sexta-feira, 11 de abril de 2008

Escândalo do dossiê (retirado do blog de Reinaldo Azevedo

TARSO DEFENDE DOSSIÊS. QUE O CONGRESSO E A JUSTIÇA REAJAM OU FECHEM AS PORTAS:

"A matéria do dia, sem dúvida, está no Correio Braziliense. Entrei na página eletrônica do jornal e bati o olho na manchete: “MINISTRO DA JUSTIÇA DEFENDE DOSSIÊ”. Vocês sabem, eu sou como a Dama de Vermelho, Dilma Rousseff: desconfio da imprensa. Sempre tão exagerada, não é? “Pô, vai ver estão esquentando a matéria", pensei. “Esquentar”, leitor, é exagerar um tanto o que diz um entrevistado ou uma fonte para a coisa parecer mais interessante e/ou grave do que é. Tarso Genro concedeu uma entrevista a Gustavo Krieger. É aquele ministro, vocês sabem, que produz versos a mancheias. “Ah, não! Quero as aspas”, desafiei. E então fui ler a conversa do ministro com o repórter. Acompanhem trechos:
Repórter: O senhor tem insistido em que fazer um dossiê não é crime. Mas é correto usar informações que estão dentro do governo e dar a elas uma destinação política?
Tarso: Não só é correto, como é necessário. É feito por todos os administradores responsáveis. Quando um administrador é atacado a respeito da realização de determinadas despesas e esse administrador quer mostrar que essas despesas que realizou são despesas ordinárias, comuns, feitas por todos os governos e aprovadas pelo Tribunal de Contas (da União), ele tem de fazer anotações para deixar à disposição, por exemplo, de uma CPI, de um inquérito do Ministério Público ou do TCU. Isso não é ilegal nem estranho. O problema é que, neste caso da Casa Civil, o que se começou noticiando foi o seguinte: Casa Civil vazou dossiê para prejudicar Fernando Henrique. Aí sim se criminalizou, nesse caso concreto, a palavra dossiê. Repito: dossiê não é um tipo penal.
Repórter: A idéia de mostrar que outros governos faziam o mesmo tipo de despesa, como o caso dos cartões corporativos, lhe parece correta como estratégia de defesa do político acusado?
Tarso Genro: Evidente. Se o administrador está fazendo uma análise dos seus gastos e quer mostrar que há um histórico desses gastos, aprovados pelo Tribunal de Contas, isso é uma atitude necessária e séria do administrador. O que não é correto, não é ético, é usar essas informações, seja por parte da oposição seja por parte do governo, para imputar a outrem um delito que ele não cometeu. Isso é ilegal, porque é uma denunciação caluniosa. É antiético e nenhum administrador deve fazê-lo. E se fizer, deve ser punido.
Repórter: O senhor diz que a Casa Civil não fez “anotações à margem”. Mas selecionar num universo de dados determinados tipos de gastos e fazer cruzamentos que apontam, por exemplo, os gastos com viagens da primeira-dama Ruth Cardoso, não é um direcionamento?
Tarso Genro: Depende de para que é usada essa anotação. Se ela é usada para um fim ilegal, o que é ilegal é o fim e não o ato de fazer esta anotação. Este ato é um direito que todo administrador tem. No caso da Casa Civil, não tenho nenhuma indicação que ela tenha feito qualquer anotação para usar contra qualquer pessoa. Por isso, não há um tipo penal a ser investigado. O tipo penal, inclusive no dossiê, não é o dossiê propriamente dito e sim o motivo para o qual esse dossiê será utilizado.
Voltei. Pois é, meus caros. A integra da entrevista está aqui. Na madrugada deste sábado, faz três semanas que VEJA chegou às bancas noticiando a existência de um dossiê para intimidar as oposições. Vocês lembram, então, qual foi a reação: negação peremptória. Daquele dia a esta data, já se arrumaram ao menos cinco versões para tentar explicar o ocorrido, todas elas furadas, desmentidas pela realidade. Na entrevista coletiva, Dilma chegou a levantar a hipótese ridícula de que documentos da Casa Civil revelados pela Folha tivessem sido fraudados.Tarso agora não deixa dúvida. Ele não vê mal nenhum em fazer dossiês. Mais do que isso: ele os considera necessários e instrumentos regulares para fazer política. Ruim mesmo, diz ele, é vazar essas coisas — e, claro, com isso pretende manter a pantomima de arrastar para a lama algum político da oposição. Convocação, de imediato. Tarso tem de ser convidado a se explicar na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Saibam todos os políticos brasileiros — e não só os de oposição: este é um governo que acha legítimo e “necessário” fazer dossiês. Se isso vale para FHC, sua mulher e alguns de seus ministros, vale para qualquer deputado ou senador do Congresso Nacional. Tarso está tentando naturalizar a guerra suja. Está dizendo que é legítimo que funcionários do estado sejam mobilizados para produzir “documentos” contra políticos e administradores da oposição — e, não se enganem, se preciso, da situação também. Isso é estado policial. Ninguém mais está seguro. Esquerdopatia. Um trecho de sua fala encantadora chama especialmente a minha atenção. O repórter quer saber se a seleção direcionada de informações, como se fez, não é condenável. E o ministro da Justiça — notem bem: DA JUSTIÇA — responde: “Depende de para que é usada essa anotação. Se ela é usada para um fim ilegal, o que é ilegal é o fim e não o ato de fazer esta anotação.” Vamos generalizar o princípio “tarsiano”? Nenhum ato é, em si mesmo, condenável. Depende a sua finalidade. Vamos ao ponto extremo? Matar, por exemplo. Depende o fim. Sejamos menos drásticos: e roubar? Depende o fim. Os fins, como se vê, justificam os meios. É o triunfo do relativismo moral. Tarso, diga-se, já foi trotskista. Deve saber de cor e salteado o texto A Nossa Moral e A Deles, de Trotsky, em que o autor explica que, segundo o ponto de vista revolucionário, certas ações consideradas criminosas pela ótica burguesa são perfeitamente aceitáveis na perspectiva revolucionaria. Assim é: o que seria crime aos olhos dos demais partidos, para o petismo é só uma forma legítima de luta política.Num país normal, este senhor estaria no olho da rua nesta sexta mesmo. Seria demitido por telefone. No Brasil, vai continuar com o seu lero-lero autoritário. E é bom advertir: a partir de agora, deputado, senador, juiz ou cidadão comum, saibam todos, ninguém está com sua vida ao abrigo de um governo que defende o direito de fazer dossiês. Arremato afirmando, por mera dedução, que este que veio à luz é apenas o dossiê que se conhece. Por que não haveria outros nos porões da Casa Civil? Aliás, noticia o Estadão, a Casa Civil vive em clima é de guerra civil. É o fundo poço. Que o Congresso e a Justiça reajam. Ou fechem as portas."

quinta-feira, 10 de abril de 2008

A CONCEPÇÃO TOTALITÁRIA DE DEMOCRACIA (segunda parte)

B) A gênese sociopática do totalitarismo

“Enquanto comportamento e enquanto ideologia política o totalitarismo é um fenômeno moderno. É uma resposta inadaptada e sociopática aos desafios introduzidos pelo ingresso das massas na política em sociedades nas quais, por outro lado, o processo acelerado e radical de mudanças tecnológicas, crescimento econômico e secularização sociocultural produz descontinuidades e crises cíclicas nos valores e nos marcos de referência da ação, gerando, no homem comum, entre as elites e entre os intelectuais, níveis intoleravelmente elevados de incerteza e de percepção de ameaça.

Sob tais condições, um largo número de indivíduos experimentam a erosão, a descontinuidade e a ruptura dos vínculos que os integram aos grupos e às associações primárias e intermediárias, mergulhando na atomização que caracteriza a condição de massas.

O crescimento econômico rápido e a urbanização com ou sem industrialização geram expectativas e aspirações. As crises cíclicas de inflação, desemprego ou depressão, que interrompem ou perturbam subitamente esses processos, introduzem frustrações e decepções. Frustrações e decepções ampliam o universo das elites desajustadas e ressentidas, convertendo-as sucessivamente em contra-elites e em elites revolucionárias e colocando diante delas, massas disponíveis para manipulação.

A secularização e a racionalização crescentes destroem os valores e as normas tradicionais de ação mais rapidamente do que conseguem substituí-los por normas e valores modernos, inaugurando um intervalo de vazio normativo ou, literalmente, de anomia.

A universalização do acesso às informações incrementa o sentimento de igualdade que, como observara Tocqueville, os homens assimilam e apreendem mais facilmente do que a difícil arte de associar-se. Instalam-se assim o cenário e os atores dos movimentos totalitários de ruptura, à direita ou à esquerda, da ordem política.

Existem diferentes construtos analíticos que iluminam a direção e as implicações complexas dos processos de expansão tecnológica, de crescimento econômico, de urbanização, de industrialização, de secularização cultural e de modernização sócio-política, dos quais o totalitarismo é uma resposta sociopática. Dentre eles, o mais abrangente e penetrante, do ponto de vista psicossocial, é a teoria, elaborada por Talcott Parsons, das mudanças na natureza e na orientação da ação social e na distribuição de papéis sociais que se seguem à transição das sociedades comunais ou tradicionais às sociedades modernas.

Rigorosamente, nas sociedades tradicionais o homem percebe-se não como indivíduo mas como membro integrado por uma relação de pertencimento a uma totalidade comunal que lhe atribui desde cedo, adscritivamente, em virtude de seus atributos herdados, tais como condição ou status, uma posição e um papel determinados. Ao mesmo tempo, a sociedade tradicional provê aos seus membros uma normatividade prescritiva exaustiva, que contém padrões claros, definidos e precisos, modelos prontos e acabados, de resposta a cada espécie de situação, cuja observância ou transgressão lhes permite antecipar com inteira segurança as conseqüências de seu comportamento. Nas sociedades tradicionais as expectativas recíprocas dos sujeitos, quanto aos valores envolvidos nas relações sociais, são muito amplas mas, ao mesmo tempo, quase íntimas, difusas e não claramente definidas e delimitadas. Contudo, as expectativas quanto ao acesso às posições econômicas ou políticas são particularistas e adscritivas.

Ao longo do processo de modernização os laços primários, comunais, pessoais e concretos sofrem um processo de inevitável dissolução e são crescentemente substituídos por laços societários, voluntários mas contratuais, impessoais e abstratos. Na orientação da ação, marcos normativos prescritivos são substituídos por marcos eletivos, isto é, por critérios gerais de conduta que não dispensam a escolha e a responsabilidade individuais exigidas pela complexidade inesgotável das formas modernas de vida. Os indivíduos percebem-se, assim, entregues à incerteza, à ansiedade e, segundo Erich Fromm, ao medo que a liberdade suscita. No acesso a funções e a papéis e na avaliação da conduta, os critérios adscritivo-particularistas cedem lugar a critérios universalistas, fundados do desempenho medido pela competência e pela competição.

Nas sociedades tradicionais as ações contêm em si mesmas a sua gratificação emocional, enquanto a ação típica da sociedade moderna é afetivamente neutra e instrumentalmente subordinada a uma gratificação conseqüencial, que nela não se encontra. O homem tradicional orienta-se a partir de dentro e para dentro – isto é, da e para a família e os grupos primários e intermediários – enquanto o indivíduo moderno se orienta a partir de fora e para fora­ – isto é, da e para a sociedade e o mercado impessoais e anônimos.

Essas mudanças psicológicas fundamentais convertem a incerteza na característica central da modernidade: incerteza quanto ao comportamento dos outros, quanto às conseqüências da própria ação e quanto ao futuro. É impossível suprimir a incerteza e, se tal fosse possível, eqüivaleria a eliminar um poderoso estímulo e fonte de energia para a ação (vale lembrar aqui a afirmação de Freud de que o homem deve aprender a conviver com uma certa dose de angústia). A incerteza e a insegurança tanto quanto o medo são as fontes aparentes mais importantes da ansiedade do homem nas sociedades em processo de modernização e por este motivo ocupam um papel decisivo na gênese psíquica-social das ideologias totalitárias. Não é outro o motivo pelo qual o totalitarismo é, a rigor, um fenômeno moderno.

A incerteza encontra-se na medula de democracia pluralista e competitiva, a forma política por excelência da sociedade moderna. A higidez psicológica do homem moderno depende de sua capacidade de conviver tão racionalmente quanto possível com a incerteza. Entretanto, é possível e racional reduzir a incerteza. E reduz-se a incerteza com informação fatual, com informação contextual e com saber científico ou teórico. Mas há uma forma mágica e radical de reduzir ou mesmo eliminar a incerteza, que dispensa todo tipo de informação, ciência ou conhecimento orientado para a realidade: é a adesão emocional a uma teoria omnicompreensiva da história humana que ofereça a antecipação e a presencialização de um futuro imaginário. Como essa teoria não pode ser submetida ao teste ou à refutação empíricos, a sua lógica interna basta para assegurar a coesão intelectual que lhe permite prover uma incrível sensação de segurança psicológica.

Um dos traços cognitivos mais notáveis da mentalidade totalitária, observável em Rousseau e Marx, consiste em perceber a complexidade estrutural e a especialização funcional crescentes, que normalmente caracterizam o desenvolvimento tecnológico e econômico e a modernização sócio-política, como fenômenos patológicos. Essa percepção, derivada da identificação das repercussões desses fenômenos sobre as consciências individuais, se encontra na base do conceito de alienação, definida como cisão, distanciamento e estranhamento, entre os sujeitos humanos e as suas obras ou os produtos de sua interação e de seu trabalho.

No Discurso sobre as Ciências e as Artes, Rousseau concluiu que o progresso da cultura havia debilitado a virtude, corrompido os costumes, fragilizado o convívio social e tornado o homem infeliz.

Schiller descreveu pateticamente a alienação do homem moderno: “A satisfação está separada do trabalho, os meios estão separados dos fins e o esforço também o está da recompensa. Eternamente acorrentado apenas a um único fragmento do todo, o homem se considera apenas como se fosse um fragmento”.

Em Feuerbach a alienação consistia basicamente na cisão entre o indivíduo, finito, e a espécie, infinita.

Para Marx, a cisão entre o homem e a natureza, entre o indivíduo e a sociedade, entre a sociedade e o Estado, entre o público e o privado, entre o trabalho, produtor, e a sua obra, a mercadoria, são diferentes manifestações da alienação humana na sociedade capitalista e de classes, que o comunismo faria desaparecer.

Contudo, alguns fenômenos identificados como alienação constituem mecanismos fundamentais sem os quais nenhuma sociedade minimamente civilizada funcionaria. O que seria, por exemplo, uma sociedade na qual não houvesse a separação entre as esferas pública e privada? Seria uma sociedade que tivesse privatizado inteiramente o público? Mas, neste caso, o que aconteceria com uma sociedade civil sem norma ou instituição públicas? Mergulharia certamente na anomia e na autodestrutividade do estado na natureza. E, inversamente, o que seria uma sociedade que tivesse publicizado inteiramente as relações privadas? Seria a realização extrema do totalitarismo. E é essa certamente a utopia marxista." (continua)
(José Giusti Tavares - O totalitarismo tardio)

A CONCEPÇÃO TOTALITÁRIA DE DEMOCRACIA (terceira parte)

C) As quatro ondas do totalitarismo

“Recorrente na história política do Ocidente, o totalitarismo emergiu, entre o fim da Idade Média e a metade do século XX, em quatro momentos diferentes, em cada um dos quais povos colocados sob condições excepcionais de miséria e privação reagiram contra formas materiais e intelectuais modernas de vida às quais associavam, real ou magicamente, o seu infortúnio, deixando-se envolver por mobilizações revolucionária fundadas no apelo a escatologias primitivas.

O primeiro momento ocorreu ao longo das mudanças econômicas, tecnológicas, sócio-políticas e culturais que atravessaram o Renascimento e a Reforma, combinando o racionalismo crítico e o nacionalismo religioso. Sob tais condições, a Igreja deslizara adaptativamente para compromissos com o humanismo e a mundanidade, num quadro de valores que incluía a sensualidade, o luxo, a ostentação e a idéia da salvação pelas obras. A Reforma reagiu com uma formidável regressão, retomando três idéias fundamentais de Agostinho, o bispo de Hipona. A primeira e a da maldade intrínseca do homem que, incapaz de salvar-se pelo próprio mérito e pelas próprias obras, salva-se apenas pela graça de Deus. A segunda é a do dualismo teológico-moral irreconciliável entre a Civitas Terrena, essencial e irremediavelmente corrupta, mergulhada na sofisticação e no pecado, e a Civitas Dei, que concentra em si a integridade e a simplicidade de Deus e do Bem, entre as quais não há neutralidade ou indiferença possíveis. E a terceira é a de que a história universal anunciava o triunfo final próximo da Civitas Dei, percebendo-o como um retorno à Idade de Ouro ou à perfeição que precedera à queda originária do Homem.

Quebrado o monopólio do magistério divino pela Igreja, essa concepção maniqueísta da história assumiu diferentes variações, sobretudo na teologia popular das seitas cristãs milenaristas que mobilizaram as insurreições camponesas comunistas do século XIV à metade do século XV: os lollards, inspirados em John Wiclef, na Inglaterra; os anabatistas, em Thomas Munzer, na Turíngia; e os taboritas, em John Huss, na Boêmia. Essas seitas, conhecidas pelo nome de quiliasmo, possuíam em comum traços intelectuais que comporiam a weltanschauung da democracia totalitária: a convicção de que a história da salvação humana é a de uma luta permanente entre Bem e Mal absolutos e de que, encontrando-se inteira e irremediavelmente corrompida, a sociedade não pode ser melhorada e deve ser, ao contrário, destruída para apressar o retorno inevitável do Reino de Deus, da Perfeição e da Justiça na Terra, que pertencerá aos pobres e austeros. As implicações totalitárias do quiliasmo são, pois, muito claras.

A teologia moral cristã medieval, ulteriormente retomada pelo anglicanismo e por Locke, percebia a natureza humana ao mesmo tempo em termos de falibilidade e perfectibilidade, o que explicava a possibilidade de aperfeiçoar a sociedade por meio de melhorias incrementais. Com a Reforma, essa perspectiva foi substituída pela crença agostiniana na natureza irremediavelmente degenerada do homem e no antagonismo entre Bem e Mal absolutos, o que reduzia toda mudança política a uma única alternativa: a redenção humana pela violência revolucionária, convertida em princípio ético supremo. Mudanças modernizantes passaram a ser identificadas não só como conciliação mas com o progresso do Mal. E a recuperação do primitivo paraíso perdido, o retorno palingenético, tornou-se a aspiração moral superior. (Palingenético refere-se ao eterno retorno)

No segundo momento, a democracia totalitária cristalizou-se, como desdobramento antitético do Iluminismo e do racionalismo liberal francês, na Teoria Mítica da Vontade Geral, concebida por Jean-Jacques Rousseau como a antecipação, pelo Legislador e Guia Revolucionário, de uma ordem natural latente que, entretanto, deverá ser trazida do reino da virtualidade para o reino da realidade como resultado final e irresistível da história humana: uma ordem única e unívoca à qual a massa comum dos homens, mergulhada no mundo da consciência imediata a aparente, não tem acesso, mas para a qual a sua liberdade a as suas ações devem ser orientadas ou mesmo compelidas pelo estadista revolucionário, que detém a consciência antecipada e privilegiada daquela ordem, do processo que conduz à sua realização e dos interesses reais do homem comum, que este contudo desconhece. Trata-se da mais acabada concepção, anterior a Marx, de um totalitarismo político edificado sobre uma teoria messiânica secular da história humana. Ao longo da segunda metade do século XVIII essa concepção percorreu uma trajetória de clara continuidade que, atravessando o pensamento de comunistas estatistas, como Diderot, Helvetius e Mably, chegou à ditadura jacobina do Terror e, no governo termidoriano que seguiu o esmagamento daquela, à Conspiração dos Iguais, conduzida por Grachus Babeuf e Philippo Buonarroti.

No terceiro momento, no século XIX, já sob o impacto da Revolução Industrial, a teoria e a estratégia Babouvista da conspiração e do golpe insurrecional de Estado inoculou-se no comunismo moderno com Auguste Blanqui. O blanquismo dirigiu política e militarmente a Comuna de Paris de 1871 e dele Marx e Lenine herdaram a concepção da ditadura do proletariado.

Enfim, num quarto momento, como seqüela do imperialismo europeu e da primeira guerra mundial, o totalitarismo triunfa, à esquerda, com a revolução bolchevista, na Rússia, e subseqüentemente, à direita, com o fascismo italiano e com o nazismo alemão.

O êxito do comunismo na Rússia e o do fascismo na Itália ilustram claramente algumas das proposições acerca da gênese do totalitarismo. Tanto a sociedade russa quanto a italiana exibiram à época que imediatamente precedeu a fermentação totalitária um ritmo consideravelmente elevado de crescimento econômico, que foi logo coarctado, na Rússia em virtude do desastre militar e na Itália porque, vitoriosa na guerra, perdera o acesso às áreas de controle colonial e de mercado externo capazes de assegurar-lhe a continuidade do crescimento industrial. Largos segmentos sociais foram reduzidos à condição de massas e logo mobilizados por elites revolucionárias: na Rússia, o campesinato, os soldados e um pequeno número de operários urbanos e, na Itália, as classes médias urbanas e os ex-combatentes, que não conseguiam reintegrar-se à economia e à sociedade, o que explica as direções, opostas, dos dois movimentos.

De qualquer modo, não há dúvida de que a matriz dos regimes totalitários contemporâneos foi o comunismo russo. Sidney Hook observou com acuidade que “culturalmente, e à luz de seu desenvolvimento, o leninismo deve ser encarado como o primeiro movimento fascista do século XX”. E Rudolph Hilferding, o notável economista marxista que edificou, com anterioridade em relação a Lenine, a teoria do imperialismo, definiu a economia russa, em 1940, como “uma economia de Estado totalitário, isto é, um sistema do qual se aproximam cada vez mais os sistemas econômicos da Alemanha e da Itália”.

O socialismo marxista moderno e o quiliasmo medieval possuem em comum o fato de que produzem a presencialização emocional, como potência psíquica irrecusável, do futuro desejado. Pois o marxismo provê uma teoria secularizada, racional, auto-suficiente, totalizante e omnicompreensiva que percebe a história humana como um movimento irresistível em direção a um desenlace escatológico e que, deduzida a partir de juízos insuscetíveis de qualquer contraste com a realidade imediata, assume, entretanto, a pretensão de Ciência, substituindo com vantagem, nos séculos XIX e XX, como fonte de energia revolucionária, destruidora da ordem, o socialismo religioso telúrico do quiliasmo. Ao eliminar a incerteza, reduz ou suprime a ansiedade, produz segurança e, ao propor o futuro desejado como inevitável, induz à sua presencialização como força de negatividade, gerando energia extática e capacidade inabalável para a luta revolucionária.

Para aquelas pessoas incapazes de suportar a condição trágica da incerteza, do risco e da insegurança, a religião telúrica e o quiliasmo provêem, na cultura moderna, um remédio que nem a ciência nem a religião extraterrena conseguem suprir.

Como perceberam Blaise Pascal, Arthur Schoppenhauer e Miguel de Unamuno, a religião genuína, sobrenatural, é a expressão da perplexidade e do sentimento trágico da vida que resultam do contraste e da tensão entre a alma, que aspira ao infinito, e a finitude, a contingência e a dor moral. Mas ao mesmo tempo ensina o homem comum, não intelectualizado, a conviver com a imperfeição e as misérias da existência. A religião secular, política, essa sim, é o ópio destilado pela arrogância de elites desajustadas, compulsivamente movidas pela destrutividade do instinto de morte.

Duas observações se impõem acerca da natureza da política e da ciência, bem como das relações entre ambas. A política, enquanto atividade, nada tem a ver com a ciência nem substitui o critério da ética. Não é o mecanismo da decisão, pelo voto ou pela violência, entre o verdadeiro e o falso ou entre o bem e o mal. É o domínio no qual versões alternativas acerca do interesse público competem e negociam entre si pela posse ou pelo controle do governo e das decisões legislativas. É também um método de viabilizar e resolver o conflito, a competição e a negociação entre interesses particulares diferentes e entre versões alternativas do interesse público que, compartilhando o consenso acerca dos valores, das regras e das instituições inerentes àquele método, percebem-se reciprocamente como legítimos. Assim, no funcionamento da democracia constitucional dissenso e consenso são igualmente legítimos e necessários. Nenhuma parcialidade ou pretensão política pode invocar a ciência em seu benefício e em detrimento das demais. Por seu turno, a ciência nada pode demonstrar acerca da legitimidade de valores competitivos e nada pode dizer que justifique a decisão entre fins alternativos.

A este respeito, importa refletir sobre o exemplo da social-democracia européia. Numa conferência pronunciada na Universidade de Berlim e publicada sob o título Como é possível o socialismo científico?, Eduard Bernstein afirmou que o socialismo é essencialmente uma opção entre valores políticos, uma decisão entre fins alternativos, um projeto político que, competindo com outros pelo governo, não pode arrogar-se legitimamente em seu benefício e em prejuízo dos demais a infalibilidade da ciência. Em seu primeiro livro, As hipóteses do socialismo e a tarefa da democracia socialista, Bernstein já havia argumentado que as leis férreas da economia política marxista – a concentração crescente do capital e a miséria crescente do proletariados, o desaparecimento das classes sociais intermediárias, as crises de superprodução e de subconsumo e, enfim, o colapso final do capitalismo – perdiam cada vez mais a sua plausibilidade diante dos rumos assumidos pelo desenvolvimento econômico europeu e internacional.

E, finalmente, no Socialismo evolucionário, livro publicado em 1899 e imediatamente famoso, Bernstein expressou pela primeira vez no movimento socialista europeu a suspeita, até então oculta pelo constrangimento sectário, de que a previsão, por Marx, da catástrofe final, mas sempre iminente do capitalismo, à qual seguir-se-iam mais ou menos rapidamente a revolução proletária, não contava com qualquer apoio nas evidências históricas das últimas décadas.

...

Em 1959, o Partido Social Democrata Alemão proclamou clara e enfaticamente, no programa adotado pelo Congresso de Bad-Godesberg, que não professava nenhuma crença religiosa, concepção do mundo ou teoria político-social que contivessem verdades últimas e exclusivas, argumentando que a sua renúncia a qualquer credo ordenador fundamentava-se na convicção de que partidos confessionais e Estado confessional comprometem irremediavelmente o pluralismo do convívio constitucional.

Esta concepção, essencialmente correta, sustentada pela social-democracia, é crucial para distinguir entre si partidos que efetivamente são e partidos que não são constitucionais. E isso singelamente porque a democracia constitucional supões não só o consenso acerca de regras e do método do convívio político mas, ao mesmo tempo, a legitimidade do dissenso, isto é, a diversidade de interesses e o pluralismo de fins e de concepções acerca da política que competindo entre si pelo governo, se reconhecem como igualmente legítimos.

Em suas origens, a social-democracia separou-se da tradição socialista revolucionária precisamente à medida que renunciou, formalmente e por princípio, não apenas à via revolucionária armada, conspiracional e insurrecional, mas à escatologia de fins últimos em cuja busca todos os meios, se eficazes, são considerados bons e, finalmente, à teoria do partido como portador ilustrado não dos interesses que efetivamente, aqui e agora, possuem os operários, mas dos interesses que ele predica à classe operária como os interesses reais, embora virtuais, daquela, bem como da missão histórica que, necessariamente reservada àquela, cabe à intelectualidade revolucionária do partido revelar e ensinar. A social-democracia rejeita a concepção de um partido socialista que se auto-presume portador dos interesses virtuais de uma classe, ainda que essa classe seja o operariado, e que busca ocupar o Estado para colocá-lo sob a sua direção hegemônica, tendencialmente monolítica e exclusiva. E, enfim, à medida que romperam com esses componentes totalitários, diferentes vertentes do socialismo europeu convergiram para a social-democracia.



D) O totalitarismo tardio: a quinta onda

Entretanto, sob as condições semibárbaras da Rússia do início do século XX e, logo, do isolamento e da polarização que acompanharam a guerra fria, o leninismo não apenas reteve mas aprofundou os componentes totalitários do socialismo primitivo. Mas no último quartel do século XX, a democracia totalitária não resistiu ao impacto de dois fenômenos que, independentes entre si, atuaram em sinergismo na mesma direção: a irreversível erosão do marxismo ocidental e a súbita desintegração do mundo comunista.

Ainda assim, o marxismo revolucionário não desapareceu com o refluxo. Ao contrário, sobreviveu dissimulado pela sua dispersão e pelo seu encapsulamento adaptativo em miríades de exotismos intelectuais que em todo o mundo se infiltram na Universidade, na Ciência, na Filosofia, na Teologia, na epistemologia, na Educação, na Arte, na Psiquiatria e na Medicina. E o ressentimento, alimentado pela frustração e pela sensação de orfandade, tornou-o ainda mais voluntarista, arrogante e agressivo, o que explica uma quinta e última onda: a do totalitarismo tardio.

Por outro lado, como observou Sartori, o ritmo e a intensidade em que se operou o desencantamento com a ilusão revolucionária do totalitarismo foram menores nos países distanciados e periféricos em relação às sociedades mais avançadas da Europa e aos Estados Unidos. Este fenômeno explica em grande parte a sobrevivência residual do marxismo revolucionário na América Latina e, em particular, a expansão, no Brasil, sobretudo entre as classes médias tributárias do Estado e do setor público da economia, na universidade e entre operários e camponeses, do Partido dos Trabalhadores, que ainda não renunciou explicitamente à concepção que faz de si mesmo como partido de fins últimos.

Pois quaisquer que sejam as tendências em que se divide internamente, o PT possui em comum ainda hoje uma concepção acerca da natureza e dos fins da política, bem como acerca de si próprio, que – dissimulada pela evocação da modernidade, pelas concessões convencionais ao anti-estalinismo e, mais recentemente, por uma estratégia de ambigüidade – é essencialmente a mesma que peculiarizou o socialismo messiânico primitivo, o marxismo e o leninismo.

Tarso Genro afirmou em 1988 que o seu partido deveria apropriar-se da teoria “de Rosa, Lênin, Gramsci, Lukács e Bloch”. A frase não é apenas uma exibição aleatória de marxologia; ao contrário, aponta para o voluntarismo, a violência e a ditadura como meios e a escatologia como fim, Importa não esquecer a advertência, feita por Marcuse, de que, nesta equação estratégica, os meios contaminam e pervertem os fins, substituindo-os, cedo ou tarde, no comportamento dos sujeitos. O PT não é um partido político no sentido convencional, que a tradição das democracias constitucionais do Ocidente registra. Não é uma organização cujos membros se associam para disputar, com base num programa concreto e específico, e por meio de eleições regulares periódicas, o exercício consentido e transitório do governo. É uma organização que busca, ao mesmo tempo, pela via institucional e gradual e pela violência revolucionária, a destruição da ordem política constitucional “burguesa”.

Na concepção política do PT simplesmente não há lugar para a distinção complexa, delicada e sutil – sobre a qual, entretanto, se ergue a democracia constitucional – entre Estado (instituição permanente que detém a soberania, isto é, o monopólio da capacidade de regulação do convívio societário), governo (conjunto de agências e de agentes que partilham o exercício das diferentes funções da soberania para a realização do interesse público), e partidos (organizações que competem periodicamente entre si pela ocupação temporária, com base no consentimento do eleitorado, das agências governamentais). Do ponto de vista do materialismo histórico, essa distinção é certamente uma construção formal, que se invoca com malícia e se observa por ingenuidade.

É enganosa, por outro lado, a versão de que a resistência suscitada pelo PT no Rio Grande do Sul (no tempo em que Olívio Dutra foi governador), consiste simplesmente em ter introduzido o governo de partido numa sociedade que perdeu ou nunca teve esse tipo de tradição. O party government, isto é, o governo confiado à responsabilidade constitucional de um único partido – que se constitui nos regimes bi-partidários clássicos, como o Reino Unido e os Estados Unidos – é a forma mais estreita de identidade entre partido e governo admissível numa democracia constitucional. Nada tem a ver com essa forma o fenômeno, que se observou no Rio Grande do Sul, de um partido que assimila, absorve e substitui o governo, confundindo-se literalmente com o próprio Estado.

Portanto, quando no governo do PT um ativista partidário, convertido em servidor público, emprega uma folha de papel com o timbre do Estado para correspondência do partido, não se trata apenas do comportamento de alguém despreparado para a função pública. Trata-se do comportamento de um quadro partidário condicionado, pelo convício ideológico cotidiano e pela compulsão totalitária, para a regressão a formas psíquicas pré-civilizadas de interação política.

A primeira, embora não a mais importante, manifestação da dificuldade insuperável para o PT de conviver com a democracia constitucional foi a relutância dos constituintes desse partido em assinarem a Constituição de 1988, obrigando-se formalmente ao contrato constitucional sobre o qual se esquia o regime democrático. Assinaram-na apenas sob reserva, depois de terem votado NÃO, por unanimidade, ao texto constitucional final, justificando formalmente aquela atitude com o argumento de que o “PT, como partido que almeja o socialismo, é por natureza um partido contrário à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo, e rejeita a imensa maioria das leis que constituem a institucionalidade que emana da ordem burguesa capitalista, ordem que o partido justamente procura destruir”, conforme circular do Diretório Nacional do PT.

Entende-se essa atitude.

Em dezembro de 1987, nas Resoluções Políticas do V Encontro Nacional, o PT propusera como objetivo político “a liquidação da burguesia como classe”, que “compreende a liquidação de suas organizações civis e de seu Estado” como prelúdio para “um Governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto um Governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária” (Resoluções n.º 50 e 75).

Ao longo de duas décadas de existência o Partido dos Trabalhadores empreendeu um crescimento eleitoral continuado, sem qualquer reversão intermitente e a uma taxa superior ao crescimento do número de votantes, sobretudo no Sudeste e no Sul e, em particular, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Entretanto, durante todo esse tempo, suficiente para explicar-lhe a expansão eleitoral, não conseguiu desvencilhar-se de suas origens ideológicas: o leninismo, o trotskismo e o cristianismo quiliástico. Não renunciou inequivocamente à sua pretensão de partido confessional, portador e revelador de uma teoria única, unívoca e omnicompreensiva acerca da sociedade e do futuro. Não se desfez dos métodos conspiratoriais e insurrecionais de luta política. Ao contrário, possui um braço armado – o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) – que trava, no campo, a guerra de posição, com o estilo de um fascismo vermelho.

Três são as mais importantes entre as diferentes tendências internas do PT. A Articulação, de Luiz Inácio da Silva, Olívio Dutra, José Dirceu e Eduardo Suplicy, reúne sindicalistas históricos e social-democratas, padres e leigos da Igreja progressista e comunistas do PCB e do PC do B, votando a favor do Projeto Final e da assinatura da Constituição. A Nova Esquerda, de José Genoíno e Tarso Genro, intelectuais revolucionários marxistas-leninistas-maoístas que, dissidentes do PC do B, se haviam organizado no Partido Revolucionário Comunista (PRC), votou contra o Projeto Final mas a favor da assinatura da Constituição. E, finalmente, a Democracia Socialista, organização trotskista vinculada à Quarta Internacional Comunista, da qual fazem parte Raul Pont, Miguel Rosseto, Paulo Torelly, João Verle e o ex-comandante da Brigada Militar (a PM gaúcha), Roberto Ludwig, é a tendência mais coerentemente revolucionária do partido: opôs-se ao Projeto Final e à assinatura da Constituição.

No Rio Grande do Sul, eleito para o governo em segundo turno, numa competição equilibrada, por diferença diminuta, e contando com menos de um terço das cadeiras da Assembléia Legislativa, o PT se comporta com a arrogância própria de quem obteve a vitória numa revolução armada.

Enquanto os diferentes partidos comunistas europeus movimentam-se claramente em direção à social-democracia, retendo do comunismo apenas o halo nostálgico, o PT continua a perceber-se não apenas como um partido monoclassista mas como o representante presumido dos interesses que predica aos trabalhadores e como portador e revelador de uma teleologia histórica imanente capaz de conduzi-los, através de infindáveis lutas de classes, à construção de uma ordem social final e ideal.

Ao crescer em eleitorado e em organização o PT distanciou-se progressivamente do sindicalismo industrial do ABC, no seio do qual se constituíra, não para converter-se à idéia da democracia parlamentar, mas para adotar uma perspectiva política corporativista, patrimonialista e estatizante, própria das classes médias clientelísticas, tributárias do emprego público e do setor estatizado da economia.

Num artigo publicado em março de 1989, “A composição social das lideranças do PT”, Leôncio Martins Rodrigues definiu-o como “um partido de classe média assalariada, notadamente de profissionais liberais e outras profissões intelectuais, sendo minoritária tanto a proporção de trabalhadores manuais como a de membros das classes altas, e praticamente inexistente a de proprietários (pequenos, médios ou grandes)”.

Com a rápida e profunda liquidação do setor público da economia e com a deterioração da educação e do serviço públicos, que se operaram ao longo dos anos 90, essas classes médias forma submetidas à dolorosa erosão dos fundamentos do seu modo de vida, tornando-se ainda mais sensíveis e receptivas aos apelos do voluntarismo revolucionário insurrecional contido na simbiose de leninismo e trotskismo que parecia ter sido deixada de lado. Como conseqüência, o pragmatismo sindicalista inicial, que poderia ter cedido lugar à política social-democrática, foi substituído, no comportamento do PT, por uma versão nativa da estratégia da dualidade de poder, originariamente concebida por Trotski e Lenine: ao ocuparem o Estado pela via das eleições e do emprego público, os quadros daquele partido buscam a fragilização e, logo, a destruição revolucionária da ordem político-institucional burguesa, pressionando-a por dentro e de cima, pela via da representação parlamentar e da ocupação de governos (federal, estadual e municipal), e ao mesmo tempo por fora e de baixo, por obra da hegemonia que detêm, através da militância, sobre a participação política popular.

Entretanto, precisamente porque se situou no coração da concepção teleocrática da política e da concepção totalitária da democracia, o Partido dos Trabalhadores atraiu para si, explorando-as, algumas variedades telúricas de cristianismo. Engels, Kautski, Bloch e os historiadores marxistas, em geral, haviam concluído que a religião – que Marx percebera como ópio do povo – convertera-se, com o cristianismo quiliático, numa poderosa fonte de excitação revolucionária. Nos anos 80, os trotskistas, leninistas e sindicalistas revolucionários que fundaram, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores, deram-se conta imediatamente de que a imagem quiliástica da realização terrena do Reino de Deus e da Justiça, difundida pelo clero católico das pastorais da terra e das comunidades eclesiais de base, teria a propriedade de ativar, entre os despossuídos do campo e da cidade, uma compulsão psicossocial e uma energia ilimitada para a guerra revolucionária.

A síntese do quiliasmo das pastorais da terra encontra-se em Frei Betto. “A salvação”, afirma, “não é alguma coisa que se restrinja ao outro mundo ou a outra vida. Ela começa a se efetuar aqui, onde o Reino de Deus já se fez presente em Jesus e permanece entre os povos. No tecido da história, a salvação de Deus se traduz em libertação dos homens. Não basta uma libertação pessoal e interior do homem, que não transforme as estruturas eivadas de pecado em que ele vive e pelas quais se sente condicionado. Por isso esta libertação tem necessariamente um alcance político, dentro de um contexto econômico e social”.

Mas Frei Betto vai muito além do quiliasmo medieval ao propor que “do trabalho de organização popular feito em torno das comunidades eclesiais de base é necessário passar à mobilização política centrada num instrumento de representação dotado de uma proposta programática menos genérica que a da pastoral e mais imediatamente vinculada à mudança de poder na sociedade. Esse instrumento é o partido político, conduto entre a sociedade civil e a sociedade política – o aparelho de Estado”.

Num livro sobre Fidel Castro, o frade reproduz com aprovação entusiasmada a sentença do ditador, segundo o qual “os ensinamentos de Cristo são altamente revolucionários e coincidem totalmente com o objetivo de um socialista, de um marxista-leninista”. Não se trata apenas do equívoco cômico de um sacerdote tão despreparado quanto atrevido. Ao contrário, pronunciamentos dessa natureza tiveram um papel político importante. Graças ao envolvimento do clero católico progressista o PT conseguiu emergir do enclave sindicalista do ABC, no qual esgotara toda a sua possibilidade, nacionalizando a sua base eleitoral e expandindo-a às classes médias.

Os motivos em virtude dos quais o PT concorre às eleições sem um programa específico de governo são bem m ais profundos do que freqüentemente se supõe. Num documento de 1980, contraditoriamente intitulado Pontos para a Elaboração do Programa, esse partido reconheceu que, a rigor, “nem pode nem deve ter um programa de governo para quando chegue ao poder porque a proposta do PT não é administrar o capitalismo e suas crises supostamente em nome da classe trabalhadora”.

Em texto publicado na revista oficial do partido – Teoria e Debate – o então coordenador do Plano de Ação Governamental de Luiz Inácio da Silva admitiu que o PT ainda não resolvera a “questão crucial de saber se o programa estaria voltado para assegurar a governabilidade, para ser cumprido de fato e atingir os objetivos de governo, ou se seria um programa sabidamente irrealizável, que apenas ajudaria a mobilizar as massas e preparar o governo e os trabalhadores para a ruptura que inevitavelmente iria acontecer.”

Do ponto de vista do PT, a idéia de um programa de governo é contraditória porque os seus objetivos não são realizáveis por meios governamentais mas apenas por meios revolucionários. Em outros termos, porque não possui objetivos de governo mas de revolução.

É esse fenômeno mais profundo que explica o fato de que, quando no governo, como no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (e outras situações), o Partido dos Trabalhadores parece movido, em seu núcleo organizacional e ideológico, por uma compulsão interna irresistível para a ação extraconstitucional, para a violação sistemática da Constituição e das Leis e para o desprezo pela representação legislativa e pelas decisões do Poder Judiciário. Nos caso em que, eleito pelo PT, o governo dele se autonomiza ou distancia, inaugura-se um conflito impredictível entre um e outro.

No PT, tão importante quanto as seitas em que se divide é o enfrentamento interno recorrente e com desfechos sempre imprevisíveis entre a frente parlamentar, socializada pelo convívio com as instituições políticas, para o comportamento constitucional, e o aparato autoritário da organização, refratário à democracia”.

(José Giusti Tavares – O Totalitarismo Tardio)

quarta-feira, 9 de abril de 2008

O ZOOLÓGICO DO PLANALTO

A fauna planaltina incorporou mais um espécime à sua já vasta coleção. Pelo que informa um ilustre senador nordestino, aos porcos, baleias, ratos, lobos e inumeráveis aves de rapina junta-se, agora, uma galinha cacarejante, todos sob o comando geral de um poderoso bicho-preguiça. O Senador Mão Santa teve uma tirada de gênio ao ver no comportamento da ministra da Casa Civil – a esquisita Dona Dilma – traços parecidos com o modo de ser usual de uma galinha. Não de “galinha” no sentido mais popular (referência pejorativa para mulheres e, até, para homens, que mudam constantemente de par, num comportamento erótico meio promíscuo). Esta tendência certamente não caberia no perfil da madame, ao que parece. No entanto, caso despontasse algum pendor luxurioso, não seria da conta de ninguém. Causaria mesmo admiração e a tornaria, com certeza, uma pessoa mais próxima do comum dos mortais. Portanto, a alusão do senador Mão Santa não se referia a qualquer conotação sexual mas, tão somente, ao ridículo marcante que esta ave protagoniza no dia a dia.

É curioso observar que não se tem notícia de envolvimento de mulheres políticas (nem no Brasil nem em outros lugares do mundo), com escândalos de fundo sexual. Coisas como prática de boquete (como Bill Clinton e sua charmosa estagiária), ou outras formas de galinhagem costumeiras na tradição americana. No Brasil, são famosos os episódios referentes ao presidente Juscelino e a outros presidentes mais, que a imprensa costuma divulgar nem sempre com discrição. Mulheres públicas, porém, não se dedicam a comportamentos eróticos transgressores. É como se elas se transformassem (no exercício de mandatos ou de funções de alta relevância política), em breves contra a luxúria. Também, convenhamos, fica difícil imaginar uma orgia com gente como Dona Dilma ou a senadora Ideli Salvati. Caso acontecesse, ficaria mais parecido com um filme de Zé do Caixão que com um filme de Pasolini.

Para quem imagina que galinha seja uma inocente criatura de Deus é bom saber que ela é um dos mais formidáveis predadores da natureza. Onde ela vive não prosperam os insetos e nem a mais resistente tiririca de jardim. A penosa é um bicho tão singular que cisca e come o tempo inteiro além, naturalmente, de cacarejar e botar, mesmo que não exista um galo para lhe dar o tratamento que todos os machos propiciam às fêmeas sob seu domínio. Na ausência do galo, seus ovos são tão estéreis quanto um fóssil de dinossauro. Mas ela continua a botar, cacarejante da vida, como se daquele ovo pudesse sair alguma coisa significativa. Um ovo assim meio barroco. Um ovo falso que parece um ovo de verdade. Por fora, parece que é, mas por dentro não é. Para efeito de comparação, um ovo similar ao tal do PAC que a galinha do planalto vai cacarejantemente botando nos grotões brasileiros. Porém, um ovo infértil que, apesar de sugerir uma vasta criação futura, ficará reduzido à sua casca, ou restos dela, após ser chupado pelos tantos parasitas que ali ao lado o observam com olhar guloso.

É realmente um pessoal formidável, este que se alinha ao petismo e seus assemelhados! A um observador externo eles dão a impressão de estarem querendo mostrar que as fábulas orwellianas não eram fantasias de uma mente criativa. Muito antes pelo contrário. Se em “1984” o inglês George Orwell profetizou um futuro totalitário e seu modus operandi, em outra novela não menos famosa – “A Revolução dos Bichos” – ele imaginou uma revolta dos animais em busca de maior igualdade para todos. A resultante final, contudo, acabou numa situação onde todos os bichos ficaram iguais, mas alguns deles ficaram mais iguais que outros. Claro que os “mais iguais” eram os porcos, o animal cujo caráter mais se aproxima do caráter humano. Os porquinhos, por exemplo, que vivem a se refocilar nas cercanias do Planalto confirmam a percepção realista de Orwell. As sujeiras de Lula, Zé Dirceu, Valdomiro Diniz, Gushiken, João Paulo, Severino, José Genoíno, Mercadante, Salvatti, Jucá, Sarneys, Calheiros, Silvinho, Berzoini, e mais uma listagem que daria para compor verdadeira lista telefônica, têm aspecto, cheiro e cor de suínos. Melhor sorte teria tido Hércules no passado (quando foi instado a limpar a estrebaria de Áugias), que o Hércules do futuro a ser convocado a despoluir a pocilga instalada em Brasília . Cheiro de cavalo, já dizia velho general, é mais tolerável que cheiro de gente. De porco, então, nem se fala pois o porco se assemelha ao bicho homem até em sua fisiologia. Já se observou, aliás, que cuidadores de porcos ficam impregnados da sua pestilência intrínseca. É algo tão forte que não há sabão nem detergente que dê conta de eliminar a murrinha de chiqueiro que gruda nas roupas, nos cabelos e no mais profundo da pele dos que vivem ao seu lado. Animal impuro e amaldiçoado, não por acaso os demônios se encarnaram nele, conforme ordem divina. Glutão, onívoro e obsceno a perversa criatura só difere do homem em uma coisa: os porcos quando bebem não roncam!

O espírito de galinha que tomou conta da sinistra Dilma pode ser considerado, no entanto, uma evolução de outro espírito que já a possuiu em outros tempos: o espírito de porco, por ocasião do chamado regime militar. Naquela época Dona Dilma – embebida de furor e intolerância inauditos – participou de ações que, segundo consta, iriam servir para a derrubada dos governantes de então. Entre estas ações estavam seqüestros e assaltos a cofres de particulares e de bancos, bem como atentados armados que resultaram em mortes e mutilações entre os diretamente envolvidos (além de inocentes eventuais que estivessem próximos dos eventos). Para se fazer um paralelo com a atualidade, nada muito diferente do que hoje fazem as FARC da Colômbia, cujos atos são notoriamente conhecidos por todo o mundo: tráfico de drogas, contrabando, rapto de inocentes, chantagem, assassinato, extorsão, furto, roubo, formação de quadrilha e uma penca de outros crimes acobertados por uma capa romântica de guerrilha. A desfaçatez dos capos petistas, no entanto, não encontra limites quando alegam um rigoroso respeito à lei do sigilo para não prestar contas das velhacarias presidenciais. E isto é mais surpreendente quando sua história é marcada pelas mais comezinhas violações a simples normas civilizatórias ou quando transgridem abertamente preceitos constitucionais. Fraudes deliberadas e difusão de informações falsas também fazem parte do cardápio petista. Vale a pena relembrar acontecimentos durante a CPI dos “Anões do Orçamento” quando o então deputado José Dirceu patrocinava a divulgação de dados sigilosos de outros deputados. Uma de suas maiores estripulias provocou a cassação do deputado Ibsen Pinheiro, acusado de movimentação criminosa de fundos em sua conta bancária. A fraude, descoberta mais tarde, foi arquitetada no gabinete de Zé Dirceu por ninguém mais que um tal de Valdomiro Diniz, dirigente da CUT posto à disposição do deputado. Este Valdomiro é o mesmo achacador de bicheiros e de bingueiros que, no início do primeiro mandato de Lula, tinha a função de Vice-ministro da Casa Civil encarregado que era de fazer negociações com o Congresso. A destruição da carreira parlamentar do gaúcho Ibsen Pinheiro não mereceu da corja de falsários nem um singelo pedido posterior de desculpas. Também uma simples inspeção nos artigos e livros escritos por Tarso Genro e José Genoíno, por exemplo, mostraria a quem quer que seja o teor do projeto totalitário que perseguem. Não se tem notícia, aliás, de qualquer auto-crítica por parte dos dois últimos autores a respeito das idéias que defendiam e que, portanto, ainda devem defender, supondo continuarem ambos adeptos do credo leninista/stalinista que inspirava suas originais afiliações partidárias, respectivamente, o Partido Comunista Revolucionário – PRC – e o Partido Comunista do Brasil – PC do B.

Talvez se possa verificar, pelos últimos acontecimentos noticiados pela imprensa, que Dona Dilma tem mesmo é uma incrível capacidade mediúnica. Suas enfáticas declarações negando a feitura de mais um dossiê para chantagear adversários são extremamente semelhantes àquelas ditas pelo inefável Professor Delúbio (o matemático que das quatro operações só era versado em uma), quando este dizia em alto e bom som para negar seu envolvimento com o mensalão: “O PT não rouba nem deixa roubar!” Dona Dilma, por sua vez, agora diz que “o governo não faz dossiês contra adversários nem deixa fazer”. Seria risível se não fosse patético, esta que é a verdade. Em que pese sua formação científica, o Professor Delúbio se comportava como uma criança flagrada furtando frutas no quintal do vizinho. Apelando para o pensamento mágico, ele negava a realidade como se o discurso tivesse a propriedade de anular os fatos. E à cobrança pelos seus atos ele retorquia dizendo: “as frutas não estão lá; o quintal não existe; eu não estou no quintal do vizinho; eu não estou afanando coisa de ninguém; para ser mais explícito, o mundo não existe, eu não existo, nada, enfim, existe”. Parece a fala metafísica de um budista tresloucado pouco antes de atingir a salvação do Nirvana. Pois o Karma deste famigerado professor de matemática deve ter-se transmigrado para o corpanzil da ministra. Só isto pode explicar a repetição quase que literalmente das delúbicas palavras. Ela tem, até, na empostação da voz um timbre delubiano. Para usar a imagem proposta pelo senador Mão Santa, ela cacareja o mesmo pio espesso e redundante do professor goiano, num decalque daquele robô de “Perdidos no Espaço” e seus braços sacolejantes quando emperrava nas respostas e ficava no: “Não tem registro, não tem registro, não tem registro!”

De tudo isto se pode chegar a uma conclusão provisória: Dona Dilma já foi p’ro beleléu. Ela vai cair para que se cumpra o preceito Schopenhaureano: a culpa é sempre dos ministros e, nunca, do Rei. A madame – dita a “mãe do PAC” - vai construir uma saída que a deixe vitimizada. Já o pai de todas as criaturas teratológicas concebidas neste triste governo petista (escândalos dos gafanhotos, dos bingos, do mensalão, dos sanguessugas etc.), qualquer que tenha sido a “barriga de aluguel” (Zé Dirceu, Delúbio, Genoíno e outros trapaceiros), vai sair ileso, para que os supremos interesses da patota sejam preservados. A quadrilha, de fato, tem um chefe, mas este está sempre tirando a castanha do fogo com a mão do gato. Dona Dilma vai se imolar em prol da causa, pensando estar agora possuída pelo espírito guerreiro de Rosa Luxemburgo. Doce e triste ilusão desta mariposa tardia gestada numa crisálida totalitária. A suprema ironia é assistir aos militares (forjados numa visão positivista do mundo), batendo continência para a gangue de criminosos gramscianos que estão a construir a “república sindicalista”, situação contra a qual os milicos armaram o golpe de 1964. A vingança tardou mas não falhou. Velhos e outrora orgulhosos generais são obrigados a fazer, doravante, o beija mão a Lula, Dona Dilma, Tarso Genro e congêneres, para impedir (ou pelo menos adiar um pouco no tempo), a transformação das forças armadas, pela via do sucateamento deliberado e da obsolescência, em uma paródia tropical do incrível “Exército de Brancaleone”.

CONTRA O GOLPE DE ESTADO - Correio Popular de Campinas - 9-04-2008

“A Constituição só fixa o terreno onde a luta se desenvolve, não o seu fim. Entramos nas instituições previstas pela lei e faremos assim de nosso partido o fator decisivo. Mas quando tivermos constitucionalmente tal direito, daremos ao Estado a forma que julgamos a boa”. (Adolf Hitler citado por E. Calic: Hitler sans masque, entretiens Hitler- Breiting).

“Não achamos que Parlamento é um fim, ele é um meio. E vamos tentar utilizá-lo até onde for possível. Na medida em que a gente perceber que pela via parlamentar, pela via puramente eleitoral, você não conseguirá o poder, eu assumo a responsabilidade de dizer à classe trabalhadora que ela tem que procurar outra via” (Lula, Entrevista à Folha de São Paulo, dezembro de 1985).


A Folha de São Paulo me pergunta se as medidas provisórias devem ser mantidas ou retiradas dos ordenamentos públicos. Nos argumentos que apresento, pela abolição, vem um trecho de Hitler, que manifesta seus reais intentos no poder. Ele queria moldar o Estado alemão segundo as normas de seu partido. Quando fala em dar ao Estado a forma nazista, ele incluía o extermínio dos judeus, as invasões de outros países, as leis genocidas que infestam a sociedade germânica, mostram frutos nos neo nazistas, que de novos nada têm : reiteram fórmulas e atos dos que almejaram um Reich de mil anos. Deixei de indicar o perigo para o Brasil no artigo da Folha (“Em proveito da cidadania”, 5/4/2008, p. 3). Calei sobre as posições próximas de Hitler e do Sr. L. I. da Silva. O leitor pode conferir o todo da fala inaciana na entrevista concedida por ele à Folha em 1985. Lula e seus companheiros podem não ser de esquerda, alheios ao dito espectro ideológico. Ele disse que nada tinha a ver com os ideários de 1870 (Comuna de Paris) ou de 1917. E também chegou ao deboche ao proclamar que julga tais doutrinas como “bravatas”. Mas algo ele não esconde: o seu ódio contra a democracia representativa! O Congresso, no seu entender ainda hoje, é meio, jamais um fim. E meio para impor ao país os seus fins privados de governante. O Sr. Da Silva, desde as frases sobre os “picaretas” da Câmara e do Senado ao mensalão, nada mais fez do que reiterar o que declarou em 1985 à Folha. Muitos riem da comparação entre o L. I. da Silva e Hitler. Cautela! Está em curso a terceira eleição do presidente. Depois dela, a soma de muitos anos. Jornalistas cooptados fingem que o movimento não existe, políticos negam as pretensões inacianas. Intelectuais geram teses para desviar a atenção do assunto. Governistas planejam o estupro da Carta. Os seu “argumentos” fundamentam-se na popularidade. Mas quem mais popular do que Hitler quando incendiou o Reichstag ? Mais popular do que Mussolini ou Stalin ou dos piores ditadores antigos e modernos? Como assegurou no seu partido, com apoio de áulicos sindicalistas, a posição de única liderança nacional petista, Da Silva não tem candidato que o suceda. Patrus Ananias é nada em intenção de votos, o mesmo ocorre com outros petistas. Dilma Roussef, a “mãe do PAC”, armou o caos que hoje inviabiliza sua corrida ao Planalto. Resta o Sr. Da Silva, cuja popularidade inconteste é anabolizada pela propaganda científica, digna dos publicitários que serviram ao totalitarismo. Em desobediência à lei, Da Silva, com o PAC (eleitoreiro) sobe ao palanque, ataca adversários, ridiculariza juízes que fiscalizam a lei. Ninguém, nos poderes, se insurge contra semelhantes golpes de Estado homeopáticos. Será preciso que um dia os deputados e senadores encontrem o Congresso fechado por setores das Forças Armadas e aliados da guerrilha (alguns com notório nexo com as FARC); que o próprio STF seja abolido, para os bem pensantes e oportunistas perceberem o golpismo? Recomendo a leitura de dois clássicos da literatura política. O primeiro reúne as Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado, de Gabriel Naudé (1640). O segundo é O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx. Neles são descritos as técnicas e os sinais dos golpes. Boa leitura. (Professor Roberto Romano - UNICAMPO)

CONCEPÇÃO TOTALITÁRIA DE DEMOCRACIA (primeira parte)

A) Democracia Constitucional e Democracia Totalitária

“O conceito de democracia não é unívoco. Ao contrário, contém uma profunda ambigüidade que só a distinção fundamental entre governos constitucionais e governos não-constitucionais pode desfazer. Portanto, a distinção tem precedência lógica e axiológica sobre o conceito. Na tradição intelectual do Ocidente convivem em oposição e em conflito duas concepções de democracia: a concepção constitucional­ – ortodoxa, íntegra e virtuosa – e a concepção não constitucional, desviante e perversa ... ou a concepção totalitária de democracia.

Em sua versão constitucional a democracia é essencialmente um método, consensual e destituído de qualquer conteúdo finalístico, de tomar decisões pública – isto é, decisões que, assumidas por todos os membros da comunidade política, diretamente ou através de seus representantes, obrigam em comum e universalmente a todos, quer lhes tenham sido favoráveis quer lhes tenham sido contrários – e, ao mesmo tempo, um valor em si mesma, pois a adesão à excelência do método é independente dos cursos de decisão e de ação que ele torna possíveis e não pode ser instrumentalmente subordinada ou condicionada à consecução de qualquer objetivo particular.

A concepção processual da democracia representativa, que a percebe como método destituído de qualquer conteúdo finalístico, é o coroamento do esforço bem-sucedido – elaborado pioneiramente por Joseph Schumpeter, na Parte IV de seu conhecido livro, publicado em 1942, Capitalismo, socialismo e democracia – de conciliar e integrar a Teoria das Elites – de Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto – e a Teoria das Organizações – de Moisei Ostrogorski, Robert Michels e Max Weber – com a teoria normativa tradicional da Democracia. Schumpeter inverteu em dois sentidos importantes o conceito tradicional da democracia representativa.

A democracia representativa schumpeteriana não é propriamente uma ordem política na qual indivíduos e grupos competem entre si pela eleição de partidos e de candidatos incumbidos de representá-los e de governá-los, mas – ao contrário – um sistema pluralista de elites e de organizações políticas que, buscando apropriar-se da ordem estatal, competem entre si pela conquista, por meio do sufrágio periódico, do consentimento e da autoridade, por parte das não-elites, diante das quais são responsáveis. Neste sistema, por outro lado, os partidos não competem pelo governo para realizar programas mas, ao contrário, concebem programas de governo, quando na oposição, e os cumprem, quando no governo, para assegurarem, por meio de eleições pluralistas e competitivas periódicas, a conquista do poder público, a permanência nele ou o retorno a ele.

No paradigma schumpeteriano de análise política, o partido constitui um caso particular de empresa e a competição periódica dos partidos pelo voto para conquistar o governo ou a sua participação nele, um caso particular da competição entre grandes empresas pela preferência dos consumidores num mercado relativamente oligopolizado. Neste processo, entretanto, o partido não renuncia ao seu papel clássico, que consiste em dirigir os diferentes segmentos da sociedade no sentido dos interesses que lhes pertencem e dos quais são, sem dúvida, os únicos juizes, mas cuja realização requer o critério e o capital de sabedoria política acumulados pelo partido.

O realismo schumpeteriano pode parecer cínico, porque não faz qualquer concessão à ingenuidade, à hipocrisia ou ao sectarismo, mas tem o mérito de excluir a substantivação totalitária do conceito de democracia.

A democracia constitucional alimenta-se ao mesmo tempo do consenso acerca das regras do convívio político e do dissenso, cuja legitimidade e propriedade integradora reconhece, acerca dos objetivos. Nela, indivíduos e grupos – divididos pela diversidade de interesses, pelo pluralismo de fins e por concepções diferentes acerca do interesse público – obrigam-se universalmente a um conjunto de regras processuais que lhes permite ao mesmo tempo o convívio, a cooperação pacífica e ordenada e a competição pela definição das políticas públicas. Em suma, o método democrático viabiliza um sistema pluralista de elites, de organizações políticas e de partidos que competem entre si pela posse ou pelo controle do governo por meio da conquista, através do sufrágio periódico, do consentimento e da autoridade que lhes conferem as não-elites, diante das quais são responsáveis.

Na construção da democracia ocidental contemporânea o constitucionalismo precedeu secularmente o governo representativo e ambos precederam, também secularmente, a democracia, isto é, a expansão popular do voto e da participação política.

No constitucionalismo o exercício das funções e do poder inerentes à soberania é distribuído entre agências governamentais que, condenadas a atuar em concerto, ao mesmo tempo cooperam e limitam-se reciprocamente, de modo que, ao fim e ao cabo, a soberania não pertence a qualquer indivíduo, organização, partido ou segmento social, nem mesmo ao povo ou aos seus representantes, mas à Constituição, às Leis e às Instituições, nesta hierarquia, as quais, consensualmente reconhecidas pela comunidade política, definem obrigações e direitos, individuais e sociais, asseguram predictibilidade ao convívio coletivo e limitam o exercício de todas as formas, públicas e privadas, de poder.

A idéia do constitucionalismo moderno encontra-se sintetizada no artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação de poderes determinada, não tem constituição”.

A base sociológico-política da difusão e da imitação do poder, bem como das liberdades individuais e coletivas, que integram o constitucionalismo, é a existência de uma multiplicidade de associações intermediárias voluntárias, que funcionam como mediadoras entre o indivíduo e o Estado e como centros de lealdades alternativas, e de uma sólida tradição de autogoverno local. Evidências dessas práticas foram surpreendidas por Políbio na Constituição Romana, por Montesquieu no feudalismo político europeu ocidental e por Tocqueville nas colônias inglesas da América.

Concebida por Montesquieu, a engenharia institucional do constitucionalismo, com a teoria da separação de poderes e o mecanismo de freios e contrapesos que lhe são inerentes, foi ulteriormente aperfeiçoada por Hamilton, Jay e Madison – os Pais Fundadores da Constituição norte-americana – nos artigos reunidos no Federalist Papers, e pelas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte.

O fundamento da democracia constitucional, explicitamente consagrado pelo artigo 1º, inciso V, da Constituição brasileira de 1988, é o pluralismo político, isto é, o reconhecimento, por parte dos diferentes atores políticos, individuais e coletivos, de que é legítima a diversidade de interesses particulares e de concepções particulares acerca do interesse público que competem pelas decisões soberanas e pela posse ou pelo controle do governo.

Por outro lado, a democracia constitucional é essencial e não apenas contingencialmente representativa pois, como demonstrou Kant, dada a sociabilidade insociável que caracteriza a sua natureza, os indivíduos humanos são incapazes de se autogovernarem e a liberdade constitucional não pode ser outra se não a sujeição voluntária, por parte de cada um e de todos os sujeitos que integram a comunidade política, às leis a que se auto-obrigam por antecipação ao elegerem representantes com a faculdade e a responsabilidade independentes de elaborá-las.

Em outros termos, o governo representativo não é uma limitação ou uma contingência da democracia constitucional. Ao contrário, a democracia ou é representativa e, deste modo, constitucional, ou não é representativa e, assim, não é constitucional. Na democracia pluralista e representativa, cada partido político é uma organização de pessoas associadas entre si não por interesses particulares comuns nem por uma visão única e unívoca da boa sociedade, mas por uma concepção particular, que possuem em comum, acerca do interesse público; o que é muito diferente quer da idéia privatista, arcaica, da representação política, quer da idéia, peculiar ao totalitarismo, do partido como portador de uma ideologia uniforme, monolítica e omnicompreensiva.

Enfim, a expansão popular da cidadania, ampliando a comunidade política para fazê-la virtualmente coincidir com a sociedade civil, introduz, sobre a base do constitucionalismo e do governo representativo, a democracia em sua forma política virtuosa.

Ao contrário, a democracia totalitária identifica-se como a busca de uma ordem social final única e unívoca a ser trazida do reino da virtualidade ao reino da história concreta por obra de um grupo, de uma organização ou de um partido revolucionário que, detendo a consciência antecipada do processo, também único e unívoco, que a ela conduz, deve conquistar a direção hegemônica da sociedade. E, se tanto essa ordem pública final e ideal quanto o processo que a ela conduz são únicos e unívocos, não há lugar, em política, para versões alternativas, quer acerca de fins, quer acerca de meios; versões ou projetos alternativos constituem, na melhor hipótese, equívoco ou erro, e, na pior, mas não menos freqüente, delito.

Num estudo publicado em 1951, J. L. Talmon identificou a origem teórica da democracia totalitária na concepção messiânica rousseauniana de vontade geral. Mas já em 1944, em seu livro clássico - A sociedade aberta e seus inimigos - Sir Karl Popper derivara a teoria do totalitarismo político do que denominou o historicismo de Platão e sucessivamente de Hegel e de Marx”. (continua)

(Totalitarismo Tardio – José Giusti Tavares)