O processo do impeachment deixou de ser a análise dos graves fatos
praticados pela presidente e minudentemente expostos no pedido. Na imputação
consta que houve a omissão ao não determinar a presidente a responsabilidade de
subordinados, diretores da Petrobrás, ciente dos desmandos presentes na
estatal, com infração ao artigo 9.º, item 3, da Lei n.º 1.079/50, que descreve
conduta omissiva: “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus
subordinados, quando manifesta em delitos funcionais”. É comezinho poderem
as condutas ser comissivas ou omissivas.
Tipificam-se também infrações à Lei de Responsabilidade Fiscal, ao
praticar ações que comprometeram a saúde financeira do País, levando à crise
econômica de hoje, com 1,5 milhão de desempregados, inflação superior a 10% e
perda do grau de investimento. Repita-se: ao recorrer por longo tempo, e em
valores astronômicos, a empréstimos nos bancos oficiais para cobrir gastos do
governo, não só em programas sociais, mas também para financiar grandes
empresas com juros subsidiados, a presidente infringiu outro dispositivo da Lei
do Impeachment, qual seja o descrito no artigo 10.º, 9: “ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de
operação de crédito com qualquer dos entes da administração indireta”.
O mais grave foi ter-se deixado de registrar a dívida de R$ 40 bilhões
como despesa, incidindo em falsidade ideológica, pois se transformou,
falsamente, dívida em superávit primário, ilaqueando a todos, prometendo
crescimento de 4% em 2015. Ainda se tem a coragem de dizer ter agido em estado
de necessidade, para pagar benefícios sociais, causa que excluiria o crime se
não houvesse outro caminho senão a reconhecida prática delituosa, sendo
requisito essencial a inevitabilidade do meio adotado. É o que se dá no furto
famélico. No caso, todavia, não apenas existiam outras condutas para ter
numerário, como constituíam essas outras vias as corretas: cortar gastos,
eliminar desonerações tributárias, impedir a corrupção.
E qual o estado de necessidade haveria ao se deixar de registrar
déficit, para falsear superávit primário?
Mas tudo se apequenou. A propaganda petista repete por via de alguns dos
juristas palacianos e intelectuais de encomenda que se trata de um golpe! É
mais uma farsa. O impeachment virou moeda de troca entre culpados. Primeiramente, entre
Planalto e Eduardo Cunha, para garantir impunidade mútua. Agora, entre Planalto
e Renan Calheiros.
Tão logo o Supremo Tribunal Federal entendeu que uma decisão da Câmara
dos Deputados de admitir a acusação contra a presidente da República por 2/3
dos seus membros – ou seja, pelo voto de 342 representantes do povo – pode ser
anulada no Senado, onde estão os representantes dos Estados, por maioria
simples – isto é, a maioria dos presentes, desde que estejam 41 senadores,
portanto, por 21 senadores –, o presidente do Senado passou a ser adulado como
o guardião do mandato de Dilma.
No dia seguinte foi chamado a almoçar com a presidente. Do ágape, já bem
alimentado, Renan Calheiros veio receber intelectuais do PT, perante os quais
disse o que queriam ouvir no sentido de não haver uma franja de indício de
crime de responsabilidade.
Na mesma semana em que Renan Calheiros se tornou o arauto da
improcedência do impeachment, foi ele objeto de investigação autorizada pelo
Supremo Tribunal, pois seus sequazes, deputado Aníbal Gomes e Sérgio Machado,
ex-presidente da Transpetro, sofreram busca e apreensão em suas residências.
Houve busca e apreensão também na sede do PMDB de Alagoas, presidido por
Calheiros, que por sua vez veio a ter decretada a quebra do seu sigilo
telefônico, fiscal e bancário.
Nova troca de impunidades no horizonte. Diante de cenas explícitas de
malandragem, a população fica descrente dos Poderes Executivo e Legislativo.
Contudo, se ainda se acreditava no Judiciário, o contorcionismo constitucional
do Supremo acerca do rito do impeachment criou grave insegurança.
Sem haver nenhum princípio inspirador da possibilidade de uma maioria
simples do Senado anular a determinação de 2/3 da Câmara de se instalar o
processo, foi-se além dos limites de interpretação sistemática ou finalística,
para em criatividade livre contrariar a clareza dos textos constitucionais e
legais.
O artigo 51 da Constituição diz competir privativamente à Câmara dos
Deputados autorizar, por 2/3 de seus membros, a instauração de processo contra
o presidente. E no artigo 86 edita-se: admitida a acusação contra o presidente
da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a
julgamento perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
Nesse artigo 86 há determinação precisa: admitida a acusação pela Câmara
dos Deputados será o presidente submetido a julgamento. Assim, é cogente
a Constituição ao dizer “será submetido a julgamento”, conforme,
aliás, é disciplinado também no Regimento Interno do Senado (artigos 377 a
381).
Nada se prevê quanto à apreciação para se instaurar o processo no
Senado, pois já foi admitida a acusação pela Câmara, em decisão similar à
sentença de pronúncia nos casos de júri. Requer-se apenas a formulação de
libelo por comissão processante, que intimará o presidente. Ao plenário cabe
somente a decisão final, absolvendo ou condenando.
O Senado, admitida a acusação em votação qualificada de 2/3 dos
deputados, não pode, pela via expressa de apreciação não prevista no Regimento
do Senado (artigo 380), por maioria simples, arquivar o processo.
Como confiar no Supremo diante de construtivismo constitucional dessa
grandeza?
Aristides Lobo, político e jornalista, em 1889 escreveu que o povo
bestificado assistiu atônito à proclamação da República. Agora o povo
bestificado assiste atônito à destruição da República. O ano novo começa velho.
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