“a amadurecer até serem como nós”). Não se espera mais, nem se presume, que os jovens “estão se preparando para ser adultos como nós”: eles são vistos como uma espécie muito diferente de pessoa, destinada a permanecer diferente “de nós” por toda a vida. As diferenças entre “nós” (os velhos) e “eles” (os jovens) não são mais um problema temporário que vai se resolver e evaporar quando os mais novos tiverem (inevitavelmente) que encarar as coisas da vida.

O resultado é que as velhas e as novas gerações tendem a se olhar reciprocamente com um misto de incompreensão e desconfiança. Os mais velhos temem que esses recém-chegados ao mundo estejam prontos a arruinar e destruir a acolhedora, familiar e decorosa “normalidade” que eles, os pais, construíram com esforço e conservam com amoroso cuidado; os jovens, ao contrário, sentem um forte impulso de endireitar os que os antigos estragaram e desequilibraram. Nem uns nem outros estão satisfeitos (pelo menos não completamente) com o modo como as coisas vão e com a direção que seu mundo parece tomar, acusando-se mutuamente por essa insatisfação.

Em dois números consecutivos, uma prestigiosa revista semanal inglesa publicou há pouco duas acusações bastante diferentes uma da outra: um colunista acusou os jovens de serem “bovinos, preguiçosos, depravados e imprestáveis”; e um leitor responde irado que a juventude supostamente indolente e indiferente obtém, na realidade “ótimos resultados acadêmicos” e demonstra “preocupação com os estragos que os adultos fizeram”. Aqui, como em tantas outras discussões semelhantes, trata-se de uma divergência de avaliação e de pontos de vista impregnados de subjetivismo. Em casos assim, é difícil resolver “com objetividade” a controvérsia.

Ann-Sophie, de 20 anos, estudante da Copenhagen Business School, deu as seguintes respostas a um questionário organizado por Fleming Wisler: “Não quero ser muito controlada por minha vida. Não quero sacrificar tudo à carreira... A coisa mais importante é ficar bem... Ninguém quer permanecer preso muito tempo ao mesmo trabalho”. Em outras palavras: mantenham abertas todas as opções.Não jurem fidelidade “até que a morte nos separe” a nada ou a ninguém. O mundo está cheio de possibilidades maravilhosas, atraentes, promissoras; seria loucura perdê-las por estar de pés e mãos atados em compromissos irrevogáveis.

Não é surpreendente que, na lista das capacidades fundamentais que os jovens são chamados a dominar (e desejam fazê-lo, impacientes), surfar supere amplamente os conceitos cada vez mais obsoletos de “indagar” e “aprofundar”. Como observou Katie Baldo, orientadora pedagógica da Cooperstown Middle School no estado de Nova York: “os adolescentes perdem alguns importantes sinais sociais porque estão muito concentrados em seus iPods, celulares ou videogames. Na sala de aula, percebo continuamente que não conseguem cumprimentar nem estabelecer contato visual”.
Fazer contato visual ou permitir a aproximação física de um outro ser humano é sinônimo de desperdício, pois equivale a dedicar algum tempo, escasso e precioso, a “aprofundar”: decisão que poderia interromper ou impedir o surfe em tantas outras superfícies convidativas.

Na vida de contínua emergência, as relações virtuais levam a melhor facilmente sobre a “coisa real”. O mundo off-line convida os jovens a estar em constante movimento. Mas solicitações deste tipo de pouco adiantariam se não fosse a capacidade, baseada na eletrônica, de multiplicar os encontros interindividuais, transformando cada um deles num ato rápido, superficial, de tipo “use e jogue fora”. Relações virtuais são equipadas com a tecla “delete” e com “antispam”, mecanismos que protegem das conseqüências incômodas (e sobretudo dispendiosas em termos de tempo das interações mais profundas.

É impossível não lembrar o personagem de Chance (interpretado por Peter Sellers no filme de Kal Ashby, Além do Jardim, de 1979). Na rua movimentada em que se encontra de repente, recém-saído de um prolongado tête-à-tête com “o mundo que se vê na TV”, Chance tenta inutilmente afastar um perturbador grupo de freiras de seu campo de visão com a ajuda de um controle remoto.

Para os jovens, a principal atração do mundo virtual deriva da ausência de contradições e objetivos contrastantes que infestam a vida off-line. O mundo on-line, ao contrário de sua alternativa off-line, torna possível pensar na infinita multiplicação de contatos como algo plausível e factível. Isso acontece pelo enfraquecimento dos laços – em nítido contraste com o mundo off-line, orientado para a tentativa constante de reforçar os laços, limitando muito o número de contatos e aprofundando cada um deles.

Essa é uma verdadeira vantagem para homens e mulheres sempre atormentados pela eventualidade (apenas eventualidade) de que cada passo possa se revelar um erro; ou pela eventualidade (apenas eventualidade) de que seja tarde demais para anular as perdas que ele possa causar. Vem daí a aversão a qualquer coisa “a longo prazo”, seja o planejamento da própria vida, sejam os compromissos assumidos com outros seres vivos.

Uma publicidade recente, apelando, claro, para os valores da jovem geração, anunciava a chegada de um rímel que “prometia solenemente durar 24 horas” com o seguinte comentário: “Estamos falando de uma relação séria. Basta um toque e seus belos cílios desafiarão chuva,suor, umidade e lágrimas. Para retirá-lo, basta um pouco de água morna”. Vinte e quatro horas já soam como um “compromisso sério”. Porém, mesmo este compromisso deixaria de ser atraente se não fosse fácil remover seus vestígios.

Qualquer que seja a escolha feita, ela sempre lembrará mais o “leve manto” de um dos fundadores da sociologia moderna, Max Weber – o manto que pode ser colocado sobre os ombros e despido à vontade e a qualquer momento – do que a “crosta de aço” que oferece uma eficiente e durável proteção contra turbulências, mas dificulta os momentos de quem a usa e limita muito o espaço do livre-arbítrio (Cf. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, editado pela Cia das Letras em 2005).
O que importa aos jovens é conservar a capacidade de recriar a “identidade” e a “rede” a cada vez que isso se fizer necessário ou esteja prestes a sê-lo. A preocupação de nossos antepassados com a identificação é substituída pela reidentificação. As identidades devem ser descartáveis; uma identidade insatisfatória, não satisfatória o bastante ou que revele sua idade avançada deve ser fácil de abandonar. Talvez a biodegradabilidade seja o atributo mais desejado da identidade real.

A capacidade interativa da internet é feita sob medida para essa nova necessidade. É a quantidade das conexões, mais que sua qualidade, que faz a diferença entre as possibilidades de sucesso ou fracasso. Ela permite manter-se informado sobre a “última moda” – os sucessos mais ouvidos, as camisetas da moda, os mais recentes e comentados festivais, festas e eventos com pessoas famosas. Ao mesmo tempo, ajuda a atualizar os conteúdos, a redistribuir os traços característicos no retrato do próprio Eu e a apagar rapidamente os traços do passado, os conteúdos e características já vergonhosamente ultrapassados.

No conjunto, ela facilita muito, solicita, ou melhor, impõe o esforço perene de reinvenção numa medida impensável na vida off-line. Esta é, provavelmente, uma das principais explicações para o tempo que a “geração eletrônica” dedica ao universo virtual – um tempo que cresce sempre à custa do tempo vivido no “mundo real”.
As referências dos principais conceitos que enquadram e mapeiam a Lebenswelt, o mundo em que vivem e sobrevivem os jovens, o mundo experimentado pessoalmente, têm sido transplantadas do mundo off-line de modo gradua, mais incessante, para o mundo on-line. Entre eles, destacam-se conceitos como “contatos”, “encontros”, “reuniões”, “comunicar”, “comunidade” ou “amizade” – todos referentes às relações interpessoais e aos laços sociais. Umas das principais conseqüências da nova localização desses referentes é que os laços e os compromissos sociais correntes são percebidos mais como fotos instantâneas batidas no âmbito de um processo de negociação contínua do que como condições estáveis destinadas a durar um tempo indeterminado.

No entanto, essa metáfora não me parece totalmente satisfatória: embora “instantâneas”, as fotos ainda exibem uma tendência a durar mais que os laços e compromissos mediados pela eletrônica. A palavra “instantâneo” pertence ao vocabulário da impressão e do papel fotográfico, que só aceita uma imagem, enquanto, no caso dos laços eletrônicos, atos como apagar e reescrever ou sobrescrever, inconcebíveis no caso dos negativos em celulóide e do papel fotográfico, são opções particularmente importantes e muito utilizadas – são, aliás, os únicos atributos indeléveis dos laços mediados pela eletrônica.

Mas é bom lembrar também que grande parte da presente geração de jovens jamais experimentou grandes privações, como uma depressão econômica prolongada, desprovida de perspectivas e com desemprego em massa. Eles nasceram e cresceram num mundo em que podiam se abrigar sob guarda-chuvas socialmente produzidos e administrados, à prova de ventos e tempestades, que pareciam estar ali desde sempre para protegê-los do mau tempo, da chuva fria e dos ventos gelados. Um mundo em que cada manhã prometia um dia mais ensolarado que o anterior e mais rico de aventuras agradáveis (Cf. Ortega y Gasset).

Enquanto escrevo estas linhas, as nuvens se acumulam sobre esse mundo. A feliz, confiante e promissora condição que os jovens acabaram por considerar como o estado “natural” do mundo pode estar desmoronando. Uma depressão econômica (que, como dão a entender alguns observadores, ameaça se revelar tão ou mais profunda que as crises que a geração dos pais sofreu na juventude), talvez esteja à espreita na primeira esquina. Por isso, é cedo demais para compreender de que modo as visões de mundo, e os comportamentos profundamente arraigados dos jovens de hoje, irão se adequar ao mundo que virá, e de que maneira esse mundo irá se amoldar a suas expectativas profundas.

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OBSERVAÇÃO: Este texto foi publicado pela primeira vez em 2009.