domingo, 30 de dezembro de 2012

HONESTIDADE EM 73o. LUGAR - Vittorio Medioli

(Publicado no jornal O Tempo, de 30-12-2012)

"Numa das minhas últimas colunas, abordei o tema da honestidade e do desenvolvimento social, dois fatores interligados e imprescindíveis, um ao outro, para realizar justiça, progresso e bem-estar de uma nação.

Basta analisar o ranking dos países mais socialmente "desenvolvidos" e outro ranking dos "menos corruptos" e se encontrará uma inquestionável coincidência de nomes e endereços. Entre os 155 países avaliados por institutos de transparência internacional e pela consultoria KPMG, emergem Nova Zelândia, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Cingapura, Noruega, Holanda e Austrália como os mais "honestos". Na lista do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a sequência começa com
Noruega, Austrália, Holanda, Estados Unidos, Nova Zelândia, e ainda tem a Suécia entre os dez primeiros colocados. O Brasil, em 2011, caiu do 66º para o 73º lugar.

Já o pior IDH anda junto com a maior incidência de corrupção, e a essa se associa também a burocracia. Quanto maior, pior para a nação. Inexplicavelmente justificada para um maior controle, acaba por ser o meio mais certo de corrupção, desvios e desmandos. Entre as principais democracias do planeta, o Brasil se apresenta como o mais burocrático, portanto, o mais exposto ao risco da corrupção, e ainda é avaliado como o mais corrupto entre as primeiras 20 economias mundiais.

Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), entre os anos de 1988 e 2008, transcorridos 20 anos da Constituição em vigor, foram editadas 3.776.364 de leis ordinárias, decretos, decretos-lei, medidas provisórias, emendas constitucionais, portarias, regulamentos e outros dispostos, provocando a média de 774 normas por dia útil.

O acinte burocrático revela um estagio demencial da catástrofe a qual se chegou. Pode-se citar, a título de exemplo de um dos incontáveis absurdos, o ICMS incidente sobre as contas de energia elétrica. Para a nossa burocracia predatória, o imposto é 18%, mas quando se trata de energia elétrica, não é suficiente. Apenas por esse serviço, contrariando os demais casos, o ICMS incide "por dentro", ou seja, o "disposto" obriga a calcular o ICMS sobre o próprio ICMS. Quer dizer, a alíquota "especial" se calcula, por exemplo, em 18% de R$ 100 mais 18%, assim a garfada sobe para R$ 21,2. Pouco importa que a constituição vede a cobrança de imposto sobre o próprio imposto que, nos demais casos, não se aplique "por dentro". Coerência, legalidade e respeito são as últimas preocupações do bizantinismo governamental. Também o povo desorientado e inculto não aprendeu a reagir, limita-se a pagar a conta e ponto final.

Essa é apenas uma das 220 mil alterações na legislação tributária que ocorreram nos 20 anos subsequentes à proclamação da Constituição de 1988, uma lei maior que deveria colocar o país em ordem. Pior que a fúria dos burocratas, chega a ser, no contexto, a corrupção que se desencadeia nesse cipoal, pois a "propina" passou a ser o meio mais comum para dirimir dúvidas.

Quando será que a consciência da maioria se dará conta? Certamente, não será em 2013, mas é dever augurar a nação que algo aconteça; que Deus permita que muitas mentes e consciências recebam um raio de luz; enfim, que se faça um passo na direção certa para nossos bisnetos gozarem de um Brasil melhor.

Para 2013, meus votos são de muita saúde e alegria para todos."

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

ESSE EU CONHEÇO! - artigo de Roberto daMatta


(Publicado no Estadão de 19 de dezembro de 2012)


"A reta, como diria o Oscar Niemeyer, é o real. Mas o ideal é a curva, o arredondado sedutor da montanha onde morre o Sol; ou o suave declive da fonte que jorra por entre as suas frestas e mata a nossa infindável sede como viram, cada qual a seu tempo e à sua maneira, Ary Barroso e Schopenhauer.

Platão, inventor da oposição entre real e ideal, afirma que como tudo neste mundo está sempre se fazendo, as coisas reais não conferem nenhum conhecimento definitivo, pois são relativas e variáveis. Sujeitas, como revela sem cessar o nosso frustrante dia a dia, a redefinições. O ideal é único porque as ideias não morrem. O resto, como disseram Shakespeare e Erico Verissimo, é silêncio...

Estou, como o mundo inteiro, chocado com esse novo massacre ocorrido em Newtown, Estados Unidos. Penso nos pais forçados por um louco a entrar nesse triste clube ao qual eu, infelizmente, pertenço: a sociedade dos que perderam filhos. Empresto a todos eles a minha humilde solidariedade. Aprendi como as palavras, que deixam ver, por um instante, o todo no qual vivemos como inocentes, são importantes nesses momentos.

Estive no Estado de Connecticut umas duas ou três vezes e fiz palestras na sua universidade, no famoso Connecticut College (fundado em 1911 quando o Brasil fazia, como as máquinas, múltiplas revoluções) e na sua admirável Universidade Yale (fundada em 1701 quando, para muitos, o Brasil ainda não era Brasil), onde jaz um pedaço da alma do querido e saudoso Richard Morse, o americano mais brasileiro que conheci em toda a minha vida. Como explicar o massacre de crianças num lugar tão "adiantado" e "rico" sem uma lógica bíblica ou messiânica - sem um sistema de espoliação dos miseráveis e sem um Herodes agora armado, ele próprio, de pistolas automáticas, perguntou-me um jovem jornalista?

Inocente, pois não tenho a menor ideia do meu futuro nem da minha vida, a qual eu tento cuidar e honrar com o devido egoísmo por ela determinado, só posso falar de uma importante contradição. Nós odiamos a violência, mas a admitimos em certas circunstâncias. Na guerra, por exemplo. Sobretudo, nas guerras santas que jamais saíram de moda. Ou na luta ideológica contra a famosa "direita", hoje propositalmente confundida no Brasil com o "direito": o ético, o meritório e o correto.

No caso dessa tragédia americana, há uma contradição trivial. O real manda, no mínimo, discutir, como disse o presidente Obama, a venda de armas. Mas o ideal que tende a virar tabu trata a aquisição de armas como um direito.

No Brasil, criminalizamos o jogo, mas a Caixa Econômica Federal banca pelos menos sete ou oito jogos de azar. Ademais, condenamos o jogo e todo tipo de patifaria, mas compreendemos o canalha. Sobretudo quando ele é amigo. "Esse não! Esse eu conheço! Com ele eu não admito, ouviu? Não admito que sua reputação e sua figura à qual o país tanto deve sejam postas em questão!!!"

Somos todos contra a jogatina, mas entendemos quando o primo faz uma "fezinha na borboleta" ou no "burro" - esse totem de um Brasil que tenta sem sucesso livrar-se das asnices de uma visão de mundo na qual a lei teria a virtude de corrigir o mundo por reação e não por prevenção. "Mas isso é crime capitulado no artigo tal da lei X! Não há mais o que discutir." Exceto, é claro, se o capitulado for meu amigo!

O problema é o que fazer com os criminosos depois de devidamente classificados como culpados. No nosso caso, a penalidade não é apenas uma decorrência do crime, é uma ciência e eu até diria, com todo o respeito, uma nobre arte. Afinal, como ouvi muitas vezes nesses meses afora, "são vidas humanas em jogo".

Condenamos também a droga, mas tomamos o nosso vinhozinho, a nossa cervejinha e a nossa cachacinha com os amigos sem problema. Aceitamos até que um conhecido goste de uma "fileirinha", no seu caso, inocente, porque: "Esse eu conheço e sei que é boa pessoa! Não é um indivíduo qualquer a ser espancado pela polícia e depois exposto e escrachado na mídia!!!"

Batemos de frente com as contradições entre o real e o ideal, a menos que ela comprometa o patrão, o amigo e o correligionário a quem devemos carreiras, favores e cargos. "Esse não! De modo algum! Esse eu conheço!" Gritamos com obrigatória veemência.

Uma ética de condescendência - esse pouco discutido valor brasileiro de muitos quilates - nos leva a relativizar o ideal. Como não é fácil equilibrá-los, pois o concreto sempre desafia o ideal, personalizamos e, com isso, impedir que X, Y ou Z sejam apreciados em suas faltas e velhacarias. E como "roupa suja só se lava em casa", ferimos o ideal (e a ética) dando um golpe personalista. "Esse não pode!", falamos, tirando do âmbito do crime ou da patifaria o amigo dileto ou o personagem poderoso.

Mas quem inventa os fatos?

Como esse bárbaro massacre ocorrido nos Estados Unidos; como esse inacreditável mensalão; como os vínculos de terna intimidade entre o ex-presidente e uma alta funcionária que representava a Presidência em São Paulo e lá montou uma quadrilha? Quem inventou um partido como o PT, que iria exterminar os ratos da corrupção nacional - como bolou o publicitário do grupo, o sr. Duda Mendonça - e acabaram metidos no maior escândalo da República? É o jornal que forma a quadrilha ou é a quadrilha que faz o jornal?"



segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Absolvição sumária - Prof. Roberto Romano


(Publicado no Estadão de 15 de dezembro de 2012)


"Em artigo jocoso, "Apenasmente" Cajazeiras, o professor Eugênio Bucci analisou recentemente as acusações contra Luis Inácio da Silva. Ele compara o político popular ao personagem da novela O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu. Boa dose de injustiça ressalta do texto, mas vários elementos devem nele ser levados em conta, como a crítica dos que eximem a priori o ex-presidente de toda responsabilidade pelos malfeitos cometidos em seu governo. Lula, escreve Bucci, "teria tudo para enfrentar com grandeza as denúncias que dele se aproximam, sobretudo as mais recentes. Em vez disso, prefere se refugiar no mito de si próprio, um mito que, convenhamos, além de precocemente instalado, é oco". Discordo da última frase e me apoio no antropólogo Malinowski: "O mito é um subproduto constante de uma fé viva que precisa de milagres, de um estado sociológico que tem necessidade de precedentes e de um código moral que exige uma sanção". A taumaturgia cortesã se opõe à racionalidade da ordem política e jurídica. Não existe mito oco ou inocente.

Dois pilares, na república democrática, garantem o direito e a liberdade. O primeiro é a transparência dos atos políticos. Tal princípio é reforçado pela norma segundo a qual em todo processo os fatos devem ser descritos à exaustão (quid facti), sem os obstáculos das seitas, partidos, governantes poderosos. Os tribunais e seus integrantes (polícia, ministério público, advogados de defesa) precisam apurar os atos, os documentos, os testemunhos para definir uma narrativa sólida, contrária ou favorável ao acusado, do humilde cidadão ao poderoso. Outro item é a busca de situar os fatos sob a lei que os sanciona positiva ou negativamente (quid juris).

Na Constituição brasileira estão previstos os casos em que governantes, atuais ou pretéritos, devem responder perante a nação. Nenhum parágrafo afirma que um líder, por sua popularidade ou grandeza, deve escapar da pesquisa dos fatos e das normas jurídicas. A Constituição, no entanto, não é espelho fiel do que ocorre na política nacional. Falar no Brasil em responsabilização de grandes líderes é anátema que faz surgir de imediato, nos lábios de quem manda na esquerda e direita, a ladainha sobre a intangibilidade do acusado, sua condição de pessoa acima das outras. Semelhante traço oligárquico impede a soberania popular, gera os tutores do País.

Enquanto não existir responsabilização das "autoridades", o Brasil será um anacrônico e virulento Estado absolutista no qual o soberano jamais é o povo e sim o ocupante do trono e seus cortesãos. O gestor e o político não podem ter contra si nenhuma acusação ou dúvida. É o que manda a fórmula restritiva "ilibada reputação" (illibatus, no latim bem conhecido pelos nossos poderosos significa "íntegro", "completo"). Quando um prócer de qualquer partido ou ideologia sofre acusações que chegam à sociedade ele deixa - mesmo que inocente - de ser "ilibado", condição a que retorna se a Justiça assim o decidir. Quem paga impostos ou aceita obedecer às leis sob autoridades espera que os dirigentes sejam ilibados. Para manter um cargo é preciso que o funcionário, mesmo na chefia do governo, seja responsável e responsabilizado. Essa doutrina foi compendiada por John Milton e acolhida nas democracias: "Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra". (The Tenure of Kings and Magistrates).

É evidente que a imprensa não pode ser instância julgadora. Ela, não raro, abusa ao veicular acusações. Mas é também evidente que os julgamentos podem deixar de existir se atos que atentem contra o Estado e a sociedade não forem trazidos ao eleitor. Quando um político é acusado de negligência ou crime, para manter a fé pública o correto é investigar as denúncias até que prova cabal ou juízo as dissolvam. O político representa o Estado e deve ser íntegro. Caso contrário, desaparece a base legitimadora do poder que se regula pela democracia e se justifica pelo direito.

No Brasil, o poder público está sempre em crise, o que evidencia o frankenstein jurídico e institucional do nosso Estado. Apesar de sinais que anunciam melhorias na ordem política, como a lei de improbidade administrativa, a lei da ficha limpa, a lei de acesso à informação e outras, a fé pública é frágil entre nós. Combater a descrença da cidadania exige apurações isentas e responsáveis, sem truques afetivos e propaganda enganosa. A cada novo dia é preciso mostrar, por atos e palavras, que existe compromisso ético. Sem tais atitudes públicas e particulares, a governabilidade é impossível. Estado desprovido de fé pública não pode ser um regime livre e responsável.

A governabilidade tem como pressuposto a obediência, pela cidadania soberana, das leis elaboradas no Parlamento e destinadas à execução pelo governo. Se os eleitores não podem confiar na abrangência universal das referidas normas, se existe suspeita de que elas não valem para todos e para cada um dos cidadãos, se existem pessoas acima da lei, some a governabilidade. Bismarck dizia que duas coisas o cidadão ignora porque, caso contrário, jamais aceitaria: o modo pelo qual são produzidas as salsichas e as leis. Ele usa a figura médica antiga que une o poder político ao "regime". As leis alimentam o corpo político e devem ser controladas pelo juízo público. Este último requer ética e decoro dos políticos, estejam eles no poder ou fora dele. Bismarck foi contrário à democracia, inimigo da soberania popular. Se aplicarmos seu exemplo, no entanto, as nossas salsichas e as leis não passariam nunca pelo controle das secretarias de abastecimento. Nossos políticos, que se julgam acima do povo, provam apenas que elas surgem com o prazo vencido, apodreceram porque supõem o absolutismo ou a oligarquia. Não valem para uma república democrática."

* ROBERTO ROMANO É FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE O CALDEIRÃO DE MEDEIA (PERSPECTIVA)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O CONCEITO DE TOTALITARISMO


“Importa examinar, ainda que esquematicamente, a natureza e a gênese do totalitarismo. O conceito de totalitarismo é uma das construções mais claras, precisas e importantes da ciência política. Não o invalida o fato de que tenha sido instrumentalmente empregado pela política externa norte-americana durante a guerra fria, ora estreitando-o, ora ampliando-o, como arma ideológica contra a União Soviética. Muito antes da guerra fria, o termo totalitarismo foi empregado, por pensadores marxistas, como categoria de análise para explicar a peculiaridade trágica do comunismo soviético.

Em 1940, um ano antes de ser morto pelos nazistas durante a ocupação de Paris, o notável economista marxista Rudolph Hilferding, autor da teoria do capital financeiro e do imperialismo, da qual Lenine foi tributário, recorreu com rigor ao conceito de totalitarismo para referir-se à economia soviética. Hilferding advertiu para o fato de que:

"É da essência do Estado totalitário sujeitar a economia a seus desígnios. A economia é subtraída de suas próprias leis e se transforma numa economia controlada. As economias, alemã e italiana, fornecem a evidência de que este controle, uma vez iniciado num Estado totalitário, propaga-se rapidamente e tende a tornar-se completo, abrangendo tudo, como foi o caso da Rússia desde o começo. Apesar das grandes diferenças em seus pontos de partida, os sistemas econômicos dos Estados totalitários estão cada vez mais se aproximando uns dos outros.O poder do Estado de hoje, tendo conquistado independência, está desdobrando sua enorme força de acordo com suas próprias leis, subjugando as forças sociais e compelindo-as a servir, por um período de tempo curto ou longo, os fins do próprio Estado. A emergência do Estado como um poder independente complica enormemente a caracterização econômica de uma sociedade em que a política, isto é, o Estado, desempenha um papel determinante e decisivo. Por essa razão, a controvérsia a respeito do caráter “capitalista” ou “socialista” do sistema econômico da União Soviética parece-me sem sentido. Não se trata de uma nem de outra coisa. Tal sistema constitui uma economia de Estado totalitário, do qual os sistemas econômicos da Alemanha nazista e da Itália fascista estão se aproximando cada vez mais. Lenine e Trotski, com a ajuda de um grupo de elite partidária, de um partido que sempre foi um instrumento nas mãos dos chefes, como seriam mais tarde o partido fascista e o partido nacional-socialista, fundaram o primeiro Estado totalitário, antes mesmo que o termo tivesse sido criado”.

Nos anos 40 o pensador marxista Cornelius Castoríadis enfatizou que “o verdadeiro criador do totalitarismo é Lenine”.

Efetivamente, em março de 1921, quatro decisões, sob o comando de Lenine, assinalaram a edificação, na União Soviética, do primeiro Estado totalitário do século XX:

Primeira - o exército vermelho, sob o comando de Trotski, aniquilou definitivamente a insurreição do Kronstadt e, com ela, a resistência armada de camponeses e operários que em diferentes latitudes do país se opunha à ditadura comunista;

Segunda – O “X Congresso do Partido Comunista” aprovou a Nova Política Econômica, que reintroduziu o capitalismo, absorvendo inclusive a participação do capital norte-americano, e incrementou formidavelmente o lucro da produção urbano-industrial ao custo da repressão econômica do campesinato;

Terceira – Cumprida a sua função revolucionária, a democracia direta e popular dos sovietes (conselhos de operários, camponeses e soldados) foi substituída pela ditadura do partido bolchevista;

Quarta – E, enfim, o X Congresso adotou resolução proibindo a existência e a formação de facções, bem como os debates, no interior do partido, nele consagrando a ditadura interna do Comitê Central.

Segundo Ernst Nolte, o totalitarismo europeu só pode ser corretamente compreendido com base na identificação da unidade histórico-cultural entre o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão e de sua derivação comum do comunismo russo. Sidney Hook observou com propriedade que:

“Culturalmente e à luz de seu desenvolvimento, o leninismo deve ser encarado como o primeiro movimento fascista do século XX”.

O comunismo evidentemente jamais reconheceu quer o seu caráter totalitário, quer a sua influência decisiva sobre o fascismo e o nacional-socialismo. Contudo, os dois últimos, embora tenham rejeitado qualquer raiz leninista comum, assumiram explicitamente, com Mussolini em 1932, e com Goebbels e Carl Schmitt em 1933, o seu caráter totalitário.

Para escamotear a natureza totalitária do comunismo, os comunistas e, no Brasil, os petistas e aqueles que se encontram na periferia intelectual do PT recorrem ao termo estalinismo. Com isso, o totalitarismo comunista fica reduzido a um momento particular de sua trajetória. Explicar o sistema totalitário soviético pelo estalinismo, atribuindo toda a responsabilidade a um único homem, não é apenas uma atitude estranha a marxistas; é, sobretudo, um artifício diversionista para ocultar que “o mal está no sistema”, como assinalou o filósofo marxista Rodolfo Mondolfo.

Há, portanto, um conjunto de traços comuns ao comunismo, ao fascismo, ao nacional-socialismo e, no Brasil, ao petismo, que o conceito de totalitarismo identifica. Enquanto pensamento e enquanto conduta, o totalitarismo distingue-se não apenas da democracia constitucional mas do autoritarismo, e não só por diferenças de grau ou intensidade mas por oposição qualitativa.

O autoritarismo se caracteriza pela limitação à competitividade e ao pluralismo políticos, pela desmobilização e pela despolitização crescente da sociedade e da vida, pela insistência na indiferença e na neutralidade políticas e pela predominância, nas relações entre Estado e Sociedade, de cooptação sobre a representação.

O totalitarismo, ao contrário, tende essencialmente à politização de todas as esferas da existência humana, incluindo a escola, a arte, a produção da ciência, o lazer, a família, a religião e a sexualidade. Alimenta-se do apelo ao ativismo político e à mobilização revolucionária permanentes do homem comum, que as mediações institucionais da democracia representativa refreiam e sublimam. E faz desaparecer a distinção entre a esfera privada e a esfera pública, resolvendo a primeira na segunda ou, na linguagem de Rousseau, o homem no cidadão.

Desaparece também inteiramente, no totalitarismo, a distinção entre Estado, Governo e Partido, absorvidos os dois primeiros pelo partido, cuja dominação e cujo controle total atravessam o conjunto da sociedade, chegando, por meio de vasos capilares, aos sítios mais íntimos e recônditos da existência humana. Lenine hierarquizou em cinco níveis o envolvimento da sociedade pelo partido único, no movimento revolucionário: o primeiro nível, ocupado pelo partido e pelos profissionais revolucionários; o último nível pelos elementos não organizados da população.

O partido único totalitário percebe-se como portador de uma weltanschauung, de uma ciência e de uma teoria omnicompreensiva e acabada da sociedade e do processo histórico uno e unívoco que conduz a um fim último inevitável: a redenção humana. O que investe o partido da missão de guiar o homem comum, que não tem acesso a esse saber. Nessa perspectiva, o messianismo político alimenta e legitima o voluntarismo do partido. Como acentuou Hannah Arendt, “as ideologias totalitárias aspiram a uma explicação total pela aplicação de uma idéia única aos vários domínios da realidade. São monomaníacas!

Enquanto os sistemas políticos constitucionais são individualistas e pluralistas, o totalitarismo tem uma visão essencialmente holista e monista do mundo, que compreende a natureza e o homem. O universo intelectual do indivíduo totalitário é uma totalidade absolutamente inclusiva e ao mesmo tempo exclusiva: de um lado, todos os elementos que a integram são essenciais e nenhum deles pode ser dela retirado sem fazê-la perder o sentido; de outro lado, nenhum elemento que a ela não pertença originariamente pode ser por ela incorporado sem produzir alguma dissonância cognitiva.

Na lógica do leninismo, o papel do partido consiste em ativar a insurreição das massas que, entretanto, desempenha no processo revolucionário um papel apenas espetacular, pois a tomada do poder é obra de uma minoria ilustrada e ativa que, aglutinada no partido e capitalizando a adesão emocional das massas, executa a conspiração e o golpe de Estado. Exitoso este último, a conseqüência imediata é a ditadura do partido único, que persistirá por um tempo indefinido porque sua função não consistirá apenas em reprimir os opositores mas em educar, pela violência tanto quanto pela persuasão, as massas imaturas.

O apelo idealizado à violência é outro traço comum aos movimentos totalitários. Marx enfatizara que a violência revolucionária era “a parteira da História” e Mussolini insistiu na ideia de que a tensão da guerra e o seu desafio de matar ou morrer temperavam e elevavam o caráter dos homens, assim como as dores do parto dignificavam a mulher. O elo entre o voluntarismo marxista-leninista e o fascismo foi provido pelo sindicalismo revolucionário que George Sorel expôs nas suas Reflexões sobre a violência.

A politização totalitária é incomensuravelmente mais nociva do que a despolitização autoritária. A despolitização retira o homem da política mas, estimulando a indiferença quanto aos grandes problemas da sociedade, lhe permite recolher-se à intimidade e à autonomia de sua vida pessoal e civil. Já a politização totalitária substitui a participação política autônoma – que reconhece como legítima tanto a diversidade de interesses particulares quanto o pluralismo de concepções acerca do interesse público e a possibilidade do indivíduo de decidir entre lealdades alternativas – pela mobilização política heterônoma de indivíduos com o ego previamente debilitado pelo envolvimento numa situação de massas.

No totalitarismo, como resultado de um processo de extrema e brutal simplificação da realidade, a vida política é percebida em termos de um permanente enfrentamento entre dois pólos – o de amor e o de ódio, o de bem e o de mal, o de verdade e o de erro, o de amigo e o de inimigo – diante dos quais a neutralidade ou a indiferença não são apenas suspeitas mas criminosas.

Um exemplo deste mecanismo de manipulação psicológica totalitária, combinando exclusivismo e envolvimento, foi a fórmula que, concebida por Jdanov em 1946 e logo conhecida como Teoria dos Dois Campos; ela alimentou eficazmente, ao longo da guerra fria, a satelitização, pelo Partido Comunista da URSS, das denominadas “democracias populares” e dos partidos comunistas do Ocidente. O mundo inteiro, em todos os seus aspectos, estava dividido em dois campos: na filosofia e na ciência, opunham o idealismo e o materialismo; na arte, o subjetivismo burguês e o realismo socialista; na política, o imperialismo e o socialismo, cada um com seus aliados. Como não se reconhecia outra alternativa política – tertius non datur – quem não pertencia explícita e ativamente a um dos campos, situava-se no campo do adversário.

Lamentavelmente, a teoria dos dois campos não está sepultada. É ainda empregada, pelo sectarismo totalitário, como recurso para desqualificar não apenas os inimigos como também os independentes e mesmo os relutantes.

A existência de grupos primários vigorosos e de associações intermediárias voluntárias inviabiliza o totalitarismo simplesmente porque este não pode funcionar se os indivíduos retêm lealdades alternativas ou sequer compartilhadas com aquela que devem ao partido e ao Estado. É esse o motivo pelo qual o totalitarismo não reconhece como legítimos quer a diversidade de interesses particulares que o pluralismo de concepções alternativas acerca de fins políticos ou mesmo do interesse público. No totalitarismo, a família e os grupos e associações intermediárias voluntárias são de certo modo debilitados e convertidos em condutos que fazem convergir para o partido e para o Estado a lealdade total dos indivíduos. A estrutura social tende a ser reduzida, por um processo de radical simplificação, a dois pólos: de um lado uma massa de indivíduos atomizados e isolados e, de outro, o Estado, ou melhor, o partido, dominador e educador.”

(in O Totalitarismo Tardio, de José Giusti Tavares).

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

NUNCA LEMOS TANTO - Roberto da Matta

(Publicado em 05 de dezembro de 2012 no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO)


"Nunca lemos tanto ou fomos tão amantes do Direito como agora. Não estou afirmando que os debates do STF foram vistos como jogos de futebol, mas afirmo sem medo de errar que a cada condenação dos trambiqueiros petistas, os nossos velhos corações, acostumados a uma imoral impunidade, batiam esperançosos.

Vimos com clareza quem atuou ou não, e percebemos a impossibilidade de julgar um ex-patrão ou os amigos. Entendemos por que o liberalismo inventou a fórmula ética chamada "conflito de interesse". A consciência dos papéis sociais, de que falava, entre outros, Shakespeare, com a terrível clareza da tragédia, mostra isso. Só há duas possibilidades: ou o papel comanda a pessoa ou a pessoa comanda o papel. Se houver um conflito entre a pessoa e o papel, não pode haver desempenho porque não há convicção - essa dimensão básica da ética que dispensa a polícia e a censura porque ela se enraíza na difícil capacidade de dizer não a si mesmo demandado pela democracia.

O julgamento engendrou, por outro lado, heróis. Um deles foi o procurador-geral da República. Outro foi o relator. Ele permitiu testemunhar o desmonte de um projeto de poder contrário à democracia e à condenação daqueles que - aristocraticamente - se imaginavam acima da lei por terem um certa biografia e professarem uma certa visão de mundo.

Hoje estamos lendo tudo sobre os "livros" que, na linguagem de Rose Noronha e dos seus asseclas, eram uma metáfora para os favores obtidos graças às tramas pessoais e partidárias.

A barganha de cargos do Estado mostra como os intérpretes do Brasil estavam enganados. Todos falam da oposição entre oprimidos e opressores, entre exploradores e explorados, entre senhores e escravos quando, de fato, o que se assiste ao longo da história é um contraste assombroso entre governantes e governados. Aqueles como donos do Estado por meio de um governo; estes pagando seus escritórios, motoristas, secretários, cartões corporativos, namoradas, ilhas da fantasia, obras, grandes cagadas, viagens, massagens, passaportes diplomáticos - o c... a quatro! - com o seu trabalho e impostos.

Nossa paixão pelo estado imperial e definitivo é tão grande que conseguimos inventar dentro do capitalismo o segmento dos "empreendedores oficiais". Os que por meio de suas relações usam os cargos públicos sem seguir a ética pública. Assim, em vez de empregarem seus cargos para aprimorar o setor pelo qual são responsáveis, eles os usam para "se arrumar". O familismo, o personalismo, as amizades, a simpatia e, hoje em dia, o partidarismo, ajudam a criar fortunas. Tudo, menos o mérito, os resultados e a competência, passa a ser a norma dos governos que cometem a perversão de opor de modo radical os que pagam os impostos - nós, os governados; e eles, os governantes, que tudo podem porque estão acima da lei.

Quando dona Rosemary Noronha diz que nada fez de errado, ela está falando a verdade. E quando nos indignamos com a quadrilha da qual ela era o centro, nós também estamos com a verdade. Todos descobrimos, sem termos lido Fernando Pessoa, essa dupla existência da verdade porque um dos dados da era "lulo-petista" é a revelação de uma ética dupla que, faz tempo, acentuei no livro Carnavais, Malandros e Heróis como sendo o traço capital do sistema brasileiro. Sempre tivemos uma norma moral interna para a "casa"; e outra, externa, para o povo governado tido como pobre ou pateta, que na "rua" ganha a "bolsa idiotice" e se conforma com uma ocupação predatória do Estado por um governo cujo centro é um projeto de poder.

Dir-se-ia que chovo no molhado. Mas, vejam bem: num mundo social com uma ética para os amigos e outra para os estranhos os dois lados estão absolutamente corretos. É precisamente por isso que há impunidade. Não é a impunidade que leva ao abuso do cargo público. É o fato de jamais termos enfrentado o problema das demandas pessoais face às exigências dos cargos públicos num sistema igualitário ou republicano que leva à impunidade. Quando o STF confrontou pessoas com projetos políticos e cargos, houve condenação.

Imagine o que aconteceria se você, eleito presidente, não contemplasse seu cunhado com uma agência reguladora? Como não indicar, nomear ou pedir um favor quando a ética da amizade diz que é exatamente assim que devemos proceder? Rose está correta. Se eu sigo uma ética que engloba a morte, eu mato; se ela legitima o "tirar partido" de uma relação e um cargo, eu peço. Why not?

Se jamais politizamos a desagradável separação (e o limite) entre o cargo público com suas obrigações e os seus eventuais ocupantes, que, dentro dele procedem como se fossem seus donos, o resultado só pode ser o que traduzimos como escândalo ou corrupção. A indicação "de cima" - do PR ou do JD - como diz Rosemary - permite tudo. É como produzir uma peça de teatro escolhendo os atores pelas suas relações com o dono do teatro e não com as exigências do papel. Aí está o óbvio ululante que ninguém quer ver.

O desequilíbrio entre ator e papel resulta nesse fracasso retumbante de tudo o que vem do governo por oposição a tudo que nasce na sociedade. Em todos os lugares onde se buscou a igualdade de todos perante a lei, a separação de pessoas e papéis públicos realizou-se de modo dramático. Foi uma tarefa revolucionária, como tanto gosta o anglo-eurocentrismo e a vulgata marxista. No Brasil, só agora começamos a perceber que não há a menor chance de mudança para uma sociedade igualitária, se não tivermos a coragem de adequar pessoas aos papéis públicos que elas eventualmente ocupem."

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Democracia Constitucional e Democracia Totalitária

(Retirado do livro "O totalitarismo tardio - o caso do PT", de José Giusti Tavares)

A) Democracia Constitucional e Democracia Totalitária

“O conceito de democracia não é unívoco. Ao contrário, contém uma profunda ambigüidade que só a distinção fundamental entre governos constitucionais e governos não-constitucionais pode desfazer. Portanto, a distinção tem precedência lógica e axiológica sobre o conceito. Na tradição intelectual do Ocidente convivem em oposição e em conflito duas concepções de democracia: a concepção constitucional – ortodoxa, íntegra e virtuosa – e a concepção não constitucional, desviante e perversa ... ou a concepção totalitária de democracia.

Em sua versão constitucional a democracia é essencialmente um método, consensual e destituído de qualquer conteúdo finalístico, de tomar decisões públicas – isto é, decisões que, assumidas por todos os membros da comunidade política, diretamente ou através de seus representantes, obrigam em comum e universalmente a todos, quer lhes tenham sido favoráveis quer lhes tenham sido contrários – e, ao mesmo tempo, um valor em si mesma, pois a adesão à excelência do método é independente dos cursos de decisão e de ação que ele torna possíveis e não pode ser instrumentalmente subordinada ou condicionada à consecução de qualquer objetivo particular.

A concepção processual da democracia representativa, que a percebe como método destituído de qualquer conteúdo finalístico, é o coroamento do esforço bem-sucedido – elaborado pioneiramente por Joseph Schumpeter, na Parte IV de seu conhecido livro, publicado em 1942, Capitalismo, socialismo e democracia – de conciliar e integrar a Teoria das Elites – de Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto – e a Teoria das Organizações – de Moisei Ostrogorski, Robert Michels e Max Weber – com a teoria normativa tradicional da Democracia. Schumpeter inverteu em dois sentidos importantes o conceito tradicional da democracia representativa.

A democracia representativa schumpeteriana não é propriamente uma ordem política na qual indivíduos e grupos competem entre si pela eleição de partidos e de candidatos incumbidos de representá-los e de governá-los, mas – ao contrário – um sistema pluralista de elites e de organizações políticas que, buscando apropriar-se da ordem estatal, competem entre si pela conquista, por meio do sufrágio periódico, do consentimento e da autoridade, por parte das não-elites, diante das quais são responsáveis. Neste sistema, por outro lado, os partidos não competem pelo governo para realizar programas, mas, ao contrário, concebem programas de governo, quando na oposição, e os cumprem, quando no governo, para assegurarem, por meio de eleições pluralistas e competitivas periódicas, a conquista do poder público, a permanência nele ou o retorno a ele.No paradigma schumpeteriano de análise política, o partido constitui um caso particular de empresa e a competição periódica dos partidos pelo voto para conquistar o governo ou a sua participação nele, um caso particular da competição entre grandes empresas pela preferência dos consumidores num mercado relativamente oligopolizado. Neste processo, entretanto, o partido não renuncia ao seu papel clássico, que consiste em dirigir os diferentes segmentos da sociedade no sentido dos interesses que lhes pertencem e dos quais são, sem dúvida, os únicos juizes, mas cuja realização requer o critério e o capital de sabedoria política acumulados pelo partido.

O realismo schumpeteriano pode parecer cínico, porque não faz qualquer concessão à ingenuidade, à hipocrisia ou ao sectarismo, mas tem o mérito de excluir a substantivação totalitária do conceito de democracia.

A democracia constitucional alimenta-se ao mesmo tempo do consenso acerca das regras do convívio político e do dissenso, cuja legitimidade e propriedade integradora reconhece, acerca dos objetivos. Nela, indivíduos e grupos – divididos pela diversidade de interesses, pelo pluralismo de fins e por concepções diferentes acerca do interesse público – obrigam-se universalmente a um conjunto de regras processuais que lhes permitem ao mesmo tempo o convívio, a cooperação pacífica e ordenada e a competição pela definição das políticas públicas. Em suma, o método democrático viabiliza um sistema pluralista de elites, de organizações políticas e de partidos que competem entre si pela posse ou pelo controle do governo por meio da conquista, através do sufrágio periódico, do consentimento e da autoridade que lhes conferem as não-elites, diante das quais são responsáveis.Na construção da democracia ocidental contemporânea o constitucionalismo precedeu secularmente o governo representativo e ambos precederam, também secularmente, a democracia, isto é, a expansão popular do voto e da participação política.

No constitucionalismo o exercício das funções e do poder inerentes à soberania é distribuído entre agências governamentais que, condenadas a atuar em concerto, ao mesmo tempo cooperam e limitam-se reciprocamente, de modo que, ao fim e ao cabo, a soberania não pertence a qualquer indivíduo, organização, partido ou segmento social, nem mesmo ao povo ou aos seus representantes, mas à Constituição, às Leis e às Instituições, nesta hierarquia, as quais, consensualmente reconhecidas pela comunidade política, definem obrigações e direitos, individuais e sociais, asseguram predictibilidade ao convívio coletivo e limitam o exercício de todas as formas, públicas e privadas, de poder.A idéia do constitucionalismo moderno encontra-se sintetizada no artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação de poderes determinada, não tem constituição”.A base sociológico-política da difusão e da limitação do poder, bem como das liberdades individuais e coletivas, que integram o constitucionalismo, é a existência de uma multiplicidade de associações intermediárias voluntárias, que funcionam como mediadoras entre o indivíduo e o Estado e como centros de lealdades alternativas, e de uma sólida tradição de auto-governo local. Evidências dessas práticas foram surpreendidas por Políbio na Constituição Romana, por Montesquieu no feudalismo político europeu ocidental e por Tocqueville nas colônias inglesas da América.

Concebida por Montesquieu, a engenharia institucional do constitucionalismo, com a teoria da separação de poderes e o mecanismo de freios e contrapesos que lhe são inerentes, foi ulteriormente aperfeiçoada por Hamilton, Jay e Madison – os Pais Fundadores da Constituição norte-americana – nos artigos reunidos no Federalist Papers, e pelas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte.

O fundamento da democracia constitucional, explicitamente consagrado pelo artigo 1º, inciso V, da Constituição brasileira de 1988, é o pluralismo político, isto é, o reconhecimento, por parte dos diferentes atores políticos, individuais e coletivos, de que é legítima a diversidade de interesses particulares e de concepções particulares acerca do interesse público que competem pelas decisões soberanas e pela posse ou pelo controle do governo. Por outro lado, a democracia constitucional é essencial e não apenas contingencialmente representativa, pois, como demonstrou Kant, dada a sociabilidade insociável que caracteriza a sua natureza, os indivíduos humanos são incapazes de se auto-governarem e a liberdade constitucional não pode ser outra se não a sujeição voluntária, por parte de cada um e de todos os sujeitos que integram a comunidade política, às leis a que se auto-obrigam por antecipação ao elegerem representantes com a faculdade e a responsabilidade independentes de elaborá-las.

Em outros termos, o governo representativo não é uma limitação ou uma contingência da democracia constitucional. Ao contrário, a democracia ou é representativa e, deste modo, constitucional, ou não é representativa e, assim, não é constitucional. Na democracia pluralista e representativa cada partido político é uma organização de pessoas associadas entre si não por interesses particulares comuns nem por uma visão única e unívoca da boa sociedade, mas por uma concepção particular, que possuem em comum, acerca do interesse público; o que é muito diferente quer da idéia privatista, arcaica, da representação política, quer da idéia, peculiar ao totalitarismo, do partido como portador de uma ideologia uniforme, monolítica e omnicompreensiva.

Enfim, a expansão popular da cidadania ampliando a comunidade política para fazê-la virtualmente coincidir com a sociedade civil, introduz, sobre a base do constitucionalismo e do governo representativo, a democracia em sua forma política virtuosa.Ao contrário, a democracia totalitária identifica-se como a busca de uma ordem social final única e unívoca a ser trazida do reino da virtualidade ao reino da história concreta por obra de um grupo, de uma organização ou de um partido revolucionário que, detendo a consciência antecipada do processo, também único e unívoco, que a ela conduz, deve conquistar a direção hegemônica da sociedade. E, se tanto essa ordem pública final e ideal quanto o processo que a ela conduz são únicos e unívocos, não há lugar, em política, para versões alternativas, quer acerca de fins, quer acerca de meios; versões ou projetos alternativos constituem, na melhor hipótese, equívoco ou erro, e, na pior, mas não menos freqüente, delito.

Num estudo publicado em 1951, J. L. Talmon identificou a origem teórica da democracia totalitária na concepção messiânica rousseauniana de vontade geral. Mas já em 1944, em seu livro clássico - A sociedade aberta e seus inimigos - Sir Karl Popper derivara a teoria do totalitarismo político do que denominou o historicismo de Platão e sucessivamente de Hegel e de Marx”.
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B) A gênese sociopática do totalitarismo

“Enquanto comportamento e enquanto ideologia política o totalitarismo é um fenômeno moderno. É uma resposta inadaptada e sociopática aos desafios introduzidos pelo ingresso das massas na política em sociedades nas quais, por outro lado, o processo acelerado e radical de mudanças tecnológicas, crescimento econômico e secularização sociocultural produzem descontinuidades e crises cíclicas nos valores e nos marcos de referência da ação gerando, no homem comum, entre as elites e entre os intelectuais, níveis intoleravelmente elevados de incerteza e de percepção de ameaça.

Sob tais condições, um largo número de indivíduos experimenta a erosão, a descontinuidade e a ruptura dos vínculos que os integram aos grupos e às associações primárias e intermediárias, mergulhando na atomização que caracteriza a condição de massas. O crescimento econômico rápido e a urbanização com ou sem industrialização geram expectativas e aspirações. As crises cíclicas de inflação, desemprego ou depressão, que interrompem ou perturbam subitamente esses processos, introduzem frustrações e decepções. Frustrações e decepções ampliam o universo das elites desajustadas e ressentidas, convertendo-as sucessivamente em contra-elites e em elites revolucionárias e colocando diante delas, massas disponíveis para manipulação.

A secularização e a racionalização crescentes destroem os valores e as normas tradicionais de ação mais rapidamente do que conseguem substituí-los por normas e valores modernos, inaugurando um intervalo de vazio normativo ou, literalmente, de anomia. A universalização do acesso às informações incrementa o sentimento de igualdade que, como observara Tocqueville, os homens assimilam e apreendem mais facilmente do que a difícil arte de associar-se. Instalam-se assim o cenário e os atores dos movimentos totalitários de ruptura, à direita ou à esquerda, da ordem política.

Existem diferentes construtos analíticos que iluminam a direção e as implicações complexas dos processos de expansão tecnológica, de crescimento econômico, de urbanização, de industrialização, de secularização cultural e de modernização sócio-política, dos quais o totalitarismo é uma resposta sociopática. Dentre eles, o mais abrangente e penetrante, do ponto de vista psicossocial, é a teoria, elaborada por Talcott Parsons, das mudanças na natureza e na orientação da ação social e na distribuição de papéis sociais que se seguem à transição das sociedades comunais ou tradicionais às sociedades modernas. Rigorosamente, nas sociedades tradicionais o homem percebe-se não como indivíduo mas como membro integrado por uma relação de pertencimento a uma totalidade comunal que lhe atribui desde cedo, adscritivamente, em virtude de seus atributos herdados, tais como condição ou status, uma posição e um papel determinados. Ao mesmo tempo, a sociedade tradicional provê aos seus membros uma normatividade prescritiva exaustiva, que contém padrões claros, definidos e precisos, modelos prontos e acabados, de resposta a cada espécie de situação, cuja observância ou transgressão lhes permite antecipar com inteira segurança as conseqüências de seu comportamento. Nas sociedades tradicionais as expectativas recíprocas dos sujeitos, quanto aos valores envolvidos nas relações sociais, são muito amplas mas, ao mesmo tempo, quase íntimas, difusas e não claramente definidas e delimitadas. Contudo, as expectativas quanto ao acesso às posições econômicas ou políticas são particularistas e adscritivas.

Ao longo do processo de modernização os laços primários, comunais, pessoais e concretos sofrem um processo de inevitável dissolução e são crescentemente substituídos por laços societários, voluntários mas contratuais, impessoais e abstratos. Na orientação da ação, marcos normativos prescritivos são substituídos por marcos eletivos, isto é, por critérios gerais de conduta que não dispensam a escolha e a responsabilidade individuais exigidas pela complexidade inesgotável das formas modernas de vida. Os indivíduos percebem-se, assim, entregues à incerteza, à ansiedade e, segundo Erich Fromm, ao medo que a liberdade suscita. No acesso a funções e a papéis e na avaliação da conduta, os critérios adscritivo-particularistas cedem lugar a critérios universalistas, fundados do desempenho medido pela competência e pela competição.

Nas sociedades tradicionais as ações contêm em si mesmas a sua gratificação emocional, enquanto a ação típica da sociedade moderna é afetivamente neutra e instrumentalmente subordinada a uma gratificação conseqüencial, que nela não se encontra. O homem tradicional orienta-se a partir de dentro e para dentro – isto é, da e para a família e os grupos primários e intermediários – enquanto o indivíduo moderno se orienta a partir de fora e para fora – isto é, da e para a sociedade e o mercado impessoais e anônimos.Essas mudanças psicológicas fundamentais convertem a incerteza na característica central da modernidade: incerteza quanto ao comportamento dos outros, quanto às conseqüências da própria ação e quanto ao futuro. É impossível suprimir a incerteza e, se tal fosse possível, eqüivaleria a eliminar um poderoso estímulo e fonte de energia para a ação (vale lembrar aqui a afirmação de Freud de que o homem deve aprender a conviver com uma certa dose de angústia). A incerteza e a insegurança tanto quanto o medo são as fontes aparentes mais importantes da ansiedade do homem nas sociedades em processo de modernização e por este motivo ocupam um papel decisivo na gênese psíquica-social das ideologias totalitárias. Não é outro o motivo pelo qual o totalitarismo é, a rigor, um fenômeno moderno.

A incerteza encontra-se na medula de democracia pluralista e competitiva, a forma política por excelência da sociedade moderna. A higidez psicológica do homem moderno depende de sua capacidade de conviver tão racionalmente quanto possível com a incerteza. Entretanto, é possível e racional reduzir a incerteza. E reduz-se a incerteza com informação fatual, com informação contextual e com saber científico ou teórico. Mas há uma forma mágica e radical de reduzir ou mesmo eliminar a incerteza, que dispensa todo tipo de informação, ciência ou conhecimento orientado para a realidade: é a adesão emocional a uma teoria omnicompreensiva da história humana que ofereça a antecipação e a presencialização de um futuro imaginário. Como essa teoria não pode ser submetida ao teste ou à refutação empíricos, a sua lógica interna basta para assegurar a coesão intelectual que lhe permite prover uma incrível sensação de segurança psicológica.

Um dos traços cognitivos mais notáveis da mentalidade totalitária, observável em Rousseau e Marx, consiste em perceber a complexidade estrutural, e a especialização funcional crescentes que, normalmente, caracterizam o desenvolvimento tecnológico e econômico e a modernização sócio-política, como fenômenos patológicos. Essa percepção, derivada da identificação das repercussões desses fenômenos sobre as consciências individuais, se encontra na base do conceito de alienação, definida como cisão, distanciamento e estranhamento, entre os sujeitos humanos e as suas obras ou os produtos de sua interação e de seu trabalho.

No Discurso sobre as Ciências e as Artes, Rousseau concluiu que o progresso da cultura havia debilitado a virtude, corrompido os costumes, fragilizado o convívio social e tornado o homem infeliz.Schiller descreveu pateticamente a alienação do homem moderno: “A satisfação está separada do trabalho, os meios estão separados dos fins e o esforço também o está da recompensa. Eternamente acorrentado apenas a um único fragmento do todo, o homem se considera apenas como se fosse um fragmento”.

Em Feuerbach a alienação consistia basicamente na cisão entre o indivíduo, finito, e a espécie, infinita. Para Marx, a cisão entre o homem e a natureza, entre o indivíduo e a sociedade, entre a sociedade e o Estado, entre o público e o privado, entre o trabalho, produtor, e a sua obra, a mercadoria, são diferentes manifestações da alienação humana na sociedade capitalista e de classes, que o comunismo faria desaparecer.

Contudo, alguns fenômenos identificados como alienação constituem mecanismos fundamentais sem os quais nenhuma sociedade minimamente civilizada funcionaria. O que seria, por exemplo, uma sociedade na qual não houvesse a separação entre as esferas pública e privada? Seria uma sociedade que tivesse privatizado inteiramente o público? Mas, neste caso, o que aconteceria com uma sociedade civil sem norma ou instituição públicas? Mergulharia certamente na anomia e na autodestrutividade do estado na natureza. E, inversamente, o que seria uma sociedade que tivesse publicizado inteiramente as relações privadas? Seria a realização extrema do totalitarismo. E é essa certamente a utopia marxista."
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C) As quatro ondas do totalitarismo

“Recorrente na história política do Ocidente, o totalitarismo emergiu, entre o fim da Idade Média e a metade do século XX, em quatro momentos diferentes, em cada um dos quais povos colocados sob condições excepcionais de miséria e privação reagiram contra formas materiais e intelectuais modernas de vida às quais associavam, real ou magicamente, o seu infortúnio, deixando-se envolver por mobilizações revolucionárias fundadas no apelo a escatologias primitivas.O primeiro momento ocorreu ao longo das mudanças econômicas, tecnológicas, sócio-políticas e culturais que atravessaram o Renascimento e a Reforma, combinando o racionalismo crítico e o nacionalismo religioso. Sob tais condições, a Igreja deslizara adaptativamente para compromissos com o humanismo e a mundanidade, num quadro de valores que incluía a sensualidade, o luxo, a ostentação e a idéia da salvação pelas obras. A Reforma reagiu com uma formidável regressão, retomando três idéias fundamentais de Agostinho, o bispo de Hipona. A primeira é a da maldade intrínseca do homem que, incapaz de salvar-se pelo próprio mérito e pelas próprias obras, salva-se apenas pela graça de Deus. A segunda é a do dualismo teológico-moral irreconciliável entre a Civitas Terrena, essencial e irremediavelmente corrupta, mergulhada na sofisticação e no pecado, e a Civitas Dei, que concentra em si a integridade e a simplicidade de Deus e do Bem, entre as quais não há neutralidade ou indiferença possíveis. E a terceira é a de que a história universal anunciava o triunfo final próximo da Civitas Dei, percebendo-o como um retorno à Idade de Ouro ou à perfeição que precedera à queda originária do Homem.Quebrado o monopólio do magistério divino pela Igreja, essa concepção maniqueísta da história assumiu diferentes variações, sobretudo na teologia popular das seitas cristãs milenaristas que mobilizaram as insurreições camponesas comunistas do século XIV à metade do século XV: os lollards, inspirados em John Wiclef, na Inglaterra; os anabatistas, em Thomas Munzer, na Turíngia; e os taboritas, em John Huss, na Boêmia. Essas seitas, conhecidas pelo nome de quiliasmo, possuíam em comum traços intelectuais que comporiam a “weltanschauung” da democracia totalitária: a convicção de que a história da salvação humana é a de uma luta permanente entre Bem e Mal absolutos e de que, encontrando-se inteira e irremediavelmente corrompida, a sociedade não pode ser melhorada e deve ser, ao contrário, destruída para apressar o retorno inevitável do Reino de Deus, da Perfeição e da Justiça na Terra, que pertencerá aos pobres e austeros. As implicações totalitárias do quiliasmo são, pois, muito claras.

A teologia moral cristã medieval, ulteriormente retomada pelo anglicanismo e por Locke, percebia a natureza humana ao mesmo tempo em termos de falibilidade e perfectibilidade, o que explicava a possibilidade de aperfeiçoar a sociedade por meio de melhorias incrementais. Com a Reforma, essa perspectiva foi substituída pela crença agostiniana na natureza irremediavelmente degenerada do homem e no antagonismo entre Bem e Mal absolutos, o que reduzia toda mudança política a uma única alternativa: a redenção humana pela violência revolucionária, convertida em princípio ético supremo. Mudanças modernizantes passaram a ser identificadas não só como conciliação mas com o progresso do Mal. E a recuperação do primitivo paraíso perdido, o retorno palingenético, tornou-se a aspiração moral superior. (Palingenético refere-se ao eterno retorno).

No segundo momento, a democracia totalitária cristalizou-se, como desdobramento antitético do Iluminismo e do racionalismo liberal francês, na Teoria Mítica da Vontade Geral, concebida por Jean-Jacques Rousseau como a antecipação, pelo Legislador e Guia Revolucionário, de uma ordem natural latente que, entretanto, deverá ser trazida do reino da virtualidade para o reino da realidade como resultado final e irresistível da história humana: uma ordem única e unívoca à qual a massa comum dos homens, mergulhada no mundo da consciência imediata a aparente, não tem acesso, mas para a qual a sua liberdade e as suas ações devem ser orientadas ou mesmo compelidas pelo estadista revolucionário, que detém a consciência antecipada e privilegiada daquela ordem, do processo que conduz à sua realização e dos interesses reais do homem comum, que este, contudo, desconhece. Trata-se da mais acabada concepção, anterior a Marx, de um totalitarismo político edificado sobre uma teoria messiânica secular da história humana. Ao longo da segunda metade do século XVIII essa concepção percorreu uma trajetória de clara continuidade que, atravessando o pensamento de comunistas estatistas, como Diderot, Helvetius e Mably, chegou à ditadura jacobina do Terror e, no governo termidoriano que seguiu o esmagamento daquela, à Conspiração dos Iguais, conduzida por Grachus Babeuf e Philippo Buonarroti.No terceiro momento, no século XIX, já sob o impacto da Revolução Industrial, a teoria e a estratégia Babouvista da conspiração e do golpe insurrecional de Estado inoculou-se no comunismo moderno com Auguste Blanqui. O blanquismo dirigiu política e militarmente a Comuna de Paris de 1871 e dele Marx e Lenine herdaram a concepção da ditadura do proletariado.

Enfim, num quarto momento, como seqüela do imperialismo europeu e da primeira guerra mundial, o totalitarismo triunfa, à esquerda, com a revolução bolchevista, na Rússia, e subseqüentemente, à direita, com o fascismo italiano e com o nazismo alemão.O êxito do comunismo na Rússia e o do fascismo na Itália ilustram claramente algumas das proposições acerca da gênese do totalitarismo. Tanto a sociedade russa quanto a italiana exibiram à época que imediatamente precedeu a fermentação totalitária um ritmo consideravelmente elevado de crescimento econômico, que foi logo coarctado, na Rússia em virtude do desastre militar e na Itália porque, vitoriosa na guerra, perdera o acesso às áreas de controle colonial e de mercado externo capazes de assegurar-lhe a continuidade do crescimento industrial. Largos segmentos sociais foram reduzidos à condição de massas e logo mobilizados por elites revolucionárias: na Rússia, o campesinato, os soldados e um pequeno número de operários urbanos e, na Itália, as classes médias urbanas e os ex-combatentes, que não conseguiam reintegrar-se à economia e à sociedade, o que explica as direções, opostas, dos dois movimentos.

De qualquer modo, não há dúvida de que a matriz dos regimes totalitários contemporâneos foi o comunismo russo. Sidney Hook observou com acuidade que “culturalmente, e à luz de seu desenvolvimento, o leninismo deve ser encarado como o primeiro movimento fascista do século XX”. E Rudolph Hilferding, o notável economista marxista que edificou, com anterioridade em relação a Lenine, a teoria do imperialismo, definiu a economia russa, em 1940, como “uma economia de Estado totalitário, isto é, um sistema do qual se aproximam cada vez mais os sistemas econômicos da Alemanha e da Itália”.O socialismo marxista moderno e o quiliasmo medieval possuem em comum o fato de que produzem a presencialização emocional, como potência psíquica irrecusável, do futuro desejado. Pois o marxismo provê uma teoria secularizada, racional, auto-suficiente, totalizante e omnicompreensiva que percebe a história humana como um movimento irresistível em direção a um desenlace escatológico e que, deduzida a partir de juízos insuscetíveis de qualquer contraste com a realidade imediata, assume, entretanto, a pretensão de Ciência, substituindo com vantagem, nos séculos XIX e XX, como fonte de energia revolucionária, destruidora da ordem, o socialismo religioso telúrico do quiliasmo. Ao eliminar a incerteza, reduz ou suprime a ansiedade, produz segurança e, ao propor o futuro desejado como inevitável, induz à sua presencialização como força de negatividade, gerando energia extática e capacidade inabalável para a luta revolucionária.Para aquelas pessoas incapazes de suportar a condição trágica da incerteza, do risco e da insegurança, a religião telúrica e o quiliasmo provêem, na cultura moderna, um remédio que nem a ciência nem a religião extraterrena conseguem suprir.Como perceberam Blaise Pascal, Arthur Schoppenhauer e Miguel de Unamuno, a religião genuína, sobrenatural, é a expressão da perplexidade e do sentimento trágico da vida que resultam do contraste e da tensão entre a alma, que aspira ao infinito, e a finitude, a contingência e a dor moral. Mas ao mesmo tempo ensina o homem comum, não intelectualizado, a conviver com a imperfeição e as misérias da existência. A religião secular, política, essa sim, é o ópio destilado pela arrogância de elites desajustadas compulsivamente movidas pela destrutividade do instinto de morte.

Duas observações se impõem acerca da natureza da política e da ciência, bem como das relações entre ambas. A política, enquanto atividade, nada tem a ver com a ciência nem substitui o critério da ética. Não é o mecanismo da decisão, pelo voto ou pela violência, entre o verdadeiro e o falso ou entre o bem e o mal. É o domínio no qual versões alternativas acerca do interesse público competem e negociam entre si pela posse ou pelo controle do governo e das decisões legislativas. É também um método de viabilizar e resolver o conflito, a competição e a negociação entre interesses particulares diferentes e entre versões alternativas do interesse público que, compartilhando o consenso acerca dos valores, das regras e das instituições inerentes àquele método, percebem-se reciprocamente como legítimos. Assim, no funcionamento da democracia constitucional dissenso e consenso são igualmente legítimos e necessários. Nenhuma parcialidade ou pretensão política pode invocar a ciência em seu benefício e em detrimento das demais. Por seu turno, a ciência nada pode demonstrar acerca da legitimidade de valores competitivos e nada pode dizer que justifique a decisão entre fins alternativos.

A este respeito, importa refletir sobre o exemplo da social-democracia européia. Numa conferência pronunciada na Universidade de Berlim - e publicada sob o título "Como é possível o socialismo científico?" - Eduard Bernstein afirmou que o socialismo é essencialmente uma opção entre valores políticos, uma decisão entre fins alternativos, um projeto político que, competindo com outros pelo governo, não pode arrogar-se legitimamente em seu benefício e em prejuízo dos demais a infalibilidade da ciência. Em seu primeiro livro - "As hipóteses do socialismo e a tarefa da democracia socialista" - Bernstein já havia argumentado que as leis férreas da economia política marxista (a concentração crescente do capital e a miséria crescente do proletariados, o desaparecimento das classes sociais intermediárias, as crises de superprodução e de subconsumo e, enfim, o colapso final do capitalismo), perdiam cada vez mais a sua plausibilidade diante dos rumos assumidos pelo desenvolvimento econômico europeu e internacional.

E, finalmente, no livro "Socialismo Evolucionário", publicado em 1899 e imediatamente famoso, Bernstein expressou pela primeira vez no movimento socialista europeu a suspeita, até então oculta pelo constrangimento sectário, de que a previsão, por Marx, da catástrofe final, mas sempre iminente do capitalismo, à qual seguir-se-iam mais ou menos rapidamente a revolução proletária, não contava com qualquer apoio nas evidências históricas das últimas décadas.Em 1959, o Partido Social Democrata Alemão proclamou clara e enfaticamente, no programa adotado pelo Congresso de Bad-Godesberg, que não professava nenhuma crença religiosa, concepção do mundo ou teoria político-social que contivessem verdades últimas e exclusivas, argumentando que a sua renúncia a qualquer credo ordenador fundamentava-se na convicção de que partidos confessionais e Estado confessional comprometem irremediavelmente o pluralismo do convívio constitucional.Esta concepção, essencialmente correta, sustentada pela social-democracia, é crucial para distinguir entre si partidos que efetivamente são e partidos que não são constitucionais. E isso singelamente porque a democracia constitucional supõe não só o consenso acerca de regras e do método do convívio político mas, ao mesmo tempo, a legitimidade do dissenso, isto é, a diversidade de interesses e o pluralismo de fins e de concepções acerca da política que competindo entre si pelo governo, se reconhecem como igualmente legítimos.Em suas origens, a social-democracia separou-se da tradição socialista revolucionária precisamente à medida que renunciou, formalmente e por princípio, não apenas à via revolucionária armada, conspiracional e insurrecional, mas à escatologia de fins últimos em cuja busca todos os meios, se eficazes, são considerados bons e, finalmente, à teoria do partido como portador ilustrado não dos interesses que efetivamente, aqui e agora, possuem os operários, mas dos interesses que ele predica à classe operária como os interesses reais, embora virtuais, daquela, bem como da missão histórica que, necessariamente reservada àquela, cabe à intelectualidade revolucionária do partido revelar e ensinar. A social-democracia rejeita a concepção de um partido socialista que se auto-presume portador dos interesses virtuais de uma classe, ainda que essa classe seja o operariado, e que busca ocupar o Estado para colocá-lo sob a sua direção hegemônica, tendencialmente monolítica e exclusiva. E, enfim, à medida que romperam com esses componentes totalitários, diferentes vertentes do socialismo europeu convergiram para a social-democracia.D) O totalitarismo tardio: a quinta onda. Entretanto, sob as condições semibárbaras da Rússia do início do século XX e, logo, do isolamento e da polarização que acompanharam a guerra fria, o leninismo não apenas reteve mas aprofundou os componentes totalitários do socialismo primitivo. Mas no último quartel do século XX, a democracia totalitária não resistiu ao impacto de dois fenômenos que, independentes entre si, atuaram em sinergismo na mesma direção: a irreversível erosão do marxismo ocidental e a súbita desintegração do mundo comunista.

Ainda assim, o marxismo revolucionário não desapareceu com o refluxo. Ao contrário, sobreviveu dissimulado pela sua dispersão e pelo seu encapsulamento adaptativo em miríades de exotismos intelectuais que em todo o mundo se infiltram na Universidade, na Ciência, na Filosofia, na Teologia, na epistemologia, na Educação, na Arte, na Psiquiatria e na Medicina. E o ressentimento, alimentado pela frustração e pela sensação de orfandade, tornou-o ainda mais voluntarista, arrogante e agressivo, o que explica uma quinta e última onda: a do totalitarismo tardio.Por outro lado, como observou Sartori, o ritmo e a intensidade em que se operou o desencantamento com a ilusão revolucionária do totalitarismo foram menores nos países distanciados e periféricos em relação às sociedades mais avançadas da Europa e aos Estados Unidos. Este fenômeno explica em grande parte a sobrevivência residual do marxismo revolucionário na América Latina e, em particular, a expansão, no Brasil, sobretudo entre as classes médias tributárias do Estado e do setor público da economia, na universidade e entre operários e camponeses, do Partido dos Trabalhadores, que ainda não renunciou explicitamente à concepção que faz de si mesmo como partido de fins últimos.Pois quaisquer que sejam as tendências em que se divide internamente, o PT possui em comum ainda hoje uma concepção acerca da natureza e dos fins da política, bem como acerca de si próprio, que – dissimulada pela evocação da modernidade, pelas concessões convencionais ao anti-estalinismo e, mais recentemente, por uma estratégia de ambigüidade – é essencialmente a mesma que peculiarizou o socialismo messiânico primitivo, o marxismo e o leninismo.

Tarso Genro afirmou em 1988 que o seu partido deveria apropriar-se da teoria “de Rosa, Lênin, Gramsci, Lukács e Bloch”. A frase não é apenas uma exibição aleatória de marxologia; ao contrário, aponta para o voluntarismo, a violência e a ditadura como meios e a escatologia como fim, Importa não esquecer a advertência, feita por Marcuse, de que, nesta equação estratégica, os meios contaminam e pervertem os fins, substituindo-os, cedo ou tarde, no comportamento dos sujeitos. O PT não é um partido político no sentido convencional, que a tradição das democracias constitucionais do Ocidente registra. Não é uma organização cujos membros se associam para disputar, com base num programa concreto e específico, e por meio de eleições regulares periódicas, o exercício consentido e transitório do governo. É uma organização que busca, ao mesmo tempo, pela via institucional e gradual e pela violência revolucionária, a destruição da ordem política constitucional “burguesa”.

Na concepção política do PT simplesmente não há lugar para a distinção complexa, delicada e sutil – sobre a qual, entretanto, se ergue a democracia constitucional – entre Estado (instituição permanente que detém a soberania, isto é, o monopólio da capacidade de regulação do convívio societário), governo (conjunto de agências e de agentes que partilham o exercício das diferentes funções da soberania para a realização do interesse público), e partidos (organizações que competem periodicamente entre si pela ocupação temporária, com base no consentimento do eleitorado, das agências governamentais). Do ponto de vista do materialismo histórico, essa distinção é certamente uma construção formal, que se invoca com malícia e se observa por ingenuidade.É enganosa, por outro lado, a versão de que a resistência suscitada pelo PT no Rio Grande do Sul (no tempo em que Olívio Dutra foi governador), consistiu simplesmente em ter introduzido o governo de partido numa sociedade que perdeu ou nunca teve esse tipo de tradição. O “party government”, isto é, o governo confiado à responsabilidade constitucional de um único partido – que se constitui nos regimes bi-partidários clássicos, como o Reino Unido e os Estados Unidos – é a forma mais estreita de identidade entre partido e governo admissível numa democracia constitucional. Nada tem a ver com essa forma o fenômeno, que se observou no Rio Grande do Sul, de um partido que assimila, absorve e substitui o governo, confundindo-se literalmente com o próprio Estado.Portanto, quando no governo do PT um ativista partidário, convertido em servidor público, emprega uma folha de papel com o timbre do Estado para correspondência do partido, não se trata apenas do comportamento de alguém despreparado para a função pública. Trata-se do comportamento de um quadro partidário condicionado, pelo convívio ideológico cotidiano e pela compulsão totalitária, para a regressão a formas psíquicas pré-civilizadas de interação política.

A primeira, embora não a mais importante, manifestação da dificuldade insuperável para o PT de conviver com a democracia constitucional foi a relutância dos constituintes desse partido em assinarem a Constituição de 1988, obrigando-se formalmente ao contrato constitucional sobre o qual se esquina o regime democrático. Assinaram-na apenas sob reserva, depois de terem votado NÃO, por unanimidade, ao texto constitucional final, justificando formalmente aquela atitude com o argumento de que o “PT, como partido que almeja o socialismo, é por natureza um partido contrário à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo, e rejeita a imensa maioria das leis que constituem a institucionalidade que emana da ordem burguesa capitalista, ordem que o partido justamente procura destruir”, conforme circular do Diretório Nacional do PT.Entende-se essa atitude.Em dezembro de 1987, nas Resoluções Políticas do V Encontro Nacional, o PT propusera como objetivo político “a liquidação da burguesia como classe”, que “compreende a liquidação de suas organizações civis e de seu Estado” como prelúdio para “um Governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto um Governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária” (Resoluções n.º 50 e 75).

Ao longo de duas décadas de existência o Partido dos Trabalhadores empreendeu um crescimento eleitoral continuado, sem qualquer reversão intermitente e a uma taxa superior ao crescimento do número de votantes, sobretudo no Sudeste e no Sul e, em particular, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Entretanto, durante todo esse tempo, suficiente para explicar-lhe a expansão eleitoral, não conseguiu desvencilhar-se de suas origens ideológicas: o leninismo, o trotskismo e o cristianismo quiliástico. Não renunciou inequivocamente à sua pretensão de partido confessional, portador e revelador de uma teoria única, unívoca e omnicompreensiva acerca da sociedade e do futuro. Não se desfez dos métodos conspiratoriais e insurrecionais de luta política. Ao contrário, possui um braço armado – o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) – que trava, no campo, a guerra de posição, com o estilo de um fascismo vermelho.Três são as mais importantes entre as diferentes tendências internas do PT. A Articulação, de Luiz Inácio da Silva, Olívio Dutra, José Dirceu e Eduardo Suplicy reune sindicalistas históricos e social-democratas, padres e leigos da Igreja progressista e comunistas do PCB e do PC do B, votando a favor do Projeto Final e da assinatura da Constituição. A Nova Esquerda, de José Genoíno e Tarso Genro, intelectuais revolucionários marxistas-leninistas-maoístas que, dissidentes do PC do B, se haviam organizado no Partido Revolucionário Comunista (PRC), votou contra o Projeto Final mas a favor da assinatura da Constituição. E, finalmente, a Democracia Socialista, organização trotskista vinculada à Quarta Internacional Comunista, da qual fazem parte Raul Pont, Miguel Rosseto, Paulo Torelly, João Verle e o ex-comandante da Brigada Militar (a PM gaúcha), Roberto Ludwig, é a tendência mais coerentemente revolucionária do partido: opôs-se ao Projeto Final e à assinatura da Constituição.No Rio Grande do Sul, eleito para o governo em segundo turno, numa competição equilibrada, por diferença diminuta, e contando com menos de um terço das cadeiras da Assembléia Legislativa, o PT se comporta com a arrogância própria de quem obteve a vitória numa revolução armada.

Enquanto os diferentes partidos comunistas europeus movimentam-se claramente em direção à social-democracia, retendo do comunismo apenas o halo nostálgico, o PT continua a perceber-se não apenas como um partido monoclassista mas como o representante presumido dos interesses que predica aos trabalhadores e como portador e revelador de uma teleologia histórica imanente capaz de conduzi-los, através de infindáveis lutas de classes, à construção de uma ordem social final e ideal. Ao crescer em eleitorado e em organização o PT distanciou-se progressivamente do sindicalismo industrial do ABC, no seio do qual se constituíra, não para converter-se à idéia da democracia parlamentar, mas para adotar uma perspectiva política corporativista, patrimonialista e estatizante, própria das classes médias clientelísticas, tributárias do emprego público e do setor estatizado da economia.Num artigo publicado em março de 1989, “A composição social das lideranças do PT”, Leôncio Martins Rodrigues definiu-o como “um partido de classe média assalariada, notadamente de profissionais liberais e outras profissões intelectuais, sendo minoritária tanto a proporção de trabalhadores manuais como a de membros das classes altas, e praticamente inexistente a de proprietários (pequenos, médios ou grandes)”.

Com a rápida e profunda liquidação do setor público da economia e com a deterioração da educação e do serviço públicos, que se operaram ao longo dos anos 90, essas classes médias foram submetidas à dolorosa erosão dos fundamentos do seu modo de vida, tornando-se ainda mais sensíveis e receptivas aos apelos do voluntarismo revolucionário insurrecional contido na simbiose de leninismo e trotskismo que parecia ter sido deixada de lado. Como conseqüência, o pragmatismo sindicalista inicial, que poderia ter cedido lugar à política social-democrática, foi substituído, no comportamento do PT, por uma versão nativa da estratégia da dualidade de poder, originariamente concebida por Trotski e Lenine: ao ocuparem o Estado pela via das eleições e do emprego público, os quadros daquele partido buscam a fragilização e, logo, a destruição revolucionária da ordem político-institucional burguesa, pressionando-a por dentro e de cima, pela via da representação parlamentar e da ocupação de governos (federal, estadual e municipal), e ao mesmo tempo por fora e de baixo, por obra da hegemonia que detêm, através da militância, sobre a participação política popular.

Entretanto, precisamente porque se situou no coração da concepção teleocrática da política e da concepção totalitária da democracia, o Partido dos Trabalhadores atraiu para si, explorando-as, algumas variedades telúricas de cristianismo. Engels, Kautski, Bloch e os historiadores marxistas, em geral, haviam concluído que a religião – que Marx percebera como ópio do povo – convertera-se, com o cristianismo quiliástico, numa poderosa fonte de excitação revolucionária. Nos anos 80, os trotskistas, leninistas e sindicalistas revolucionários que fundaram, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores, deram-se conta imediatamente de que a imagem quiliástica da realização terrena do Reino de Deus e da Justiça, difundida pelo clero católico das pastorais da terra e das comunidades eclesiais de base, teria a propriedade de ativar, entre os despossuídos do campo e da cidade, uma compulsão psicossocial e uma energia ilimitada para a guerra revolucionária.A síntese do quiliasmo das pastorais da terra encontra-se em Frei Betto. “A salvação”, afirma, “não é alguma coisa que se restrinja ao outro mundo ou a outra vida. Ela começa a se efetuar aqui, onde o Reino de Deus já se fez presente em Jesus e permanece entre os povos. No tecido da história, a salvação de Deus se traduz em libertação dos homens. Não basta uma libertação pessoal e interior do homem, que não transforme as estruturas eivadas de pecado em que ele vive e pelas quais se sente condicionado. Por isso esta libertação tem necessariamente um alcance político, dentro de um contexto econômico e social”.

Mas Frei Betto vai muito além do quiliasmo medieval ao propor que “do trabalho de organização popular feito em torno das comunidades eclesiais de base é necessário passar à mobilização política centrada num instrumento de representação dotado de uma proposta programática menos genérica que a da pastoral e mais imediatamente vinculada à mudança de poder na sociedade. Esse instrumento é o partido político, conduto entre a sociedade civil e a sociedade política – o aparelho de Estado”.

Num livro sobre Fidel Castro, o frade reproduz com aprovação entusiasmada a sentença do ditador, segundo o qual “os ensinamentos de Cristo são altamente revolucionários e coincidem totalmente com o objetivo de um socialista, de um marxista-leninista”. Não se trata apenas do equívoco cômico de um sacerdote tão despreparado quanto atrevido. Ao contrário, pronunciamentos dessa natureza tiveram um papel político importante. Graças ao envolvimento do clero católico progressista o PT conseguiu emergir do enclave sindicalista do ABC, no qual esgotara toda a sua possibilidade, nacionalizando a sua base eleitoral e expandindo-a às classes médias.

Os motivos em virtude dos quais o PT concorre às eleições sem um programa específico de governo são bem mais profundos do que freqüentemente se supõe. Num documento de 1980, contraditoriamente intitulado “Pontos para a Elaboração do Programa”, esse partido reconheceu que, a rigor, “nem pode nem deve ter um programa de governo para quando chegue ao poder porque a proposta do PT não é administrar o capitalismo e suas crises supostamente em nome da classe trabalhadora”.

Em texto publicado na revista oficial do partido – Teoria e Debate – o então coordenador do Plano de Ação Governamental de Luiz Inácio da Silva admitiu que o PT ainda não resolvera a “questão crucial de saber se o programa estaria voltado para assegurar a governabilidade, para ser cumprido de fato e atingir os objetivos de governo, ou se seria um programa sabidamente irrealizável, que apenas ajudaria a mobilizar as massas e preparar o governo e os trabalhadores para a ruptura que inevitavelmente iria acontecer.”Do ponto de vista do PT, a ideia de um programa de governo é contraditória porque os seus objetivos não são realizáveis por meios governamentais mas apenas por meios revolucionários. Em outros termos, porque não possui objetivos de governo mas de revolução. É esse fenômeno mais profundo que explica o fato de que, quando no governo, como no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (e outras situações), o Partido dos Trabalhadores parece movido, em seu núcleo organizacional e ideológico, por uma compulsão interna irresistível para a ação extra-constitucional, para a violação sistemática da Constituição e das Leis e para o desprezo pela representação legislativa e pelas decisões do Poder Judiciário. Nos caso em que, eleito pelo PT, o governo dele se autonomiza ou distancia, inaugura-se um conflito impredictível entre um e outro.

No PT, tão importante quanto as seitas em que se divide é o enfrentamento interno recorrente e com desfechos sempre imprevisíveis entre a frente parlamentar, socializada pelo convívio com as instituições políticas, para o comportamento constitucional, e o aparato autoritário da organização, refratário à democracia”.

(José Giusti Tavares – O Totalitarismo Tardio)

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Entrevista com Castells - Sociedade em rede

(Entrevista dada ao programa Roda Viva, sob a coordenação de Heródoto Barbeiro)


"Heródoto Barbeiro: Essas e outras questões envolvendo informação e sociedade são temas do nosso Roda Viva de hoje com Manuel Castells. Ele é catedrático de sociologia e de planejamento urbano e regional da Universidade da Califórnia, em Broocklin, desde 1979. Já foi professor em universidades de Paris, Madri e também na América Latina. Manuel Castells já publicou 20 livros editados em 11 idiomas e acaba de lançar no Brasil, pela Editora Paz e Terra, o primeiro volume de uma trilogia baseado em 20 anos de pesquisa sobre a era digital. Este livro A sociedade em rede é uma análise da dinâmica social e econômica na era da informação. Um estudo que busca a compreensão das transformações que as novas tecnologias estão produzindo e ainda vão produzir em nossas vidas. Para entrevistar o professor Manuel Castells, nós convidamos o ambientalista Washington Novaes, consultor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo. O jornalista Wilson Moherdaui, diretor dos jornais Informática Hoje e Telecon. Regina Meyer, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Kátia Mello, que é repórter da revista Isto É. O cientista político Gildo Marçal Brandão, professor da Universidade de São Paulo. O jornalista Luiz Weis, articulista do jornal O Estado de S. Paulo. O sociólogo Ricardo Abramovay, professor do Departamento de Economia e do Programa de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo. Professor Castells, boa noite.

Manuel Castells: Boa noite.

Heródoto Barbeiro: Professor, inicialmente eu gostaria que o senhor contasse ao nosso telespectador o que é exatamente o chamado capitalismo informacional e qual a diferença desse capitalismo com este outro que nós estamos vivendo desde a segunda metade do século XX?

Manuel Castells: É capitalismo, mas é muito diferente do que vivemos até agora. É informacional porque a geração de riqueza, através da produtividade e da competitividade de empresas, países, regiões, pessoas, depende, sobretudo, de informação e conhecimento e da capacidade tecnológica de processar essa informação e gerar conhecimento. Além do mais, é um capitalismo global pela primeira vez, realmente, na história da humanidade e que funciona em rede, quer dizer, tem uma nova forma organizacional, altamente flexível, altamente dinâmica, que, ao mesmo tempo, inclui o que vale e exclui o que não vale. É um mundo novo. Capitalista, sim, mas novo.

Heródoto Barbeiro: E o que difere de todo esse capitalismo que nós vivemos após 1950?

Manuel Castells: Bem, por exemplo, em termos econômicos, o capitalismo funcionava baseado em que se investia naquele que viria a ter maior taxa de lucro, nas empresas que tinham taxa de lucro. Hoje em dia, investe-se em função de qual será o aumento do valor das ações dessa empresa. Por exemplo, as empresas de software, de internet, neste momento, não ganham dinheiro. Algumas perdem, outras se mantêm, mais ou menos, mas aumentaram seu valor em 1000%, 1500%, no último ano. Com base em quê? Em que as pessoas pensam que vão aumentar de valor e, portanto, comprando hoje, terão valor amanhã. Então, estamos em um capitalismo, no qual a tecnologia gera valor e a expectativa de geração de valor dessa tecnologia acaba criando dinheiro.

Washington Novaes: Professor, o senhor acha que esse capitalismo é sustentável? O último relatório das Nações Unidas sobre o desenvolvimento humano diz que o que nós temos no mundo hoje não é sustentável e não deve ser sustentado, seja pela concentração de renda que produz, seja pela concentração do consumo. 86% do consumo hoje estão apenas nos países industrializados, onde estão menos de 20% da população. E também não é sustentável pela sobrecarga sobre os recursos naturais, para estender o padrão de consumo do Primeiro Mundo hoje, do chamado Primeiro Mundo, a todo o mundo, não haveria recursos suficientes. Então diz o relatório da ONU, textualmente, “não é sustentável e não deve ser sustentado”. O senhor acha que é sustentável?

Manuel Castells: Participei desse relatório da ONU; por conseguinte, minha opinião é que, em última instância, não é sustentável, mas não é sustentado por algumas centenas de anos, o que é um prazo muito longo. Creio que devemos distinguir o que é a crítica que fazemos a esse modelo capitalista da idéia de que ele vá se afundar por si mesmo. Tem fortes contradições, mas é, ao mesmo tempo, muito dinâmico. Então, por um lado, existe a possibilidade de um capitalismo que inclua, no conjunto do planeta, setores minoritários de muitas sociedades, majoritários em outras sociedades, que gerem tanto valor, tanta produtividade e tanta riqueza, que funcionem, do ponto de vista econômico, dentro de um planeta que se encolhe, dentro de um planeta em que 1/3 da humanidade, por exemplo, funcione dentro de um mundo altamente protegido, enquanto que o resto fica desprotegido e não é necessitado. Nesse sentido, há um passo da exploração à irrelevância, para boa parte do planeta. Então, eu acho que, se, neste momento, o modelo de produtividade do capitalismo informacional é tão dinâmico, é muito possível que continue se desenvolvendo com base neste setor da humanidade, excluindo, ao mesmo tempo, boa parte das pessoas, que não são interessantes. Os recursos naturais são outro problema. Mas, com os recursos naturais, de certo modo, o capitalismo informacional é menos destrutivo do que o industrialismo, tanto capitalista quanto socialista. As novas tecnologias, a curto prazo, são menos destrutivas para o meio ambiente. Creio que devemos diferenciar a crítica ética e social, que compartilho, do que é a capacidade dinâmica desse modelo, que é o modelo que criamos e é o que existe.

Luiz Weis: Professor, eu gostaria de sair da economia e da ecologia por um momento para falar da política. Recentemente nós tivemos, pela primeira vez em 44 anos, eleições livres na Indonésia, com largo comparecimento. Uma semana antes das eleições da Indonésia, nós tivemos eleições na África do Sul, a segunda desde o fim do apartheid, com 35% de comparecimento. Na mesma semana das eleições na África do Sul, tomou posse na Nigéria o presidente eleito democrático. Para encurtar os exemplos, nunca tão ampla parcela da espécie humana viveu num regime democrático como agora. Nunca tantos seres humanos tiveram a oportunidade de exercer, como agora, o ato elementar da cidadania política, que é o direito de votar. E não obstante, no seu livro, o senhor afirma e eu cito, “que os sistemas políticos da atualidade estão mergulhados numa crise estrutural de legitimidade”. Professor, eu não estou entendendo o que o senhor escreveu ou não estou entendendo os fatos que me referi.

Manuel Castells: Efetivamente, o grande paradoxo é que, no momento em que grande parte da humanidade, a grande maioria, na verdade, chega à democracia política, essa democracia política está se esvaziando de conteúdo e está perdendo legitimidade. Isso, por um lado. A democracia é indispensável. Creio que a democracia em países...

Luiz Weis: E quais são as evidências dessa perda de legitimidade?

Manuel Castells: A falta total de confiança na classe política, no mundo todo.

Luiz Weis: E por que as pessoas votam?

Manuel Castells: As pessoas votam contra, não a favor. As pessoas votam a favor do que lhes parece menos mau, como gesto de defesa contra o que pode ser ainda pior. E as pessoas, em muitos países, votam cada vez menos. E votam por opções diferentes das que são dos principais partidos do sistema político. Nos Estados Unidos, a grande democracia, votam, mais ou menos, 50% para presidente; para o Congresso, votam uns 40%; nas eleições locais e estaduais, votam menos de 30%. Isso, por um lado. Mas, sobretudo, a relação entre voto e legitimidade não é direta. As pessoas têm cada vez mais problemas em aceitar que sua vida possa ser resolvida pela política. Acho que é um problema fundamental. Realmente, é uma crise que não podemos permitir que continue se desenvolvendo. Mas é a constatação objetiva. A perda de confiança nos políticos, na classe política e nas instituições representativas, como forma de resolver os problemas da vida. Além de pensar que, em geral, a classe política é corrupta. Coisa que é evidentemente falsa, mas que é o sentimento majoritário de grande parte da população, em todos os países.

Luiz Weis: Desde que existe política, isso não é propriamente novo. A desconfiança, o desprezo pelos políticos é uma coisa que convive com a prática política desde que o mundo é mundo. Enfim, eu não quero me prolongar nisso...

Manuel Castells: Não estou de acordo, porque o que acontece hoje em dia é que a política é uma política de mídia que vive por e nos meios de comunicação. E, assim, o que se constrói nos meios de comunicação determina em grande parte, a opinião política dos cidadãos. E, como os meios de comunicação têm como norma (por ser o que vende, o que influencia) que só as más notícias são notícias, o que se está recebendo como informação política, é, sobretudo, aqueles elementos que tornam ilegítimo o exercício da política. Assim, quanto mais entramos em um mundo de informação, mais os cidadãos estão expostos a uma série de informações contra pessoas, mas do que contra projetos e, desse ponto de vista, a personalização da política leva a tornar ilegítima a política de conteúdo. Isso é novo.

Ricardo Abramovay: Queria voltar um pouco ao ponto que o Washington pegou. Essa capacidade dinâmica que a sociedade informacional agora vem manifestando de maneira espantosa, quer dizer, o ritmo das transformações é aceleradíssimo. O senhor sustenta no seu livro e acaba de reiteirar na resposta ao Washington, que é perfeitamente possível, que uma parte significativa, maior ou menor, segundo uns países, inclusive é muito interessante no seu livro, que a parte da humanidade irrelevante, ela não está simplesmente no hemisfério sul, nós estamos diante de outras polaridades diferentes das polaridades norte e sul, São Paulo, Nordeste, das polaridades convencionais. Então essa idéia de que é possível um capitalismo extremamente dinâmico e ao mesmo tempo excludente de uma grande de massa da população, ela não é contraditória com a nossa experiência histórica, muito imediata, quero dizer com a experiência histórica do final da Segunda Guerra Mundial para cá, onde cresceram - eu não estou falando simplesmente dos países europeus e do Japão - cresceram os países que foram capazes ao mesmo tempo de - e foi a lição que eu penso ter conseguido tirar do seu livro - os países que ao mesmo tempo conseguiram investir em formação dos seus cidadãos, educação. O senhor não toca no tema da reforma agrária, também não dá para tocar em tudo, mas obviamente dos países asiáticos, países que fizeram reforma agrária, distribuíram renda, países que se inseriram num ambiente competitivo e países cujo o Estado auxiliou as elites econômicas no sentido da montagem de uma estratégia econômica nacional e regional. Pois bem, é possível, inclusive mais atualmente o senhor cita o caso do Chile diferenciando o regime Pinochet do regime democrático chileno e dizendo que o regime democrático chileno conseguiu conciliar, compatibilizar crescimento e bem-estar. O crescimento, para que ele seja minimamente durável, ele não tem que estar associado ao bem-estar, ou seja, a falta de bem-estar, a irrelevância de uma parte significativa da população, além de um problema ético, ela não coloca também para o dinamismo do sistema econômico um problema seriíssimo em termos das suas pesperctivas de médio prazo?

Manuel Castells: Há um problema muito sério. Mas vamos partir de dados empíricos. Ao mesmo tempo que, nos últimos 10 anos, tivemos um aumento substancial de produtividade, de crescimento de valor econômico, de desenvolvimento tecnológico sem precedentes, ao mesmo tempo, tivemos um extraordinário aumento de desigualdade social, de polarização, de exclusão social, no conjunto do planeta e na maioria dos países, dentro dos países. Ou a manutenção da desigualdade social, como no caso do Brasil, que melhorou algo, mas que ainda se mantém em níveis muito altos. De novo, esse sistema é sustentável? Creio que depende de dois elementos. Por um lado, da possibilidade de ampliação de mercado para um sistema tão dinâmico, que precisa integrar pessoas para poder, realmente, ter um consumo que permita o desenvolvimento. Por outro lado...

Ricardo Abramovay: Mercado interno?

Manuel Castells: Mercado interno e mercado externo. Creio que, cada vez mais, a distinção entre mercado interno e mercado externo na economia globalizada desaparece. Quer dizer, é o mercado. Pode-se intervir em diferentes mercados, em diferentes economias. A ampliação geral do mercado. E isso é importante porque, justamente, as empresas do Brasil, ou da Coréia, não necessariamente precisariam de seu mercado interno, se podem competir internacionalmente. Se pode, além disso, haver uma ampliação generalizada de mercado em todos os países juntos, é ainda mais importante para todo mundo. Para poder entrar nesse mercado, as pessoas precisam ser produtivas e produtoras. E, para isso, fazem falta, ao mesmo tempo, infra-estrutura tecnológica para o novo sistema e capacidade educativa. As pessoas sem educação não podem ser trabalhadores e, portanto, consumidores desse sistema novo.

Gildo Marçal Brandão: E renda, e falta renda.

Manuel Castells: Mas falta renda porque as pessoas não têm educação, ou a capacidade de agregar valor suficiente para poderem ser pagas em termos de renda.

Washington Novaes: Mas a renda mundial não é inelástica, ela tem limites. Isso não pode crescer pura e simplesmente, isso está provado em muitos países, há muitos países onde os limites são muito claros. Apesar das pessoas terem qualificação, hoje o desemprego das pessoas qualificadas é muito alto.

Manuel Castells: Perdão. Não estou de acordo com isso. As pessoas altamente qualificadas têm muito pouco desemprego, muito menor desemprego do que as outras pessoas. E, no caso das economias que deram o salto ao novo desenvolvimento tecnológico, como os EUA, não há desemprego. No Japão, não há desemprego. Os EUA estão no nível mais baixo de desemprego, em 30 anos, e a maioria dos novos empregos criados é de alto nível.

Washington Novaes: Em compensação, cai o salário médio nos Estados Unidos, o salário real está em queda nos Estados Unidos.

Manuel Castells: Caiu até dois anos atrás.

Washington Novaes: E o caso norte-americano é muito especial, os Estados Unidos são os grandes beneficiários do processo, da globalização.

Manuel Castells: Isso é certo. Mas ao mesmo tempo, é especial, como também é especial porque é o primeiro país em que se desenvolveu plenamente o novo modelo de produtividade econômica.

Gildo Marçal Brandão: Mas não há um certo dualismo no livro, no sentido de que aparentemente, como eu não li o segundo volume, então não sei como que o senhor vai resolver a questão. Mas aparentemente, tem uma teoria, uma análise do sistema, do capitalismo informacional que é positiva, que é até um pouco apologética, pelo menos o senhor de alguma maneira tira de lado certas críticas usuais que são feitas a esse tipo de capitalismo. Por exemplo, o senhor defende que tecnologia não cria desemprego, essa nova tecnologia, na verdade, acaba gerando mais empregos e melhores empregos. E que o desemprego europeu - a América Latina o senhor não analisa muito - se deve mais a opções econômicas e políticas dos governos e das empresas. A tecnologia é neutra, o clima é positivo, não há desemprego estrutural, apesar de haver conhecimento da concentração de renda e de exclusão. Por outro lado, o senhor está dizendo que do ponto de vista político, o tipo de política desse capitalismo é ruim, porque ele é virtual, ele é mediado pela televisão, ele é cada vez mais personalizado, ele cada vez mais joga com símbolos que têm uma certa diferença em relação ao mundo real. Então, é como se nós tivéssemos num capitalismo que do ponto de vista econômico fosse uma grande novidade e do ponto de vista político ele é um imenso atraso. Seria isso?

Manuel Castells: Em primeiro lugar, quero precisar que meu livro não é normativo e não toma posição. Não toma posição em nada. Nem defende, nem ataca. É uma opção pessoal que tomei, porque acho que é importante ter a cabeça fria e analisar a transformação do mundo sem partir, primeiro, de uma posição ideológica. É uma posição discutível, mas tento ser o mais rigoroso possível. Posso estar equivocado, mas o que apresento são os dados do que existe atualmente e como funciona esse sistema. As novas tecnologias não destroem o emprego. Não por princípio, mas porque, empiricamente, pode-se provar que não o destrói. Que há desemprego e destruição de emprego é certo, mas as novas tecnologias, como tais, não só não destroem empregos como, em alguns países, os criam. Caso dos Estados Unidos e caso do Japão.

Washington Novaes: Nós não temos desemprego estrutural.

Manuel Castells: Existe desemprego estrutural, mas não devido às novas tecnologias. Ao contrário, sem novas tecnologias, destroem-se empregos. Por que há desemprego? Tomemos o caso do Brasil, para não ir a outros países. Há um problema sério de desemprego muito doloroso; não é tanto quanto parece, como dizem algumas manchetes. Parece ser bem menor, segundo o Instituto Brasileiro de Estatística. Mas, em qualquer caso, no desemprego brasileiro, como em muitos outros, juntam-se três fatores. Por um lado, o fator da estrutura da população. A chegada de uma população jovem e a chegada, a entrada maciça da mulher no trabalho remunerado. Fator extremamente positivo, mas que requer criar postos de trabalho. No Brasil, mais ou menos entre 1995 e 2010, requerem-se 25 milhões de novos postos de trabalho. Em segundo lugar, é um problema de reestruturação produtiva, como dizem os economistas. Algo que parece muito complicado mas, na realidade, é muito fácil. É que certo tipo de indústria e certo tipo de produto vão esgotando seu mercado. E não é aí onde se geram empregos. O caso de São Paulo, por exemplo, onde há toda uma parte de velha indústria, como foi em Detroit, como foi no Ruhr alemão, que não tem competitividade, porque há uma mudança de tecnologia industrial e uma mudança de mercado. Então, gera desemprego em São Paulo. Mas, ao mesmo tempo, há outras indústrias, em outros lugares, que geram emprego. Li, na semana passada, na [revista] Veja, uma reportagem que assinalava, por exemplo, que, em Santa Rita, Minas Gerais, havia 65 novas empresas de eletrônica e telecomunicações que geraram 7.500 empregos, de, relativamente, alto nível. Ou um nicho de mercado, como Veranópolis, Rio Grande do Sul, onde não há desemprego porque produzem bolas de futebol e outros artigos esportivos. Mudança da reestruturação industrial e pessoas que caem nesse processo de mudança. Isso para as pessoas não é um consolo, e os governos devem ajudar essa transição e apoiar essas pessoas, nesse momento de transição. Mas não é porque haja um novo sistema tecnológico que se destroem empregos, se não que muda o tipo de emprego. Fundamentalmente, eu diria algo mais. O que realmente fazem as novas tecnologias é mudar o tipo de relação trabalhista. Há o passo do emprego estável, de longo prazo, em uma empresa, em uma administração, para muitos anos, com uma progressão previsível, para um emprego flexível, que deve adaptar-se constantemente, a novas indústrias, novas relações trabalhistas e novas tecnologias. Então, o que aconteceu é que, naquelas sociedades, em que um setor protegido de emprego, continua sendo protegido, sem exposição direta à competitividade, naquelas sociedades, há uma falta de investimento de capital para criar novos postos de trabalho nesses setores. Pois, como o capital é global e o trabalho é local, investe-se capital onde se pode criar empregos flexíveis, aos que não se está atado pelo resto da vida. Este é o verdadeiro problema.

Regina Meyer: Na conclusão da resposta eu vou engatar minha pergunta. Eu achei muito... O livro comparado aos seus escritos dos anos 70, que para mim foram escritos formadores, eu li mais de uma vez, La question cubaine em francês, você escreveu em Paris. Então, a questão do conflito e da dimensão que o conflito tomava nas reivindicações urbanas, as reivindicações políticas - você falava das reivindicações urbanas - ela desaparece desse universo descrito pela sociedade em rede. A impressão que eu tive lendo A sociedade em rede é que não tem mais lugar para esse tipo de conflito, que a sociedade mudou a tal ponto, que do lugar não emerge conflito. E, ao mesmo tempo, no livro, você fala que as metrópoles ainda são marcadas pela sua história. E a história de uma cidade como São Paulo, que você conhece bem, porque já esteve aqui várias vezes, é uma história de conflitos permanentes; agora, basta andar por São Paulo para ver esses conflitos. Embora São Paulo, em alguns aspectos, ela queira, pretenda ser uma candidata a essa rede internacional, que você, de certa forma, desqualifica no seu trabalho, a idéia de cidade global, você mostra como a cidade é global e não global simultaneamente. Então, como que você lê em São Paulo o conflito urbano ganhando essa dimensão de conflito político, que você tanto escreveu e de certa forma apontou caminhos na década de 70.

Manuel Castells: Eu estou totalmente de acordo que a sociedade é conflito. Sempre. Toda sociedade. E a experiência histórica, e não há nenhuma razão para não ser assim. Devo dizer que não é porque queira fazer publicidade, absolutamente, para o segundo volume da trilogia, mas este livro não é um livro...Realmente, quando há três volumes, é porque o editor decidiu não pôr...

Regina Meyer: Mas você tomou cuidado, a última palavra do livro é “continua”.

Manuel Castells: Claro. Continua no segundo volume, que é onde há a análise dos movimentos sociais e dos processos de conflito político. Nesse sentido, é um livro. Mas, deixando de lado o livro, pois o que importa são as idéias e a análise, há conflitos. Agora, que tipo de conflitos? Não que tipo de conflito pode haver. Não falo do futuro, falo do que está acontecendo. Os conflitos que observei têm duas características fundamentais. São conflitos em boa parte, defensivos e reativos. Não de dentro do sistema, mas contra o sistema, em seu conjunto. E organizam-se, sobretudo, em torno de valores de identidade. Valores em que, em um mundo em que os fluxos de informação, os fluxos de capital, dissolvem as bases materiais da existência das pessoas... O que está acontecendo é que muita gente centra-se na religião, no nacionalismo, no território, na etnia, no gênero e, a partir dessa identidade, propõe uma mudança de valores com respeito ao que está acontecendo no mundo. Portanto, por um lado, temos uma rede de fluxos de capital, de tecnologia, de informação que funciona quase de forma autônoma e, por outro lado, uma sociedade que propõe valores alternativos, no lugar do que tínhamos na sociedade industrial, uma interação entre, digamos, patrões e operários, onde os dois lutavam em torno de um mesmo sistema produtivo. Esse é o novo, o que está acontecendo. No caso de São Paulo, que conheço bem historicamente, conheço menos o que está acontecendo ultimamente, mas há mobilizações de resistência defensiva contra os efeitos sociais de uma globalização desigual. Há também movimentos de identidade das pessoas, em suas diferentes culturas, contra a falta de assimilação dos valores que existem nessa gente por parte do capitalismo informacional. Em último caso, o que acontece, também, é que esses valores e esses movimentos sociais entram nos fluxos de informação. Por exemplo, o movimento zapatista, no México. O movimento zapatista, a partir da defesa da identidade indígena e da luta contra a exclusão social, entra na internet, utiliza a política de mídia e invade o espaço, que era o espaço privilegiado dos fluxos de informação. Portanto, não só o conflito não acaba, como o conflito começa em um nível mais fundamental, que é o nível da identidade dos valores e não, simplesmente, as reivindicações econômicas.

Heródoto Barbeiro: Doutor Castells, nós vamos fazer um intervalo. Nós vamos então ao intervalo, daqui a pouco nós voltamos entrevistando o nosso convidado de hoje, que é o sociólogo espanhol Manuel Castells. Até já.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro: Nós voltamos aqui com o Roda Viva. Hoje nós estamos entrevistando o sociólogo espanhol Manuel Castells. Antes de passar para os nossos convidados, doutor Castells, eu gostaria de, rapidamente, que o senhor, em função de tudo que foi dito no primeiro bloco, o senhor dissesse também ao nosso telespectador o seguinte: O que se entende por comunidade virtual e se essa comunidade virtual está associada, atrelada a todas essas explicações que o senhor deu? E se isso é responsável pelo enfraquecimento do Estado Nacional como nós conhecemos até agora?

Manuel Castells: Por comunidade virtual entende-se a comunicação entre pessoas através de meios eletrônicos. Nesse sentido, o que se estudou empiricamente mostra que não somente não debilitam as relações sociais, como as reforçam, em muitos casos. Não é responsável pela crise do Estado Nacional. O que é responsável, em parte, é a globalização. O fato de que os grandes processos de circulação de capital, os grandes processos de informação, tudo o que conta no mundo está organizado globalmente e não há nenhum Estado que, como Estado, possa controlá-lo. Pode influenciar, o Estado é muito importante, pode influenciar esses processos em função dos interesses de seus cidadãos, mas não pode controlá-lo. Nesse sentido, perdeu-se a soberania. E como os Estados tentam juntar-se entre eles para organizar associações de Estados que controlem, de algum modo, um pouco melhor, perdem mais soberania porque o que lhes resta de soberania têm que compartilhar. Portanto, a relação entre os interesses dos cidadãos, as reivindicações dos vários setores e o que faz o Estado-Nação é muito midiatizado por processos muito complexos e muito globais que, portanto, distanciam, objetivamente, o cidadão do Estado. Em último lugar, o cidadão reage ao fim de um processo, em uma espécie de caixa negra de decisões políticas, as quais não vê muito bem o que acontece, e só o que faz é ir contabilizando se para ele é bom ou é ruim. O que é uma individualização total da relação com o Estado. No fundo, é uma crise da noção de cidadania. É o consumidor que espera que a “empresa-Estado” lhe proporcione melhores condições de vida e de trabalho.

Heródoto Barbeiro: Kátia, por favor.

Kátia Mello: Vou voltar ao ponto da Regina, que é arquiteta, que falou sobre as cidades. O senhor fala no seu livro que justamente as etnias, as religiões fazem com que as pessoas se agrupem cada vez mais dentro da sociedade de rede. A tecnologia ela favorece em quê isso? E também queria fazer uma ligação com os movimentos sociais que o senhor também cita isso no seu livro, né? Quer dizer, qual é o papel dos movimentos sociais na sociedade de rede?

Manuel Castells: O mesmo que sempre foi: mudar os valores sobre os quais a sociedade está organizada. Creio que há uma distinção fundamental entre movimentos reivindicativos, que pedem mais do mesmo, mais daquilo que existe, e movimentos sociais, que são movimentos que tratam coletivamente, por meio de ação coletiva e pressão sobre instituições, a mudança de valores sobre os quais a sociedade está organizada. Por exemplo, o movimento das mulheres, mudar uma sociedade fundada sobre o patriarcado, ou seja, a dominação institucional de mulheres e crianças por homens, no seio da família, a uma família igualitária e a uma sociedade em que as mulheres tenham igualdade de oportunidades. Ou os movimentos ecológicos, que tratam de mudar os valores da relação entre sociedade e natureza, de forma que a conservação da natureza integre-se nos objetivos do crescimento econômico e do desenvolvimento material. Os movimentos sociais são mais importantes do que nunca. Em uma sociedade em que, ao ser centrada na informação, informação é cultura e, por conseguinte, a forma em que pensamos traduz-se, diretamente, na forma em que produzimos, em que administramos o resultado dessa produção.

Kátia Mello: Em relação a essa primeira pergunta. O senhor não acredita que nós estamos cada vez mais nos enclausurando dentro desses segmentos?

Manuel Castells: O que as tecnologias fazem é proporcionar um amplo leque de possibilidades. O que acontece, depois, com as tecnologias, depende do que acontece na sociedade. Concretamente, isso quer dizer: sociedades que tratam de se relacionar cada vez mais dentro dessa sociedade, como a Finlândia, por exemplo, as novas tecnologias permitem um desenvolvimento de relações sociais, de participação cidadã muito maior. Sociedades onde, pelo contrário, há uma tensão, inclusive uma violência entre distintos grupos sociais, como pode ser São Paulo, como pode ser Los Angeles, como pode ser, na Europa, Paris, neste momento, aí as novas tecnologias permitem que grupos de alto nível de receita e de educação deixem a cidade, organizem seu guetos de ricos e relacionem-se, entre eles e com o mundo em geral, através da internet. Por conseguinte, segundo as condições, o desenvolvimento da internet pode criar comunidades entre um grupo social determinado, mas cortando esse grupo do resto da sociedade, aumentando a segregação social.

Wilson Moherdaui: Identidades primárias, quer dizer, grupos que se aglutinam em torno de identidades primárias para se defender de uma certa forma desse fenômeno de globalização cultural. Isso explica, isso poderia explicar a acentuada explosão de seitas religiosas localizadas, e a exacerbação do fanatismo, do fundamentalismo, cristão, islâmico, enfim. Esse movimento de defesa da sociedade diante desse processo é que poderia estar resultando nesses processos?

Manuel Castells: Efetivamente. Mas, cuidado para não assimilar a afirmação de identidade e os valores absolutos, como os valores religiosos, ao fundamentalismo. O que assistimos, hoje em dia, no mundo, com exceção da Europa Ocidental, claro, é uma explosão do sentimento religioso e da busca de valores religiosos. Talvez uma das grandes surpresas para os intelectuais de esquerda de 20 anos atrás seja isto: em vez de uma sociedade cada vez mais laica, é o contrário. Neste momento, os grandes movimentos de oposição à globalização são movimentos religiosos. As grandes tendências de organização em comunidades de base são religiosas de todo tipo. Dentro disso, há um setor muito importante, fundamentalista. Nos EUA, o movimento social mais importante é o cristianismo fundamentalista. No mundo islâmico, o fundamentalismo... Não é todo o Islã, é uma minoria do Islã. O Islã, em si, não é fundamentalista, é muito tolerante, como religião. Mas, no mundo islâmico, há um setor fundamentalista importante, inclusive budistas. O que é uma contradição, budista fundamentalista, mas há, por exemplo, uma tendência muito forte no Japão.

Luiz Weis: Professor, eu gostaria de fazer uma pergunta. Eu queria voltar à questão do Estado especificamente. A questão do papel social do Estado na nova ordem mundial. Eu queria me referir a sua interpretação no seminário que foi organizado em Brasília, um pouco antes da posse do presidente Fernando Henrique, em que o senhor disse que um dos papéis do Estado, “que o Estado tem que passar da proteção do trabalhador à proteção do cidadão”. Eu queria entender isso, porque eu entendo claramente o que quer dizer o Estado proteger o trabalhador, ele protege o trabalhador do capital, ponto número 1. Eu não sei de quem o Estado deve proteger esse cidadão abstrato. Em segundo lugar, a maioria dos cidadãos ainda são trabalhadores, sobretudo, ou dependem, ou aspiram a um posto no lugar, ao um posto de trabalho. Então eu não sei se isso não desvitaliza o papel social que, segundo até pensadores liberais americanos, como Thomas Friedman, do New York Times que diz que ao contrário de não intervir, é de responsabilidade dos Estados Unidos promover uma ativa participação do Estado na vida das sociedades, na promoção social, justamente para anular os efeitos perversos da globalização.

Wilson Moherdaui: Só pegando uma carona na pergunta do Weis, gostaria só que o senhor complementasse. O papel do Estado foi fundamental na criação das grandes redes de comunicação, tanto da internet, a rede global, quanto do Minitel na França, que é a versão caipira, francesa da internet. Foram iniciativas do Estado para, de alguma forma, pulverizar o sistema de comunicação e torná-lo menos vulnerável, no caso de um ataque nuclear ou uma ecatombe qualquer. E a evolução desse processo, essas redes se desprenderam da iniciativa original dos Estados, no caso dos Estados Unidos, da França, para se transformarem em instrumento de democracia, quer dizer, pelo menos de liberação do acesso à informação para grande parte da população, que não tinha acesso à informação. Eu queria que o senhor comentasse o papel do Estado também nesse sentido.

Manuel Castells: Muito obrigado. Vamos por partes. O senhor se refere ao debate fundamental sobre como se financia a proteção social das pessoas: como cidadãos ou como trabalhadores. Eu me referia, nesse texto que citou, a algo que existe no Brasil. Os cidadãos têm direito universal à saúde, como pessoas, independentemente de sua situação trabalhista. A maior parte dos sistemas de seguridade social no mundo ainda estão baseados no posto de trabalho. Isto cria uma carga de impostos sobre a empresa que é um dos principais fatores que faz com que não se criem empregos estáveis e que se desenvolva a economia informal. Então, o debate que está proposto é como passar de uma cobertura centrada no trabalho a uma cobertura centrada nos direitos da pessoa. Por ser uma pessoa, tenho direito à saúde, tenho direito à educação, tenho direito à segurança, uma série de direitos que o Estado deve cobrir. Deve cobrir como? Através, claro, de uma carga de impostos sobre a criação de riqueza no país. Esta é uma mudança fundamental no que era o estado de bem-estar. Mas sua pergunta vai muito além. Qual é o papel do Estado em um sistema global, informacional, como o que temos? Em primeiro lugar, o primeiro papel do Estado é um papel prévio. Ou seja, pode uma sociedade, um país, uma economia funcionar, ou não, neste novo sistema global? Porque se não pode funcionar é simplesmente como entrar sem eletricidade na era industrial. Assim, o primeiro aspecto é o esforço de um Estado para participar da globalização. E aqui está a contradição. Por um lado, participar da globalização exige um esforço de modernização da economia, mobilização da sociedade e mudança institucional, o que faz que o Estado, na realidade, esteja solapando, destruindo as bases de sua autonomia. Concretamente, o capital, o dinheiro, todo o nosso dinheiro, funciona em um mercado financeiro global. A sua poupança, a minha poupança, estão voando por algum lugar, neste momento, e tanto faz que saibamos ou não, porque nos próximos três segundos estarão fazendo algo diferente. Portanto, se o mercado financeiro, onde está o capital, não é controlável pelo Estado, significa que não temos controle sobre os movimentos de capital, na realidade. Mas temos a possibilidade de criar condições para que esses movimentos de capital não fujam, não evitem uma determinada economia. Foi o que o Brasil fez nos últimos anos e é o que todo mundo está fazendo. Ao ter de homogeneizar, relativamente, as condições de funcionamento econômico, os Estados perdem a sua capacidade de intervir diretamente na política econômica. Diariamente, trocam-se, no mercado mundial, US$ 1,5 trilhão em várias moedas. Não há banco central que possa controlar essas trocas. O mercado mundial de derivados financeiros, só de derivados financeiros, é de US$ 360 trilhões, que é mais ou menos, 12 vezes o produto bruto de todo o planeta. Não é possível controlar isso, mas há possibilidade de influenciar, de navegar, de administrar. Os Estados têm, na minha opinião, duas grandes responsabilidades: uma, equipar a economia de um país em tecnologia e em recursos humanos, e já vou para sua pergunta, para ser capaz de operar nesse novo circuito; e, segundo, organizar a transição tecnológica e econômica para esse novo mundo, em que já estamos, de forma que os custos sociais sejam o menor possível.

Luiz Weis: Mas é possível fazer, é possível o Estado fazer coisas substantivas capaz de dotar a globalização de uma face humana?

Manuel Castells: É possível, e creio que há esforços em muitos países, mas tenho também de constatar, empiricamente, que, de momento, os primeiros 10 anos desse sistema novo, aumentaram a exclusão social, a desigualdade, mas é possível, como disse antes. Em que sentido é possível? É possível desenvolver programas de educação, que é o investimento fundamental produtivo e, ao mesmo tempo, o essencial para remediar a desigualdade social. A desigualdade social hoje está baseada na educação.

Heródoto Barbeiro: Por favor, Washington.

Luiz Weis: Ele ficou me devendo minha resposta.

Manuel Castells: Então, efetivamente, em relação a essa pergunta, que realmente estava ligada, a relação do Estado com o desenvolvimento tecnológico é central. Contudo, foi muito mais importante o momento do lançamento desse novo processo tecnológico na Europa, nos Estados Unidos. Nesses momentos, o que os Estados devem fazer é, mais precisamente, facilitar as condições para que o desenvolvimento tecnológico entre na sociedade através das empresas, através das forças que já existem na sociedade. Por exemplo, neste sentido, o mais importante é atuar sobre a universidade, sobre a educação, sobre o potencial científico e técnico e ajudar o desenvolvimento, através das empresas, de infra-estrutura, de telecomunicação, de desenvolvimento de softwares e de internet. Assim, o que era o papel do Estado como centro de impulsão de política tecnológica, neste momento, tem de ser, sobretudo, uma política de acompanhamento para que a sociedade e as empresas estejam preparadas para esse tipo de desenvolvimento.

Luiz Weis: Quanto menor a intervenção em sistemas de comunicação, de rede, como a internet, por exemplo, quanto menor a intervenção do Estado ou de quem quer que seja, melhor para a sociedade, é isso?

Manuel Castells: Mas tem de favorecer o desenvolvimento da internet nas escolas. O que não quer dizer, simplesmente, introduzir a internet através de computadores, mas proporcionar professores que saibam o que fazer com a internet.

Luiz Weis: Mas a diferença hoje entre o saber e o não saber aumentou muito mais, portanto a necessidade de conhecimento é muito maior, ok?

Manuel Castells: Absolutamente.

Luiz Weis: Isso não impõe sobre os Estados uma tarefa que eles não têm condições, porque é uma corrida perdida de antemão?

Manuel Castells: Não. O investimento maciço na educação não é uma corrida perdida. O essencial é retomar recursos do processo de criação de riqueza da altíssima produtividade que estamos gerando para redistribui-los na educação. Porque isso permite não só de corrigir a desigualdade como, além disso, é uma força produtiva. Pois a fonte de produtividade em nossa sociedade é a capacidade educativa dos indivíduos. Portanto, podemos, ao mesmo tempo, corrigir a desigualdade e reforçar a produtividade que, no fim, ajuda a corrigir a desigualdade. É um círculo virtuoso em um círculo vicioso.

Heródoto Barbeiro: Por favor, Washington?

Washington Novaes: O senhor no seu livro descreve em vários pontos essa questão dos governos terem que reagirem em tempo real a esses mercados financeiros globalizados, que o senhor acaba de escrever, com esses números todos, embora haja muitos números, alguns maiores, outros menores do que esses aí. Mas isso significa, então, os governos terem que reagir ao que está acontecendo no mercado naquele momento, e vários autores têm mostrado isso, que isso significa a perda dos tempos da política. A política exige tempos mais lentos, de mediação, de negociação, de discussão, então, a política perdendo o seu lugar. E vários autores, entre eles, por exemplo, professor José Eduardo Faria, têm escrito bastante sobre isso, mostrando que isso é uma ameaça enorme à democracia e ao processo democrático. Por outro lado, a página 493 do seu livro, o senhor diz que os fluxos financeiros, esses grandes capitais, tendem a assumir o controle dos impérios de mídia que influenciam os processos políticos. Então, eu lhe pergunto: onde é que vai ficar a democracia, onde é que vai ficar a possibilidade do cidadão se defender diante dessas coisas? A democracia, os tempos da democracia desaparecem, os governos reagem em tempo real ao que o capital financeiro faz. Por outro lado, esses fluxos financeiros, como diz o senhor, tendem a dominar os impérios da mídia. Ou seja, o cidadão será excluído do processo político, a julgar pelos raciocínios que o senhor desenvolve no seu livro. Então, isso que eu queria saber, onde é que fica o cidadão?

Kátia Mello: Sobre esse mesmo ponto, em relação também à integração econômica, não só as macros regiões que o senhor cita, né? Quer dizer, política e economia, como é que elas caminham? A França está saindo da esfera e não querendo entrar mais, por conta dos subsídios agrícolas. Como que isso fica? Nós vamos ter agora uma reunião no Rio de Janeiro, justamente para discutir isso. Quer dizer, unindo a pergunta dele, como é que ficam as macro regiões e como caminha a política e a economia nisso?

Manuel Castells: Na realidade, são duas perguntas relacionadas. Permita-me então, tomá-las na seqüência. Não creio que a democracia esteja em perigo, nem que a democracia desapareça. A democracia, no sentido defensivo, é fundamental e está, conforme o que se disse antes, mais reforçada do que nunca no mundo. Ou seja, as instituições democráticas com certas formas de controle. A democracia, como a definia o filósofo francês, Robert Escarpi, “é democracia quando batem à noite, na porta de sua casa, e você crê que é o leiteiro e não a polícia que vem prender você”. Isso é democracia, para começar.

Washington Novaes: Mas se o senhor me permite, o professor José Eduardo Farias que eu citei, disse: “ Neste Estado que reage em tempo real, ao cidadão só resta como face do Estado a face da segurança, a face policial”. Só esta face é que lhe resta. A face econômica é banida e a face política é banida no sentido em que ele está excluído da decisão. Porque o Estado reage em tempo real.

Manuel Castells: Certo! Por isso, eu dizia: diferenciemos a democracia. A democracia, como tal, expande-se e não corre perigo. Mas a distância entre as decisões do estado democrático e o cidadão é crescente. Não digo que seja uma inevitabilidade histórica. Isso não vem das tecnologias, vem da inadequação entre o novo sistema de globalização e de decisão em tempo real e as instituições democráticas que temos neste momento. Há uma defasagem entre instituições e funcionamento real do sistema. Por conseguinte, há essa crise e, por isso, há essa crise de legitimidade. Isso relaciona-se, realmente, com o problema que a senhora mencionou, Kátia Mello, o problema da reação entre política e economia. Se estamos em uma economia global, estamos. A globalização não é uma ideologia e não há que estar a favor ou contra. É. Então, atuamos na globalização dependendo de distintos interesses e com distintas estratégias. Há muitas formas de atuar sobre a globalização e isso importa politicamente. Então, a relação entre política e economia pode ser abordada do ponto de vista de acreditar que o mercado, pela sua própria dinâmica, soluciona tudo, e, por conseguinte, retirar o mais possível o Estado, esperando que o mercado, por sua dinâmica, estabeleça um sistema de equilíbrio, e que, por exemplo, redistribua, enfim, a riqueza criada. Ou, pelo contrário, uma capacidade política de orientar o que o mercado faz. Creio que esta é a grande diferença fundamental.

Regina Meyer: Eu queria fazer uma pergunta sobre o Estado e a cidade. O Estado produziu as possibilidades para que o capitalismo industrial se instalasse. Brasil anos 50, Juscelino [Kubitschek, presidente do Brasil entre 1956 a 1961, foi o responsável pela construção da nova capital federal - Brasília. Político desenvolvimentista, celébre pela frase "cinquenta anos em cinco"], etc. Hoje, para que a nossa sociedade realmente possa se incorporar nesse universo inelutável, da globalização - estou falando agora do Brasil e das grandes metrópoles brasileiras - é absolutamente fundamental que o grande investimento seja feito nas cidades, que haja modernização da cidade. A modernização em São Paulo se deu em faixas da cidade, onde a gente tinha edifícios com fibra ótica, sem esgoto, sem infra-estrutura. Quer dizer, que foi a contradição absoluta que as marginais viveram. Agora já parece que algumas partes já estão sanadas. Mas, de qualquer maneira, esse capital da modernização das cidades, que no caso da Europa, do mercado comum, foi um grande capital que os bancos europeus investiram, quer dizer, o grande banco que o mercado comum criou para a melhoria das condições de vida na cidade. Aqui em São Paulo, por exemplo, olhando na realidade nossa, que você conhece, veio aqui tantas vezes, nós temos que modernizar setores e ir buscar setores, cujo nível de atraso é tão extraordinário, que, simplesmente abandoná-los, compromete a nossa participação. Quer dizer, a forma do Estado atuar, no caso do Rio, São Paulo, talvez algumas outras grandes metrópoles, faz com que o Estado tenha ainda compromissos importantes de atuação e de investimento na modernização das cidades, não exclusivamente para torná-las competitivas, mas para torná-las viáveis.

Manuel Castells: Absolutamente. E, por isso, nesse sentido, completando a frase, mas aplicada à cidade, o mercado, por si só, não soluciona nem os problemas sociais, nem os ambientais, nem os políticos, nem a integração cidadã e nem sequer os problemas funcionais. Ou seja, o mercado requer instituições; o mercado requer sistemas de gestão e de participação. Nunca houve um mercado puramente selvagem. Isso é uma ideologia perigosa. Se quiser ver o exemplo mais perigoso disso, é a Rússia atual. A Rússia atual foi suscitada por gente admiradora de Pinochet, como [Yegor] Gaidar [economista e político russo, foi primeiro ministro da Rússia de junho a dezembro de 1992] , que decidiram fazer um mercado sem controle, como transição do comunismo. O resultado é uma economia destruída, uma sociedade fracionada e uma economia que funciona em sistema de troca em 50%. Voltando a São Paulo. Creio que, efetivamente, deixar que o mercado seja o único mecanismo de reestruturação de São Paulo leva a aberrações, como a criação de novas periferias, de grandes sistemas de edifícios comerciais e residenciais, separados da cidade real, ao mesmo tempo em que se abandona e se deteriora o patrimônio existente, o patrimônio urbano, Avenida Paulista, centro da cidade, etc. Por conseguinte, a idéia que observo em São Paulo é que houve uma terrível gestão urbana, nos últimos 10 anos. A capacidade de administrar é fundamental na globalização, sobretudo no local. A capacidade nacional da globalização consiste, mais precisamente, em movimentos adaptativos, mas o que chega à vida cotidiana das pessoas é a administração local. E Barcelona e São Paulo estão, ambas, na globalização, e não pode haver duas cidades mais diferentes em termos de qualidade de vida, em termos de como funciona. Barcelona nem sempre foi assim. Durante minha infância em Barcelona, era um desastre de cidade, e funcionava muito mal. E neste momento funciona bem e é capaz de administrar a globalização. Portanto, São Paulo não é uma cidade destruída pela globalização, mas por uma má administração da globalização.

Heródoto Barbeiro: Nós vamos fazer mais um intervalo. Daqui a pouco nós voltamos. Nós estamos hoje entrevistando o sociólogo espanhol, nosso convidado, doutor Manuel Castells. Até já.

Heródoto Barbeiro: Nós voltamos com nossa entrevista, hoje o nosso convidado é o sociólogo espanhol Manuel Castells. Professor, antes de passar para os nossos convidados, combinamos de fazer perguntas bem curtinhas. Eu queria fazer uma bem curtinha, para o senhor dizer para o nosso telespectador. Tem uma afirmação do senhor dizendo o seguinte: “a tecnologia determina a sociedade”. É nesta época deste capitalismo em final de século que isso acontece?

Manuel Castells: A tecnologia não determina a sociedade, nem agora e nem nunca. O que acontece é que nada do que fazemos se poderia fazer sem essa tecnologia. Mas o que fazemos depende de nossa vontade. Além disso, mais do que nunca, o que queremos e pensamos converte-se em realidade com mais força porque tecnologia é uma tecnologia de informação. Portanto, está instalada no nosso cérebro, não nas máquinas. As máquinas processam o nosso cérebro. Por isso, temos, ao mesmo tempo, extraordinários efeitos positivos e extraordinários problemas porque todos somos anjos e demônios. Através da tecnologia temos, ao mesmo tempo, criatividade extraordinária cultural, musical, e pornografia na internet.

Gildo Marçal Brandão: Eu confesso que fiquei impressionado com o seu livro. Não só pela extensão dele, devem ser mais de 1500 páginas na edição brasileira, com a tentativa de explicar e integrar uma massa de informações e tentar dar uma solução teórica para essa realidade do mundo contemporâneo. Eu também achei muito simpático o que o senhor polemizasse com várias teses que estão no dia-a-dia, embora no dia-a-dia mais ou menos, digamos assim, identificadas com o que se chama de pensamento neoliberal. O senhor insiste no papel do Estado, insiste na questão da sociedade de mercado e não da economia de mercado pura e simplesmente, quer dizer, nas instituições, no papel das instituições. Mas eu fiquei preocupado e é essa a minha questão, no seguinte - é claro que talvez no segundo volume o senhor responda isso - mas se nós temos uma situação em que o capital é global, o trabalho é local, existe um capitalismo global, não existe uma classe capitalista global, a solução é, a contestação a esse sistema é só local e defensiva. Ora, se esses atores locais estão diante de um ator ou de um sistema internacional, o fato deles ficarem só no plano local não os condena à derrota, e nesse sentido o trabalhador e o cidadão não teriam vez nesse sistema?

Manuel Castells: Você expôs muito bem a contradição atual. Daí nasce a extraordinária insegurança dos cidadãos no mundo todo e a crise de legitimidade política. Porque, entre o que as pessoas vêem como problema e o que podem entender do que fazem seus governos, seus partidos, etc, há uma distância enorme. Eu não tenho solução para esse problema. Eu constato o que se está observando e tento ver, então, que embriões de reconstrução, de controle político e de orientação política, estão ocorrendo. Não o que eu penso, nem sequer o que eu quero, mas o que está acontecendo. Estão acontecendo diversas coisas ao mesmo tempo, em termos de reconstrução. O local é, primeiro, uma trincheira de resistência, um organismo de resistência. Mas, também, tenta mudar as condições de administração do global no local, mediante programas municipais, programas urbanos, programas de desenvolvimento cultural, programas de previdência social. Há múltiplos exemplos no mundo. Segundo, os Estados podem ter políticas diferentes e, portanto, impor maior controle aos processos de globalização. Exemplo: a Finlândia é a primeira sociedade de informação no mundo, neste momento, segundo os indicadores. Ao mesmo tempo, é uma sociedade social democrata, com cobertura universal dos direitos sociais, alta produtividade e competitividade de suas empresas, democracia participativa na internet. É um modelo diferente do Silicon Valley. Se devemos economizar expressões como “neoliberalismo”, por exemplo, todos me dizem: “ No Brasil, há um governo neoliberal”. Não. Um governo neoliberal, no sentido estrito do termo, é um governo que pensa que o mercado vai fazer tudo. Não é um governo que faz cobertura universal da saúde, que Hilary Clinton [(1947-), política estadunidense do Partido Democrata, senadora pelo estado de Nova York desde 2001. Foi primeira dama dos EUA, entre 1993 a 2001, na condição de esposa do presidente Bill Clinton, é pré-candidata à presidência dos EUA em 2008] não pode fazer; não é um governo que faz reforma agrária; não é um governo que faz política habitacional; não é um governo que aumenta enormemente a educação. Esse não é um governo neoliberal. Então, o estar manejando a globalização não é o neoliberalismo. O neoliberalismo é dizer que o mercado arrumará tudo. Aí sim, há um problema e há muitas situações em muitos países onde isto acontece. Outro embrião de reconstrução de sentido: os movimentos sociais, que chamo pró-ativos, que propõem diferentes projetos, diferentes projetos de vida, como é o movimento feminista, o movimento das mulheres, em geral, como é o movimento ecológico. Enfim, a conexão de movimentos de defesa, como os sindicatos, como os movimentos de trabalhadores, que não desaparecem e não vão desaparecer, mas que têm de começar a articular suas estratégias, por um lado, em nível global, e, por outro lado, incorporando as novas formas de trabalho produtivo e as novas formas de organização em rede, sem o que serão, simplesmente, um bastião de resistência, mas não uma fonte de mudança.

Ricardo Abramovay: Professor Castells, o seu livro, no terceiro capítulo, sobre a economia informacional e o processo de globalização, ele, que aliás é uma virtude do livro como um todo, quer dizer, de recuperar a nossa história recente, não para traçar leis gerais, mas para nos fornecer certos horizontes e possibilidades de desenvolvimento. Assim como o senhor tem insistido nessa entrevista me parece, de maneira com a qual eu concordo, que os dados estão lançados, mas o resultado não está antevisto e não está definido.

Manuel Castells: Correto.

Ricardo Abramovay: Nesse sentido, da mesma maneira que o problema da cidade é um problema de gestão e não um problema da globalização, eu fiquei com a sensação que com relação à América Latina, no capítulo que o senhor fala da economia informacional, enfim, esse capítulo da economia informacional, o processo de globalização, a América Latina acabou se dando muito mal no processo de globalização, com, talvez a exceção chilena e em alguma medida, exceção mexicana e alguns setores do Brasil. Mas globalmente, sobretudo, do ponto de vista social, há um contraste nítido entre a situação latino-americana e a situação asiática. Claro, que nós não somos o Quarto Mundo, como é a África subsaariana, nós não estamos em situação de desintegração como está a Rússia, mas nós não conseguimos nos engatar de maneira dinâmica no processo de globalização de maneira que esse dinamismo beneficiasse amplas massas da população. E quando a gente vai examinar as razões pelas quais isso aconteceu, não é por falta de poupança interna, não é por falta de elites internas. Eu fiquei com a imagem que é, sobretudo, pela maneira como o Brasil se submeteu aos organismos – Brasil não – a América Latina se submeteu aos organismos financeiros internacionais, inclusive há um elogio ao governo brasileiro em 1994, pelo fato de ter conseguido a façanha histórica de negociar diretamente com os bancos sem se submeter ao FMI. Embora o seu livro não seja normativo, esta não submissão ao FMI aparece como um caminho a ser seguido no sentido não da recuperação da soberania nacional do velho estilo, mas de compatibilizar a inserção na ordem global com uma economia capaz de promover coesão social.

Manuel Castells: O problema está muito bem exposto. Primeiro, sobre os dados, esse volume, esse livro, tal como está, foi terminado em 1996. A situação mudou um pouco, desde então. Melhorou, substancialmente, no Brasil, de 1996 a 1998; melhorou, substancialmente, na Argentina, nesse período. E, em geral, na América Latina, houve uma integração mais negociada no processo de globalização. Portanto, há processos em marcha. Ao mesmo tempo, em 1997, 1998, houve a grande crise da Ásia e, em boa medida, o naufrágio do modelo do Pacífico Asiático centrado no Estado desenvolvimentista. Mas a pergunta central que você coloca, por que, por exemplo, Brasil ou Argentina, entram em uma fase recessiva no final de 1998 e durante parte de 1999, embora eu creia que o Brasil começou a crescer outra vez, está crescendo 1%, neste momento. Mas eu creio que aí o problema vem, fundamentalmente, de como funciona o mercado financeiro global. O mercado financeiro global funciona só em parte por critérios econômicos. Funciona também, e cada vez mais, pelo que chamo de turbulências de informação. O que quer dizer turbulência de informação? Que o que dizem certos personagens, ou como avaliam certas empresas, para países, ou para governos, geram grandes movimentos de psicologia coletiva nos mercados financeiros que são incontroláveis. Criaram nos mercados financeiros uma entidade, um planeta, que se chama mercados emergentes, em que estão em pé de igualdade Rússia, Indonésia, Brasil, Coréia. Qualquer coisa que ocorra em um desses países, sem que nada tenha a ver com a economia, tem impacto sobre os outros países. Por conseguinte, tem impacto sobre o Brasil; indiretamente, tem impacto sobre a Argentina. Assim, o grande problema da América Latina é que, ao integrar-se cada vez mais na globalização, torna-se cada vez mais vulnerável a esse tipo de movimento. Portanto, é preciso saber navegar. Se comparo o que ocorreu na Indonésia, o que ocorreu na Malásia, no Sudeste Asiático com o que ocorreu no Brasil e na Argentina, creio que a América Latina está navegando melhor nesses mares turbulentos da globalização. O Fundo Monetário Internacional, eu o chamo de “Fetiche Monetário Internacional”, porque, na verdade, não dão dinheiro, dão a promessa de uma linha de crédito para que os investidores recuperem a confiança. É ideologia, é informação o que fazem. No caso da Ásia, como foi demonstrado empiricamente, agravaram a crise financeira, na Indonésia, provocaram o pânico e a economia naufragou. No caso do Brasil, houve algo diferente. O Brasil não aceitou todos os termos da negociação e o que aconteceu no Brasil é que, pela primeira vez, o FMI aceitou algo que restabelece mais a sua função econômica, que é a intervenção preventiva. Ou seja, os países que têm uma política de ajuste podem ter a possibilidade de uma linha de crédito imediata para prevenir turbulências de informação, que geram pânicos financeiros. Isso é novo e foi a conseqüência da negociação com o Brasil. Portanto, há uma mudança.

Luiz Weis: Gostaria de fazer uma pergunta. Há um aspecto do seu livro pelo menos no primeiro volume dessa trilogia ao qual tivemos acesso, que me chamou muito a atenção, foi o fato que é muito raro para tipo de trabalho dessa envergadura, dessa ambição intelectual, o senhor não cita entre os autores o velho Marx. Eu gostaria de saber: o senhor acha que o marxismo é inútil como instrumento de compreender o mundo atual que o senhor descreve? E ele é obsoleto como instrumento de transformação?

[?]: As categorias básicas do livro são modo de produção e modo de desenvolvimento.
[?]: Já que é para partir para o ataque pessoal, eu gostaria que o senhor se identificasse politicamente.
[?]: Ninguém está partindo para o ataque pessoal!
[?]: Brincadeira.

Manuel Castells: Uma pergunta perfeitamente legítima. Neste livro, não cito Marx e não cito muita gente que fez coisas muito importantes, inclusive recentes.

Luiz Weis: Mas é atípico, o senhor vai concordar.

Manuel Castells: E advirto que só cito o que utilizo diretamente. Não faço uma revisão bibliográfica. Não é um livro sobre livros.

Heródoto Barbeiro: Mas vamos às perguntas.

Manuel Castells: É um livro sobre o mundo em que vivemos. Então, nesse sentido, é significativo não que não cite, mas que não utilize Marx. Por que não o cito? Porque não me serve, efetivamente, para este mundo. Serve-me para uma certa construção teórica, como a do modo de desenvolvimento, como a do modo de produção, que tem matriz marxista. Eu fui marxista, não sou antimarxista, como todos os marxistas franceses que logo se tornaram pós-modernos e antimarxistas. Para mim, o marxismo é um instrumento e não uma religião. E não uma política, porque a política marxista é terrível.

Luiz Weis: Mas é um instrumento obsoleto ou ainda válido como um instrumento de transformação?

Manuel Castells: É válido para alguns problemas sociais; é válido para entender o modo de produção, é válido para entender exploração. Não é válido para entender o que é uma economia informacional e para entender o que é o atual processo de globalização.

Washington Novaes: Se o senhor me permite voltar a essa polarização entre o social e o político e a globalização. Porque embora o senhor diga que o senhor descreve, que o senhor não defende, aqui na página 502, o senhor escreve o seguinte: “na verdade, contradizendo profecias apocalípticas de análises simplistas, há mais empregos e uma proporção maior de pessoas com idade para o trabalho, empregadas, que em qualquer outra época da história. Quem não parar um pouco, vai tomar isto como uma verdade. Agora, acontece o seguinte, realmente há mais empregos que em qualquer outra época da história, mas há mais população que em qualquer outra época da história. Proporcionalmente isso não se sustenta.

Manuel Castells: Não é correto. Empiricamente não é correto.

Washington Novaes: O senhor, a proporção de pessoas sem emprego hoje...

Manuel Castells: É muito maior do que nunca, porque as mulheres não eram força de trabalho paga. Costuma-se esquecer disso.

Washington Novaes: Mas não é só por isso, é porque a população também cresceu extraordinariamente...

Manuel Castells: A proporção não muda com...

Washington Novaes: E a proporção, na verdade, não é essa. Além disso, volto ao relatório do qual o senhor é consultor. O senhor tem hoje no mundo, segundo esse relatório, mais de 1 bilhão de pessoas que ganham menos de um dólar por dia.

Manuel Castells: Mas isso não tem nada a ver com terem emprego ou não. Não é tudo de uma vez: falta de emprego, pobreza... E lhe digo mais: há 40% de pessoas no mundo que ganham menos de dois dólares por dia. Eu participei desse informe, portanto, não é porque não tenham trabalho, não é porque não tenham trabalho, é porque têm mau trabalho e mal pago. É um problema diferente e, analiticamente, fundamental.

Washington Novaes: Não é só. Eu também trabalhei para esse relatório e queria dizer o seguinte. Há um outro pressuposto no seu livro que é o seguinte: a tecnologia não é neutra, a tecnologia está sempre a serviço, atendendo a determinadas necessidades de determinados modelos. Então ela pode ser perversa, ela pode perfeitamente ser perversa, e no caso social e político hoje, ela tem extraordinários efeitos perversos.

Gildo Marçal Brandão: Na verdade, na tese da tecnologia neutra, eu acho que ele reverte a Marx. Porque o problema é a utilização que se faz na sociedade, não é a tecnologia em si que pode ter efeitos positivos ou negativos, é anti-Marcuse [referência a Herbert Marcuse, influente sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano], digamos assim. Me pareceu que o livro é anti-Marcuse. A idéia...

Manuel Castells: A tecnologia não é perversa; aumenta as tendências perversas da sociedade ou as tendências positivas da sociedade. As duas coisas.

[?]: Bem ou mal, ela potencializa tudo.

Kátia Mello: Em relação a isso, eu até gostaria que o senhor comentasse. Estamos aí com a situação dos grampos telefônicos e estamos pensando também até onde vai a privacidade do indivíduo. Eu queria que o senhor associasse até outros casos, como os casos de pedofilia, os casos de meninos que montam bombas caseiras, como foi o caso dos Estados Unidos, e vão nas escolas e levam suas bombas.

[?]: Deixa eu pegar uma carona, mas aí é uma carona mesmo...

Manuel Castells: Vamos por partes. Não há privacidades.

Kátia Mello: O senhor diz ser um anarquista, quer dizer, não há privacidade. Deve haver censura?

Manuel Castells: É um dado. Não há privacidade.

Kátia Mello: Deve haver censura, não deve haver censura?

Manuel Castells: Não pode haver censura, não é possível censurar. Há capacidade tecnológica de superar a censura.

Regina Meyer: Nós não devemos lutar para que haja mais privacidade?

Manuel Castells: Não sei.

Kátia Mello: Não tem limite a tecnologia, o desenvolvimento tecnológico?

Manuel Castells: Primeiro...

[?]: [interrompendo Manuel Castells] Mas como não há censura? O senhor me desculpe, a Arábia Saudita não tem internet.

Manuel Castells: Exato. Só há possibilidade de... Não estão ligados à internet, estão fora da rede. Primeiro, por grandes problemas tecnológicos de censura. Mas, segundo, porque nos Estados Unidos, o centro da internet, há uma decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos de que é anticonstitucional estabelecer qualquer tipo de controle sobre a internet porque há o direito constitucional aos caos. É uma expressão interessante.

Ricardo Abramovay: Tudo que é crime fora da internet, é crime na internet também.

Manuel Castells: Claro!

Ricardo Abramovay: Portanto a sociedade tem que se defender com as suas armas.

Manuel Castells: Mas, uma vez que seja... Quando há algo na internet, como pedofolia, pode-se perseguir, depois de ocorrido. Não é que eu esteja de acordo com que haja pornografia na internet. Só quis dizer que a internet expressa o mesmo que há na sociedade. Se há pedofolia na sociedade, haverá pedofolia na internet. A internet não é necessária para o que, hoje em dia, é um comércio de turismo sexual global, em que há centenas de milhares de crianças exploradas sexualmente por operadoras de turismo, do mundo todo, que vão a Tailândia, Costa Rica, Brasil, para esse negócio. Mas isso não é a tecnologia. É o tipo de sociedade. É que criamos uma sociedade em que a violação de crianças é um valor de mercado.

Kátia Mello: O senhor não acha que deve ser repensada a ética, por exemplo, no caso da biotecnologia, da clonagem, de tudo isso?

Manuel Castells: Claro. Aí, sim, exponho um problema com certo alarme. Agora, já temos a capacidade, não é o futuro, é já, a capacidade de manipular geneticamente a vida. Se não criarmos uma sociedade muito mais responsável, no nível dos indivíduos, não só das instituições, haverá usos terríveis da manipulação genética. Mas não vamos deter isso, controlando a engenharia genética, porque ela vai se desenvolver de todas as maneiras. Isso expõe o desafio de que tipo de educação, de que tipo e moralidade, de que tipo de instituições temos na sociedade.

Luiz Weis: E de que tipo do controle do capital que está por trás disso, ou não?

Manuel Castells: Mas é que o capitalismo e os perversos não são a mesma coisa?

Luiz Weis: Não, não é o mesmo, mas é o mesmo capital.

Manuel Castells: Eu sou bastante crítico do capital incontrolado, mas nem todos os males do mundo são apenas do capital.

Luiz Weis: Não estou dizendo isso.

Regina Meyer: Castells eu queria fazer uma pergunta. Sobre a questão da violência, que é uma questão que te chamou atenção, no Rio de Janeiro você fez umas observações sobre violência. E na entrevista que você deu a uma revista essa semana, você fala do futuro da cidade. Que a cidade será um conjunto de guetos ou de nichos segregados e etc. Quer dizer, um futuro tenebroso que você descreve, né? Futuro sombrio para a cidade. E hoje nós estamos vivendo uma situação, onde a violência é muito grande, nós temos poucos elementos, poucos conceitos, poucas formas de pensar a violência, especialmente nas cidades e temos uma novidade do ponto de vista de organização da sociedade, que é uma proximidade física vinculada a uma distância social, que é o modelo que nós estamos vivendo, especialmente no Brasil, acho que algumas outras cidades americanas ainda têm isso. A violência é dada, muitas vezes se explica de maneira simplista, através do desemprego, pobreza e etc. No teu livro, quando você descreve o futuro das cidades, eu acho que a violência começa a se explicar por esse futuro que você descreve.

Manuel Castells: De acordo, sob a condição de insistir que não descrevo o futuro, mas o presente das cidades.

Regina Meyer: Está certo, mas ali você... Foi na revista que você... Uma entrevista que você deu.

Manuel Castells: Então, para mim, o que parece ser o problema, o maior paradoxo urbano que estamos vivendo, é que chegamos ao mundo urbano. Chegamos a um mundo em que a maioria das pessoas, pela primeira vez na história, vive em cidades. No Brasil, são 80%. Ao mesmo tempo, pode ser um mundo urbano sem cidades. Isto é, um mundo urbano em que se perde a cidade como sistema de convivência, como cultura, como instituição de gestão local, fragmentada em mercados e tribos identidárias.

Regina Meyer: Urbano, como contraponto de cidade?

Manuel Castells: Exato. Isso é o que estou vendo.

[?]: Isso é o pior dos mundos possíveis.

Manuel Castells: Então, como se opor a isso? Através de coesão social, gerada através das instituições públicas e de gestão de um novo tipo de cidade. Às vezes, acredito que, em São Paulo, não se está medindo a verdadeira São Paulo. O mesmo eu diria de outras cidades brasileiras. Todo mundo me fala do extraordinário dinamismo das cidades do interior de São Paulo: de Araraquara, de Campinas, etc. E se pensássemos que, na realidade, não estamos em uma megacidade, como São Paulo – é um velho conceito – mas em um sistema de núcleo urbanos articulados em uma grande região metropolitana, em que, na realidade, as pessoas vivem e trabalham nesses núcleos, mas se articulam entre eles. O problema então...

Washington Novaes: Mas esses núcleos do interior de São Paulo repetem o modelo de São Paulo. Campinas tem os mesmos problemas...

Manuel Castells: Isso mesmo.

Gildo Marçal Brandão: [?] políticas para operar essa megacidade.

Manuel Castells: Exato. Então o problema é que a dinâmica espacial pode ser corrigida com base na integração de diferentes núcleos. Mas o senhor tem razão: os problemas sociais se reproduzem nesse sentido. E se reproduzem pelas causas estruturais de pobreza, pela incapacidade de gestão, pela incapacidade de integração política e por algo mais, que é a emergência, pela primeira vez na história, de uma economia criminal global, organizada sistemicamente como forma de conexão perversa dos excluídos, em que a droga e a violência se combinam.

Heródoto Barbeiro: Doutor Castells, nós estamos chegando ao final do nosso programa, eu gostaria de fazer uma pergunta ao senhor, até para fechar alguma coisa que foi dita aqui, em que foi discutido um pouco de marxismo, um pouco a respeito de capitalismo, acho que alguma coisa ficou um pouco no ar. Eu gostaria de saber do senhor o seguinte: no chamado capitalismo informacional, afinal de contas, existe ou não existe luta de classes? Existe ou não existe a mais-valia, ou essas coisas pertencem a um capitalismo do passado?

Manuel Castells: Existe luta, mas não de classes. Existe geração de valor, porém, não através apenas, nem fundamentalmente, de capitalistas individuais, mas de uma rede de fluxo de capital, que, conjuntamente, como se fosse um autômato incontrolado, organiza o conjunto das economias de todos os países, com base em transações nesse mercado financeiro, sem referência a qualquer valor social. A contradição não é mais entre capital e trabalho, mas entre autômato financeiro e os valores da humanidade que se estão perdendo.

Heródoto Barbeiro: E onde está essa contradição que é inerente ao próprio sistema capitalista?
Manuel Castells: É inerente a contradição, não entre capital e trabalho, e sim, entre forma de apropriação de valor e experiência humana. A contradição fundamental não é que um patrão tire dinheiro de um trabalhador, mas que toda nossa vida seja organizada com base nas diferentes taxas de financiamento em um mercado financeiro global.

Luiz Weis: Mas, dada a crescente desigualdade entre esses dois atores sociais básicos, o capital, não o trabalho, mas a sociedade. O cenário de uma globalização, de um capitalismo informacional com face humana é uma quimera, é uma utopia?

Gildo Marçal Brandão: É uma sociedade matriz.

Manuel Castells: Não, porque existem projetos políticos que tentam negociar, que tentam reconstruir. Poucos, mas existem. Creio que onde há dominação, há resistência, e onde há exploração, há capacidade de reorganização da sociedade. Essa é a história humana e temos que ver como se desenvolve, nos próximos anos.

Luiz Weis: Sim, mas a resistência que existe hoje é uma resistência medievalista, uma recusa ao capitalismo liminar.

Manuel Castells: Não só. O movimento ecológico não é medievalista, o movimento feminista não é medievalista e as tentativas de articulação entre política do Estado e política de informação, como na Finlândia e em alguns países da América Latina, de alguma forma, tampouco são medievalistas. Há embriões, mas não sabemos quais serão seus resultados, porque a História não se escreve de antemão. A História se vive, se faz e, depois, chegamos nós, os sociólogos, e a interpretamos.

Heródoto Barbeiro: Doutor Castells, nós queremos, então, agradecer sua gentileza, sua participação conosco. Muito obrigado pela participação, pelo debate com nossos convidados. Nós queremos também agradecer a todos que participaram conosco nesse programa Roda Viva.