sábado, 31 de dezembro de 2016

Sobral Pinto, o petrolão e a advocacia (Augusto Nunes)

Sobral Pinto



Os mentores do manifesto dos advogados a favor da bandidagem do Petrolão deveriam ter promovido a primeiro signatário, in memoriam, o mestre Márcio Thomaz Bastos, morto em novembro de 2014. Todos sempre foram discípulos do jurista que transformou o gabinete de ministro da Justiça em fábrica de truques concebidos para eternizar a impunidade dos quadrilheiros do Mensalão. Todos são devotos do criminalista que, desde que o freguês topasse pagar os honorários cobrados em dólares por hora trabalhada, enxergava filhos extremosos até em parricidas juramentados.

Coerentemente, o manifesto dos bacharéis, na forma e no conteúdo, é uma sequência de exumações da fórmula aperfeiçoada por Márcio para defender o indefensável. À falta de munição jurídica, seu tresoitão retórico alvejava a verdade com tapeações, falácias e chicanas. Em artigos, entrevistas ou discurseiras, ele primeiro descrevia o calvário imposto a outro cidadão sem culpas por policiais perversos, promotores desalmados e juízes sem coração. Depois, fazia o diabo para absolver culpados e condenar à execração perpétua os defensores da lei. Foi o que fizeram os parteiros do manifesto abjeto.

Os pupilos hoje liderados por um codinome famoso ─ Kakay ─ certamente guardam cópias do texto do mestre publicado na Folha em junho de 2012. “Serei eu o juiz do meu cliente?”, perguntou Márcio no título do artigo que clamava pela imediata libertação do cliente Carlinhos Cachoeira (” Carlos Augusto Ramos, chamado de Cachoeira”, corrigiu o autor). “Não o conhecia, embora tivesse ouvido falar dele”, explicou. Ouviu o suficiente para cobrar R$15 milhões pela missão de garantir que o superbandido da vez envelhecesse em liberdade.

A pergunta do título foi reiterada no quinto parágrafo: “Serei eu o juiz do meu cliente?” Resposta: “Por princípio, creio que não. Sou advogado constituído num processo criminal. Como tantos, procuro defender com lealdade e vigor quem confiou a mim tal responsabilidade”. Conversa fiada, ensinara já em outubro de 1944 o grande Heráclito Fontoura Sobral Pinto, num trecho da carta endereçada ao amigo Augusto Frederico Schmidt e reproduzida pela coluna. Confira:
“O primeiro e mais fundamental dever do advogado é ser o juiz inicial da causa que lhe levam para patrocinar. Incumbe-lhe, antes de tudo, examinar minuciosamente a hipótese para ver se ela é realmente defensável em face dos preceitos da justiça. Só depois de que eu me convenço de que a justiça está com a parte que me procura é que me ponho à sua disposição”.

“Não há exagero na velha máxima: o acusado é sempre um oprimido”, derramou-se Márcio poucas linhas depois. “Ao zelar pela independência da defesa técnica, cumprimos não só um dever de consciência, mas princípios que garantem a dignidade do ser humano no processo. Assim nos mantemos fiéis aos valores que, ao longo da vida, professamos defender. Cremos ser a melhor maneira de servir ao povo brasileiro e à Constituição livre e democrática de nosso país”.

Com quase 70 anos de antecedência, sem imaginar como seria o Brasil da segunda década do século seguinte, Sobral Pinto desmoralizou esse blá-blá-blá de porta de delegacia com um parágrafo que coloca em frangalhos também a choradeira dos marcistas voluntariamente reduzidos a carpideiras de corruptos confessos. A continuação da aula ministrada por Sobral pulveriza a vigarice:
“A advocacia não se destina à defesa de quaisquer interesses. Não basta a amizade ou honorários de vulto para que um advogado se sinta justificado diante de sua consciência pelo patrocínio de uma causa. O advogado não é, assim, um técnico às ordens desta ou daquela pessoa que se dispõe a comparecer à Justiça. O advogado é, necessariamente, uma consciência escrupulosa ao serviço tão só dos interesses da justiça, incumbindo-lhe, por isto, aconselhar àquelas partes que o procuram a que não discutam aqueles casos nos quais não lhes assiste nenhuma razão”. 

“A pródiga história brasileira dos abusos de poder jamais conheceu publicidade tão opressiva”, fantasiou o artigo na Folha. “Aconteceu o mais amplo e sistemático vazamento de escutas confidenciais. (…) Estranhamente, a violação de sigilo não causou indignação. (…)  Trocou-se o valor constitucional da presunção de inocência pela intolerância do apedrejamento moral. Dia após dia, apareceram diálogos descontextualizados, compondo um quadro que lançou Carlos Augusto na fogueira do ódio generalizado”.


Muitos momentos do manifesto parecem psicografados por Márcio. Onde o mestre viu fogueiras do ódio, os discípulos enxergaram uma Inquisição à brasileira. Como o autor do artigo da Folha, os redatores do documento se proclamam grávidos de indignação com “o menoscabo à presunção de inocência (…), o vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, a sonegação de documentos às defesas dos acusados, a execração pública dos réus e a violação às prerrogativas da advocacia.


Sempre que Márcio Thomaz Bastos triunfava num tribunal, a Justiça sofria mais um desmaio, a verdade morria outra vez, gente com culpa no cartório escapava da cadeia, crescia a multidão de brasileiros convencidos de que aqui o crime compensa e batia a sensação de que lutar pela aplicação rigorosa das normas legais é a luta mais vã. A Lava Jato vem mostrando ao país, quase diariamente,  que ninguém mais deve imaginar-se acima da lei.

Neste começo de 2016, todo gatuno corre o risco de descobrir como é a vida na cadeia. O juiz Sérgio Moro, a força-tarefa de procuradores e os policiais federais engajados na operação desafiaram a arrogância dos poderosos inimputáveis ─ e venceram. O balanço da Lava Jato divulgado em dezembro atesta que, embora a ofensiva contra os corruptos da casa-grande esteja longe do fim, o Brasil mudou. E mudou para sempre.

Todo réu, insista-se, tem direito a um advogado de defesa. Mas doutor nenhum tem o direito de mentir para livrar o acusado que contratou seus serviços de ser punido por crimes que comprovadamente cometeu. O advogado é o juiz inicial da causa. Não pode agir como comparsa de cliente bandido.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Ativismo institucional (José Augusto Guilhon de Albuquerque)


Das crises que se sucederam desde a queda do Estado Novo, nenhuma foi tão intensa e longa como a atual. Desencadeada com a eleição de Dilma Rousseff em 2014, não se encerrou com a posse definitiva de Michel Temer, e já ingressou em seu terceiro ano. Seu desfecho e seus efeitos sobre a sobrevivência da democracia representativa e das liberdades públicas são imprevisíveis.

O atual processo de deterioração da institucionalidade política começou como uma crise da Presidência e, tal um zika vírus, foi provocando degeneração ao longo do sistema nervoso central da República. No âmbito da Presidência, a crise manifestou-se numa combinação de ativismo e paralisia, pois, embora incapaz de montar seu próprio Gabinete e dar rumo e consistência às ações de seu governo, a presidente Dilma adotou um ativismo decisório que provocou falência múltipla dos órgãos governamentais do Executivo.

Os demais Poderes e suas instituições continuaram funcionando – mal, segundo alguns –, cada um afetado por suas próprias limitações, que continuaram produzindo inevitáveis atritos, próprios da separação entre Poderes. Para além dos eventuais atritos – a exemplo da assim chamada judicialização da política –, o sistema político sobreviveu à destituição da chefe do Executivo sem maiores abalos na ordem legal, apesar da relação conflituosa entre o Legislativo – especialmente a Câmara dos Deputados – e o Executivo. 

Atribuir a queda do governo Dilma a uma paralisia decisória é um erro crasso. O que de fato ocorreu foi um ativismo decisório das instituições básicas de nosso sistema político, refletido em ações unilaterais precipitadas, inconsistentes e frequentemente contraditórias. Exemplo cabal é o da presidente, tentando corrigir o fracasso de sua receita econômica criativa, dobrando a dose sucessivamente até levar o doente à UTI. 

Outro é o festival de retaliações protagonizado por Dilma e Eduardo Cunha. Seu resultado – com a reviravolta da bancada petista a favor da cassação de Cunha por falta de decoro, e o troco de Cunha, admitindo o processo de impeachment da presidente – foi a ruptura dos limites institucionais. Isso deu salvo-conduto ao ativismo político à sombra das instituições. Não é que as instituições tivessem deixado de funcionar ou se bloqueassem mutuamente. O mais grave é que sua missão fundamental – determinar normas que estabelecem os limites da legitimidade das decisões de suas instâncias e coibir a manifestação de interesses e a prevalência de escolhas morais e políticas unilaterais – foi posta em segundo plano.

Liberados das amarras da letra da lei, entre 15 de novembro e 17 de dezembro de 2015, Teori Zavascki decidiu unilateralmente mandar prender um senador da República sem autorização prévia do Senado e sem flagrante delito; Luiz Fachin propôs-se a elaborar, “em relação ao exame da constitucionalidade, e da recepção, no todo ou em parte, da lei de 1950, um rito que vai do começo ao final do julgamento do Senado”; e Roberto Barroso, sem mais aquelas, desfigurou inteiramente – para usar um termo ao gosto do ativismo generalizado que hoje grassa – as prerrogativas constitucionais do Legislativo.

Passado um ano, já ninguém se surpreende quando, com base apenas em suas convicções morais, um grupo de procuradores usa recursos públicos para divulgar suas conclusões pessoais sobre investigações ainda em curso, ou para dar ultimatum aos legisladores. Ou, o que é pior, deixa claro que o Legislativo não tem o direito de contrariar a opinião deles sobre o que é melhor para o País. 

Tampouco surpreende que, longe de tentar a via das mútuas concessões, parte significativa do Legislativo entre numa queda de braço com o Judiciário – por mais que coberto de razões; que um líder de partido no governo peça a renúncia do presidente da República, membros do Executivo envolvam a Presidência em questiúnculas ou que um ministro “grampeie” o chefe de Estado e ainda seja tratado como herói. 

Agentes institucionais, nos mais altos escalões da República, julgam lícito atuar como ativistas justiceiros, em nome de suas convicções morais ou políticas. Já não se importam com a letra da lei, nem pestanejam diante das consequências dos seus atos, destituindo o sistema político de sua pedra angular, a segurança jurídica e política. 

Quando o conflito aberto entre as instituições básicas do sistema político torna impossível garantir que não haverá alguém, imbuído do poder de assinar uma liminar, capaz de cassar os efeitos da chamada PEC do Teto, ou reentronizar no poder Dilma Rousseff, então a democracia representativa, e as liberdades que ela garante, continuarão em risco.

Ainda existe alternativa entre cumprir a agenda de reformas – do gasto público, da Previdência, da legislação do trabalho, da remoção dos entraves seculares à dinamização das exportações e ao investimento estrangeiro –, para cuja aprovação o Executivo tem contado com amplo apoio no Congresso e na elite dirigente, ou, então, assistir à desmoralização irremediável da classe política e do Judiciário, incapazes de conter o ativismo irresponsável de muitos de seus membros. É preciso pôr um paradeiro nas pautas-bomba, que hoje são inaceitáveis, com ou sem razão, tanto para o Judiciário quanto para o Legislativo ou para o Executivo, a fim de que, mediante concessões mútuas, seja possível, pelo menos, remendar o mito da separação entre Poderes, sobre o qual se assentam a nossa República e a nossa liberdade.

Com os demais Poderes sob suspeição mútua, e como só o poder se opõe ao poder (Montesquieu), talvez um pouco de ativismo presidencial, com apoio em sua sólida base parlamentar, ouse vetar liminarmente – até que “prevaleça o bom senso” – qualquer tentativa de impor uma pauta que, caso aprovada, levará fatalmente à derrocada do regime e, com ele, de nossa liberdade.