O Supremo Tribunal é conhecido como Corte política. Não raro se
excede na faina de agradar ao Executivo e ao Legislativo. Em sua história os
brasileiros encontram sentenças que envergonhariam qualquer toga do planeta.
A
Constituição de 1934 proíbe tribunais de exceção no capítulo 2, 25: “não haverá
foro privilegiado, nem tribunais de exceção”. Instaurado o Tribunal de
Segurança Nacional, o deputado João Mangabeira apresenta recurso ao Supremo.
Por voto unânime os juízes declaram o invento tirânico “em perfeito acordo com
a Constituição da República”.
Um atalho na Carta permite a hermenêutica liberticida:
“admitem-se, porém, Juízos especiais em razão da natureza das causas”. E a
bênção dos magistrados é concedida sem data venia. O referido tribunal persegue
1.420 pessoas: 533 no Distrito Federal, 222 do Rio Grande do Norte, 165 em São
Paulo, 95 em Pernambuco, 85 da Bahia. Entre os “julgados”, Armando Sales, José
Antônio Flores da Cunha, João Mangabeira, Otávio Mangabeira, Luís Carlos
Prestes, defendido pelo grande Sobral Pinto. No caso de João Mangabeira ocorre
façanha incomum na história jurídica internacional: empatada a decisão, o
presidente Barros Barreto decide contra o réu. O Supremo Tribunal Militar
corrige em parte o escândalo e concede habeas corpus ao parlamentar.
Depois
vêm as manobras em prol do parlamentarismo, com a demissão de Jânio Quadros. O
STF se cala, apesar do notório golpe aplicado por militares. Em 1964, o mesmo
silêncio tíbio quando Hermes Lima e Evandro Lins e Silva são expulsos da
Excelsa Corte pelo governo de fato. Procura em vão quem busque nos anais
daquele colégio uma nota mais dura contra o AI-5, que suspende o habeas corpus
em casos de crime político e contra a ordem econômica, a segurança nacional, a
economia popular. Tais crimes são tipificados com pressuroso auxílio de quem
redige uma Constituição como a Polaca, o notório Francisco Campos. Nada
relevante é dito pelo Supremo contra a censura prévia em jornais, revistas,
livros, peças de teatro e músicas.
E seguimos a trajetória pouco sublime do Supremo. Por exemplo, no
apagão do período FHC. Questionada a constitucionalidade da multa (os usuários
não eram responsáveis pela imprudência governamental, que não providenciou
melhorias na rede), os juízes do STF definem que, sem penalidades pecuniárias,
os cidadãos deixam de colaborar. Logo…
Na reforma da Previdência sob Luiz Inácio da Silva, Joaquim
Barbosa, o herói da futura Ação 470, decreta em seu voto que “não existem
direitos adquiridos, caso contrário ainda estaríamos em regime de escravidão”.
Nenhuma data
venia é apresentada por
seus pares contra o sofisma, de enrubescer estudantes ainda no primeiro ano
acadêmico.
O que acontece na tarde de 7 de dezembro de 2016 ressuscita o
velho serviçal dos outros dois Poderes, com resultado ainda pior para os
togados. Sob o ultimato de Renan Calheiros e do governo – chantagem solta, pois
sem a vitória de Renan surge a ameaça de não se votarem cortes orçamentários –
o Supremo se coloca como trampolim para ações contrárias à cidadania que lhe
paga e a quem deve servir.
Antes de continuar, uma reflexão. Illibatus, a, um, no latim maltratado
pelos membros do STF, tem o sentido de algo ou alguém íntegro, inteiro,
completo, ao qual nada falta, não enternecido pela perversão ética. Como o candidus, do qual se origina o atual
“candidato”, o vocábulo indica a propriedade de não ser conspurcado, de seguir
um parâmetro virtuoso. Illibatus designa um ser sem travestimentos,
enfeites, dissimulação. Seu antônimo é o termo improbus, aplicado a quem
“comete uma falta contra a fides,
sendo o equivalente de iniustus. A improbitas é a ruptura da fides, é o defeito de quem não honra
promessas e corresponde ao francês malhonnêteté”. (J. Hellegouarc’h: Le
Vocabulaire Latin des Relations et des Partis Politiques sous la République).
No Brasil, todo cargo público exige do candidato a “ilibada
reputação”. Esta lhe concede a efetividade plena do múnus encerrado no ofício.
Ninguém pode exercer uma função em fatias, pois tal fato seria improbidade
ética e política. Como, então, os juízes do STF guardam Renan Calheiros no
cargo de presidente do Senado, mas lhe retiram o direito e o dever de
substituir o chefe do Estado? Ocorre aí improbidade de alguém. Ao ser empossado
como senador, aquela pessoa promete cumprir fielmente tudo o que seu cargo
exige. Como não pode cumprir tal promessa, existe improbitas de
sua parte. E tal coisa é autorizada, ou melhor, sacralizada pelo guardião da
Carta Magna?
Outro
problema: Calheiros não pode substituir o chefe do Executivo porque é réu e,
portanto, sua reputação não é inteira, é quebrada por algo muito grave. Mas
numa República democrática o soberano é o povo. Renan não pode assumir a
Presidência, mas pode legislar para os cidadãos, obrigando-os a cumprir normas
das quais ele mesmo é acusado oficialmente de se abster? Para os juízes do STF,
quem é mesmo o povo? A presidente Cármen Lúcia, num rasgo agora provado como
demagógico, proclama ao ser empossada algo assim como “Sua Excelência o Povo”.
Triste excelência, obrigada a seguir leis definidas por quem a elas não
obedece! O competente e sério jornalista José Nêumanne Pinto define a decisão
do fatídico dia 7/12 como “cusparada no povão”. Ele é muito gentil com os
integrantes da Suprema Corte.
No espetáculo de subserviência o STF faz mais: retoma sua amarga
história de instrumentum regni.
Esquecem os magistrados: quando a autoridade é perdida, um Poder deve sorver
até a última gota da abjeção. A Câmara dos Deputados prepara medidas contra as
sentenças do STF. A continuar o sumiço de sua própria auctoritas, aquela Corte logo terá
membros seus nas penitenciárias. Por ousar a condenação de larápios do dinheiro
público.
O
realismo político à custa da cidadania sempre termina em tragédia. Ou comédia.