segunda-feira, 23 de junho de 2008

A CAVERNA

A caverna já foi usada como alegoria em diferentes ocasiões. Platão retratou com ela a dificuldade de se conhecer o real. Posto no fundo da caverna, o homem só via as sombras dos objetos exteriores, nunca os próprios objetos. Menos afeitos à metafísica, porém com grande sutileza, os antigos fabuladores orientais referiram-se a ela como um lugar ideal para servir de valhacouto de ladrões, tal como consta no relato da famosa aventura de Ali Babá. Quando para ela adentrava, após os saqueios habituais, o bando de larápios contemplava a fortuna acumulada e costumava, então, promover a divisão do butim amealhado de forma vil. Se, por acaso, ocorresse alguma divergência entre eles, certamente não era por razões mais nobres, ou por alguma filigrana ideológica. Na caverna de Ali Babá que, aliás, nada tinha a ver com os ladrões (ele tão somente furtou o que os outros tinham roubado, após descobrir a palavra mágica que abria a porta dos tesouros), só havia, portanto, divergências materiais e financeiras. Até porque o ideário comum de todos aqueles patifes era um só, muito similar ao que ocorre em outras cavernas pelo mundo afora: morder o dinheiro alheio e enricar o máximo possível.

Veja-se, por exemplo, o caso de Belo Horizonte. A turma do mensalão – aquela mesma que foi flagrada há algum tempo atrás saqueando o tesouro público – transformou a prefeitura da capital mineira em uma grande caverna. Presentemente brigam entre si, tal qual faziam seus similares da velha história das 1001 Noites, para saber quem vai comandar a caverna da Av. Afonso Pena. Ou, então, como os sapos que ficam nos brejos a cantar: “meu sapo foi rei”, gritam uns; “Foi, não foi”. “Meu sapo é rei” esgoelam-se outros; “É, não é”, num coaxar estridente que avança pela noite afora. Sem qualquer violentação aos fatos, o que está ocorrendo com os mensaleiros municipais, estaduais e federais, vinculados ao PT e partidos satélites, sob os olhos de uma cidade perplexa, é uma disputa inglória, não em defesa dos cidadãos, mas, sim, para saber quem vai assumir a boquinha e comandar o saqueio que a capital mineira sofre há uma década e meia. Um conchavo espúrio e vergonhoso entre caciques que consideram o povo de Belo Horizonte um bando de otários primitivos, tangidos facilmente por propaganda maciça, esmolas e obras cosméticas que mal arranham as grandes demandas da cidade.
Uma comparação com outras grandes cidades brasileiras mostra o medíocre desempenho dos governantes municipais no que se refere a obras estruturantes e grandes obras viárias. No Rio de Janeiro, em Salvador, em São Paulo etc. as intervenções urbanas foram, e tem sido, de grande alcance. Em Belo Horizonte, não! Aqui, os aduladores de todos os governos não fazem mais que incensar as medíocres realizações cujo porte dá a medida exata de seus executores.

MANIPULANDO A OPINIÃO PÚBLICA

Os defensores da aliança entre o PT e o PSDB na disputa para a prefeitura de Belo Horizonte manipulam vergonhosamente a opinião pública. Publicam pesquisas políticas feitas de encomenda, tentando convencer ao povo da cidade que o pacto pretendido recebe amplos aplausos dos eleitores da capital. Usam, em defesa do tal projeto, argumentos que seriam risíveis se não fossem da mais deslavada má fé. Por exemplo, querem nos fazer crer que um futuro prefeito aliado do governador e do presidente da república será algo excelente para a cidade. Sem entrar no mérito, ainda, veja-se o travo autoritário do raciocínio, similar ao que era praticado nos tempos do regime militar. Os generais gostavam de escolher os governadores e os prefeitos das capitais com a justificativa de que era necessário haver uma harmonia entre os gestores públicos. Era uma forma elegante de chamar os eleitores mais politizados de idiotas. Os grotões, ao contrário dos grandes centros, sempre são governistas. Basta ver o prestígio do PT nos vales da miséria e nas caatingas nordestinas. Nada diferente do que ocorria com a ARENA de outrora, incensada pelas aposentadorias do FUNRURAL, antecessor direto da bolsa esmola de hoje. Vê-se, assim, que tem explicação a afinidade aparentemente esdrúxula entre Lula e Delfim Neto.

Um dos mais graves problemas urbanos está no transporte coletivo. Pois bem, nos últimos cinco anos o metrô de Belo Horizonte não avançou um milímetro, apesar da decantada aliança entre o atual prefeito, o governador e o presidente. Por que não investiram nas obras, se são tão afinados politicamente? Mais estranho fica a coisa quando se sabe que o presidente da empresa que gerencia o metrô é mineiro, afiliado ao PT, e com experiência que remonta aos tempos da ditadura militar. Também a prefeita de outra cidade beneficiada pelo metrô – Contagem - é militante do petismo, tal qual o prefeito da capital. Se eles são tão próximos, qual a razão deste importante meio de transporte coletivo ter sido relegado a segundo plano? Falta de “vontade política” para usar um jargão da época? Interesses comerciais dos concessionários de ônibus? Estes, aliás, estão em processo de disputa das linhas de Belo Horizonte, no apagar das luzes de uma administração que durou 16 anos, numa espécie de xepa licitatória, coisa de fim de festa onde tudo fica na base do agarre o que puder. O mais estranho, contudo, é que nunca divulgam pesquisas de opinião contendo nomes dos eventuais concorrentes. Aí, claro, todos veriam que o candidato inventado pelos mandarins não tem qualquer substância nem viabilidade eleitoral. Todas as capitais sabem do pulsar da opinião pública local. Em BH, entretanto, fomos reduzidos à menoridade política.

A PSICOPATOLOGIA DO TOTALITARISMO

"A PSICOPATOLOGIA DO TOTALITARISMO


I) A angústia e o medo

Autores como FRANZ NEUMANN (in Estado democrático e Estado autoritário. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1969), põe ênfase no exame das emoções humanas, em especial no estudo da angústia e do medo, marcadamente em relação a suas funções na vida política, baseando-se principalmente em Freud.

MEDO: Reação emocional diante de situações específicas despertadas por objetos, também específicos, do mundo externo;
ANGÚSTIA: É posta em ação por um fator desencadeante interior e, portanto, sem objeto externamente definido.

A angústia compreensivelmente desempenha papel de ainda maior significação na vida psíquica, por estar ligada às representações inconscientes do sujeito, vinculando-se a mais numerosas circunstâncias da vida. Já que situações e objetos que a desencadeiam pertencem á própria pessoa, pois lhe são internos, não lhe é possível deles evadir-se, como poderá fazê-lo com os determinantes do medo.

NEUMANN acentua a significação central da angústia para o estudo do comportamento das coletividades, ressaltando o papel desempenhado por tal emoção nas manifestações humanas e, portanto, para as ciências que têm por tema essas manifestações, pois, como acentua, “a grande preocupação da ciência é a análise e a aplicação do conceito de liberdade humana que lhe está indissoluvelmente ligado”.

(O medo, no entanto, não é emoção apenas e sempre caracterizável como conseqüência de um perigo real, pura e exclusivamente. Por exemplo, a maioria das pessoas sentirá medo diante de uma fera perigosa. Por outro lado, as crianças sentem medo em relação a seus pais. Habitualmente esse sentimento não chega, contudo, sequer à suspeita consciente de que esses poderão devorá-las. Não obstante, a prática psicanalítica amiúde mostrará que tal sentimento poderá ser inconscientemente abrigado. Portanto, mesmo que na emoção do medo esteja presente um objeto externo específico, ainda assim a percepção deste objeto está ligada a representações inconscientes sentidas como perigosas. Isso por serem, esses objetos, depositários de impulsos agressivos, neles colocados pelo processo psicológico inconsciente da projeção).


II – O mal estar na vida social

A sensação de mal-estar sentida em relação à vida social talvez seja sempre percebida mais agudamente, em qualquer caso, em relação à coletividade em que cada um vive. Qualquer outra que o sujeito considere como ponto de comparação é sempre vista a uma certa distância afetiva, despertando, pois, menos paixão. A sociedade atual, não obstante, com toda probabilidade é aquela em que há a mais clara percepção das realizações humanas dentro de seu âmbito. Na esfera material, naquilo que concerne ao avanço técnico, parece haver pouca ou nenhuma dúvida com relação à magnitude dos avanços desta cultura. Já no terreno organizacional e afetivo, as realizações parecem bem mais hesitantes e, de alguma forma, sujeitas a progressos envaidecedores e recuos vergonhosos. Precisamente aí, sente-se, nessa mesma sociedade, com mais agudeza, as limitações que a vida social impõe.

Freud já dizia que o programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado. No entanto, não devemos, nem podemos abandonar nossos esforços de vê-lo satisfeito. Freud, ao analisar as fontes de onde provém nosso sofrimento acentua uma delas – a de mais difícil superação – a “insuficiência” das regras que procuram ordenar as relações dos homens uns com os outros na família, no Estado e na sociedade. Isso porque os seres humanos “negamo-nos a aceitar tais limitações; não podemos compreender por que regras que demos aos mesmos não proporcionem proteção nem conforto a todos. Certamente, se ponderarmos quão mal nos houvemos nessa parte, prevenção contra o sofrimento, desperta-nos a suspeita de que também aqui pode ocultar-se uma parte da indomável natureza, desta vez, nossa própria constituição psíquica”.

NEUMANN, oportunamente, assinala que “os conflitos inevitáveis, que são gerados pelas limitações impostas às pulsões libidinais e destrutivas, são os verdadeiros motores da história”. É bem perceptível com que propriedade ele aponta para tal circunstância, tendo-se em mente que a vida social só será possível se e quando algum dique for oposto e mantido à livre satisfação das pulsões de todos e de cada um dos participantes, com a finalidade de, ao menos, atenuar os embates resultantes da colisão entre aspirações inconciliáveis. É preciso pensar-se nos necessários choques decorrentes da vida em sociedade na existência dos indivíduos, sem que se ignorem, em momento algum, os conflitos intrapsíquicos na arena interior de cada pessoa, desencadeados pelo viver coletivo. As possíveis e sérias conseqüências da limitação à satisfação das pulsões foram explicitamente mencionadas por Freud: “não é fácil de entender, como pode ser feito, o retirar a satisfação de uma pulsão. Isso não é conseguido inteiramente sem perigo; quando não se é economicamente compensado (do ponto de vista da economia libidinal), pode preparar-se para graves perturbações”. De acordo com o pensamento de NEUMANN, a alienação, no que à psicologia se refere, é instaurada precisamente por essas limitações e privações pulsionais.

Ao exame dos fatores psicológicos que contribuem para a instituição de um regime totalitário, segue-se a questão de colocar-se o liame lógico e psicológico entre alienação e angústia. Freud já havia concluído que a angústia produziria o recalque. Tal processo é que estaria interposto entre o sujeito e suas pulsões inconscientes. Podemos concluir que daí originar-se-ia a alienação na esfera psicológica. A opinião que encontramos em NEUMANN é a de que a angústia verdadeira corresponde à reação diante de perigos concretos externos e a angústia neurótica é produzida pelo eu – por antecipação – com o fito de evitar situações que poderão trazer perigos. Sabemos que essa formulação tem a vantagem de clarear conceitos e possui, pois, visíveis méritos expositivos. Entretanto, não se pode esquecer que, mesmo ali onde o sujeito defronta-se com situações de perigo concreto, vão ser desencadeadas angústias íntimas correspondentes a representações preexistentes, na maior parte das vezes inconscientes. A impossibilidade, determinada pela existência de processos psicológicos defensivos inconscientes, de ter acesso às representações consideradas inaceitáveis desencadeia a angústia. Essa sinaliza, pois, já não um perigo externo, mas a representação inconsciente de um perigo. Não sendo os sentimentos humanos de nenhum modo algo simples, logo se apresenta ao exame um dado ulterior a trazer uma complicação adicional: a efetivação, ainda que no terreno das representações psíquicas inconscientes, de exigências pulsionais pode ter como conseqüência o surgimento de sentimentos de culpa, os quais, é certo, não excluem necessariamente a angústia, antes, como assinalou Freud, são dela derivados pela via do perigo da perda de amor daqueles de quem se depende e a quem se ama. Acrescente-se a isto a circunstância, tantas e tantas vezes lembrada, de que os perigos da vida são muitos e que esses, mais preocupantes se tornam, quando somados às angústias desencadeadas a partir de representações inconscientes, as quais podem influir decisivamente na percepção dos acontecimentos exteriores.

Quando a fonte da angústia - lembra NEUMANN - que Freud (o qual inicialmente a teria apresentado como uma transformação automática da libido impedida de ser descarregada em conseqüência do processo psicológico do recalque), mais tarde introduziu certa modificação em suas opiniões. Face à concepção exposta por outros autores que sustentavam que a fonte da angústia era o medo da morte, argumentou Freud que não se tem, em geral, um modelo da sensação da morte - que se considera apenas suposta – por não encontrar correspondência em qualquer experiência vivida. Estaria reduzido, portanto, em sua concepção, esse pretendido medo à morte a um medo à castração, ao qual estaria vinculada a angústia. Dessas considerações retira NEUMANN a lição de que a angústia poderá ter uma útil função como sinal e aviso a alertar sobre a possível existência de perigos exteriores. Pode, segundo aparentemente crê este autor, quando os aspectos neuróticos forem predominantes (como no dizer de FENICHEL, “uma pulga for vista como um elefante”), tornar-se o homem incapaz de avaliar a situação em que se encontra.


III - A vida em sociedade é penosa; a vida sem sociedade é impossível

A neutralidade científica, tantas vezes apresentada como ideal do investigador, não obstante precise ser persistentemente buscada, parece ser um objetivo bastante esquivo e que em todo momento nos escapa. Não obstante Freud tenha forjado um método terapêutico que obrigatoriamente envolve a crença na possibilidade de melhora e, talvez, de aperfeiçoamento dos seres humanos, em várias ocasiões em sua obra mostra-se bem descrente e pessimista na possibilidade de que os homens venham a alcançar a concórdia e a paz. Possivelmente em uma dessas ocasiões é que tenha expressado seu pessimismo em palavras como “todo indivíduo é virtualmente inimigo da cultura, embora se suponha que ela constitui um objeto humano de interesse universal”. No mesmo pessimista modo de pensar, encontramos linhas adiante a assertiva de que “as criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram também podem ser utilizadas para sua aniquilação”. Sua descrença na capacidade autônoma de organização das massas é apresentada em uma expressão tão franca quanto taxativa como “é tão impossível passar sem o controle da massa por uma minoria quanto dispensar a coerção no trabalho da civilização, já que as massas são preguiçosas e pouco inteligentes”. Admitamos um tal ponto de vista sem discuti-lo, ainda que seja para fins de prosseguir nossas indagações. Tomando-o como válido, na seqüência nos será fácil aceitarmos a alta significação atribuída por NEUMANN da angústia na vida social. Embora nem de longe seja exclusividade de pessoas desprovidas da informação mais trivial, essa emoção é depressa despertada diante das circunstâncias da vida que não podem ser logo compreendidas. E há elementos inconscientes a escaparem até mesmo daquelas pessoas tidas por esclarecidas. A massa, psicologicamente desprotegida, necessita, como é assinalado por vários estudiosos desse tema, identificar-se com lideranças que ofereçam caminhos que, pelo menos, pareçam seguros. Tal massa, que por desconhecimento tem dúvidas especialmente quanto a seu futuro, precisa que lhe ofereçam certezas e poderá com presteza acreditar que ama aqueles que lhas proporcionam.

Desde que Freud chamou a atenção para esse fato, o vínculo afetivo que une os componentes das massas bem como essas a seus líderes é algo reconhecido como de suma significação. As características psicológicas das pessoas que irão desempenhar o papel que está destinado a quem lidera as massas demandam certa atenção. Trata-se em qualquer caso de, tanto quanto possível, identificar traços psicológicos comuns existentes em pessoas que seja levadas a aspirar à condição de liderança e que, especialmente, possam fazer com que as massas sintam-se impelidas, irrefletidamente (sua força não está na reflexão), à identificação com tais indivíduos.

Foi ainda Freud quem apresentou como assertiva quase evidente que, ao discorrer sobre a psicologia individual, torna-se necessário, exceto poucas vezes, abordar a psicologia coletiva, uma vez que não é possível, de um modo geral, “prescindir das relações do indivíduo com seus semelhantes”. Considera, portanto, que nesse sentido “a psicologia individual é, desde seu princípio, psicologia social”. Contrapondo-se à noção de “instinto gregário” assinalou ser manifestação claramente observável a atitude hostil com que o filho mais velho acolhe, a princípio, a intromissão em sua vida de um novo irmãozinho. Qualquer pessoa que tenha mais de um filho, se dispuser da vontade de observar e do tempo necessário, poderá por sua vez perceber a propriedade dessa assertiva. Com mais atenção será possível notar, além disso, que a atitude de aceitação plena não se manifesta nem mesmo da parte dos menores em relação ao primogênito. Claro está que a hostilidade franca não se destina a durar: sucumbe ao recalque e isto torna possível a vida em comum. Esse antagonismo, todavia, brota constantemente aqui e ali. São necessárias atitudes coercitivas dos pais e, mais tarde, esforços às vezes notáveis de todos os seus membros para que flua uma vida em família com poucos atritos. A vida gregária seria, pois, obtida através da ativa superação de tais antagonismos. Haveria aí uma constante tensão entre a imperiosa necessidade de coesão grupal e desejos de satisfação dos próprios impulsos – em cada pessoa – em prejuízo de qualquer outro. É óbvio que a ocorrência de frustrações há de ser freqüente face à necessidade de abrir mão da satisfação dos impulsos, indispensável à vida em comum. Ora, as frustrações desencadeiam sentimentos de raiva, os quais são projetados nas pessoas do ambiente em que se vive, as quais são vistas como responsáveis pela frustração. A percepção desses sentimentos é sentida como angústia, que aciona o processo do recalque, mantendo-os, assim fora dos limites da consciência. Como lembrou Freud, nas condições habituais, e por vários motivos, tal angústia, em geral, se vê suplantada, ao menos à primeira vista, por mútua aceitação e uma identificação de molde a estimular os laços familiares, podendo notar-se, freqüentemente, vínculos afetivos ali onde vigeram sentimentos hostis, por obra de um processo psicológico inconsciente designado como formação reativa.

Freud assinala ser da máxima importância, para a eficácia dessa transformação de hostilidade em solidariedade, a crença em cada um na existência de uma forma de tratamento igual e justa para todos. Cada qual pode considerar (e isto às vezes é efetivamente expresso), que na impossibilidade de ser ele próprio o predileto, será preferível ninguém o ser. O fracasso dessa expectativa é visto, vez por outra, e tem sido tema de extraordinárias realizações ficcionais que – não apenas por isso, mas, também, por isso – parecem destinadas a permanecer cativando a atenção e o interesse dos leitores. Seu paradigma é a lenda de Caim e Abel, a qual, milenar que é, segue atraindo a atenção em todas as variações que a imaginação lhe pode emprestar.

A satisfação da demanda de tratamento igualitário, de seu lado, atingindo êxito, como lembra Freud, encontra expressão no companheirismo e na amizade fraterna, que seriam derivados bem-sucedidos – transformados em seu contrário – da inveja uma vez existente. Aí também estaria expressa a expectativa infantil de que ninguém haveria de sobressair-se, todos sendo e obtendo o mesmo valor. Concedem-se, dessa forma, a cada um e a todos os mesmos direitos. Recusando-se privilégios, pela superação de certas expectativas infantis, poderão ser lançados os fundamentos da vida adulta. De um ponto de vista psicológico, é dessa matriz que se forma os sentimentos que conduzem à noção de justiça social, como oportunamente assinalou Freud.

Enraízam-se, destarte, em certa etapa do desenvolvimento, as aptidões para uma vida coletiva que contemple a liberdade com respeito à lei, que é a conseqüência, como processo da evolução psíquica, do reconhecimento dos demais como pessoas. Pressuposta está que – para o final desse primeiro período de desenvolvimento psicológico, ao qual Freud denominou de fase oral, quando o pequeno ser principia a perceber que sua mãe é um ser independente dele e, mais adiante, que há outras pessoas no mundo – seja ultrapassada satisfatoriamente a etapa de absoluta dependência da pessoa em relação a seus maiores, especialmente da figura materna.

É quando vai se desenvolvendo a próxima etapa, denominada fase anal, que se vai adquirir a noção de se ser alguém claramente distinto da mãe, que progride a aquisição da linguagem, que se obtém o controle dos esfíncteres e, concomitantemente, aprende-se da mesma forma que é possível controlar as pessoas adultas do ambiente mediante choro, riso, chegando até ao domínio da linguagem. Uma criança, nessa fase, todavia, não mede - como alguém plenamente desenvolvido - os limites de suas possibilidades, observando-se o que Freud denominou de onipotência dos pensamentos, pela qual pode – imagina a criança – exercer controle sobre seu ambiente." (continua)

Ronaldo Brum (in Tavares, J. Giusti. O totalitarismo tardio - o caso do PT).