quinta-feira, 15 de março de 2012

Notas sobre a autonomia e a emancipação

Creio que podemos nos inspirar, inicialmente, em velhas lições da tradição rabínica para entender o processo formativo de um professor. Nilton Bonder, em A Cabala da Inveja, faz uma discussão sobre a humildade e o seu significado metafísico, e mais, sobre a maneira como se dá o desenvolvimento desta qualidade e o papel da relação mestre/discípulo nesta construção. Tudo começa, segundo ele, na iniciação.

“Por iniciação compreende-se o processo de “ignição” da alma de um indivíduo. Uma vez dada a partida, sua trajetória se inicia numa busca incessante com o objetivo de coadunar percepção e realidade. Esta ignição é dada a partir da reverência que, independentemente de qualquer tradição ou instituição religiosa, se tem por um mestre.

Quem é o mestre?

O mestre é o exemplo que nos faz buscar compreender a linguagem religiosa, posibilitando uma segunda, terceira, ou quantas oportunidades de entendimento se fizerem necesárias sem descartá-la. O mestre é, portanto, um facilitador da comunicação religiosa. O discípulo, ou aquele que respeita e reverencia o mestre, ouve nas suas palavras e vê nas suas atitudes muitos elementos que lhe escapam à compre-ensão. Mas, por amor e respeito a este mestre, ele busca, muitas vezes por toda uma vida, o significado e a razão por detrás daquelas palavras e atos, como filhos que reconhecem de seus pais a sapiência, transcorridos muitos anos após algo ser dito ou feito. Tal resgate de sapiência deve-se apenas parcialmente à essência do que é dito ou feito; a parcela restante é consequência da reverência e do amor que nutrimos pelos pais – como se nos recusássemos a aceitar que alguém tão especial como um mestre pudesse dizer algo trivial, ou agir de maneira leviana. Com o tempo, passamos a saber distinguir entre o que foi de fato trivial ou leviano e o que nos deixou realmente intrigados. Este elemento de perplexidade e intriga é que nos permitirá compreender coisas que, no caso de sua ausência, deixaríamos passar pelo crivo de nosso interesse e concernência. Portanto, o mestre é indispensável no processo de iniciação, pois é através dele que absorvemos noções concretas que só o tempo e o amadurecimento nos permitem compreender em toda a sua profundidade e sutileza.”

Nilton Bonder prossegue em sua narrativa mística para explicar como se internaliza a idéia do temor a D'us, na curiosa grafia do Nome do Eterno.

“O temor a D'us é um conceito difcil de ser compreendido sem que se tenha conhecido alguém que temesse a D'us. Só assim entendemos que esta não era uma pessoa com medo de D'us, mas alguém muito íntimo de D'us. Percebemos que não era um prisioneiro de dogmas, mas alguém que conseguia experimentar uma praxis em seu cotidiano altamente influenciada, ou quase que totalmente gerida, a partir de princípios abstratos e sutis. E, por conseguir desapegar-se da dimensão do óbvio e do lugar-comum, enxergava tão mais longe que conseguia até observar com distanciamento o óbvio e o lugar-comum. Atingira a sapiência.

Para alguém poder chegar ao “temor a D'us” deve ultrapassar o culto ao deus da
recompensa, ao deus da necessidade imediata, ao deus do poder, ao deus da veneração pes-soal, e conseguir eliminar os elementos infantis de sua percepção simbólica de D'us. Deveria realizar o mesmo com a palavra temor e ultrapassar o temor do outro, o temor a si e o temor da dor, para poder se permitir sentir temor somente ao que é próprio se sentir temor. Só assim seus temores podem transformar-se em zelo ou escrúpulo, modificando integralmente a natureza do que antes percebíamos como temor. Neste sentido, temores não são sentimentos paralisantes mas, ao contrário, extremamente mobilizadores. São a coroa da sapiência.

A humildade, no entanto, tem nesta capacidade de perceber as verdadeiras relevância, apenas seu fundamento – seu tornozelo (na metáfora judaica). Isto porque a humildade é a interiorização profunda desta capacidade, de maneira que se transforma não apenas em exercício estético desta faculdade, mas num modo de vida. Em outras palavras, o humilde já consegue viver o “temor a D'us” sem ter que recorrer ao ar de sapiência ou à consciência orgulhosa de ser sábio.

Esta é a razão de a tradição judaica reconhecer que, embora existam muitos sábios neste mundo, os aprendizes da humildade são raros, e que existem apenas 36 humildes (Segundo a tradição judaica, cada geração é preservada pela existência de 36 justos. Esta idéia é derivada do versículo de Isaías (30:18), no qual a palavra ló – por Ele - é tomada por seu valor numérico, que é 36)

Tornar-se sábio é poder erradicar as características do tolo de dentro de nós; tornar-se humilde é erradicar os traços do perverso de cada um de nós. O sábio elimina a dimensão do ciúme; o humilde elimina a dimensão da inveja. Ao humilde o seguinte é reservado, segundo as Escrituras (Prov. 22:4): “A retribuição ao humilde é o temor ao Eterno, as verdadeiras riquezas, as verdadeiras honras e a verdadeira vida”.

Para explicar as diferenças entre o tolo e o sábio, Bonder lança mão de prescrições hauridas na Ética dos Ancestrais:

“Há quatro disposições na gradação da raiva: 1) aquele que é fácil de provocar e também fácil de apaziguar (o que há de negativo neutraliza-se com o positivo); 2) aquele que é difícil de ser provocado e também difícil de ser apaziguado (o que há de positivo neutraliza-se com o negativo); 3) aquele que é difícil de ser provocado e fácil de ser apaziguado (este é o sábio); 4) aquele que é facilmente provocado e dificilmente apaziguado (este é o perverso).”

O tolo é representado por quem é provocado e também apaziguado com dificuldade. Este sujeito entende que não devemos nos submeter à provocação com facilidade. Tem a impressão de já ter formulado em seu interior uma postura através da qual percebe não existirem muitas situações na vida que possam provocá-lo. No entanto, isto é uma postura racional não interiorizada, pois, uma vez provocado, nãoconsegue encontrar desculpas ou formas de sublimar esta provocação. É designado por tolo, pois compreende apenas parcialmente o esforço a que se submete para não se deixar afetar. Representa em muitos casos aqueles que, reprimidos socialmente ou em sua educação, ficam prisioneiros de seus impulsos e de sua ética. Discutem e teorizam, mas não conseguem viver o que aparentemente sabem e acreditam.

A situação do perverso e do sábio é evidente. O primeiro perde-se no pantanal do rancor, enquanto o último passeia pelo pomar. O sábio tem uma leitura profunda da realidade que por si só torna difcil a provocação e que também lhe dá capacidade de rapidamente ajustar-se às situações da vida e de se controlar com facilidade.

Na dimensão afetiva encontramos o desejo simbólico de ódio em relação a alguém, com quem nos desentendemos com facilidade, e que estamos sempre propensos a criticar e julgar com desconfiança e malícia. Da mesma forma, dificilmente o desculpamos ou deixamos passar qualquer falta por ele cometida. Estamos no mundo da inveja que redunda em arrogância. Assumimos a postura do perverso e mergulhamos na rixa. Conservamos ódios por longos períodos, alguns por toda a vida.”

Telúricas ligações com conceitos ancestrais comuns talvez aproximem um rabino (como Nilton Bonder), e um pensador contemporâneo dos maiores do século XX (T. W. Adorno). Sente-se neste último a presença forte da tradição judaica no que ela tem de mais memorável para a história humana. Adorno também transitou nas sutilezas de Kant (o mais expressivo pensador sobre o Iluminismo), e nas vigorosas análises de Marx e de Freud. Profundamente preocupado com a Educação, principalmente após testemunhar e sofrer os efeitos da maior demonstração de barbárie da história humana (o período do nazi-fascismo), Adorno se perguntava sobre a questão dos fins da educação e o papel da autonomia. Em sua reflexão surgirá, com naturalidade, pontos referentes ao lugar do professor no cumprimento de sua missão civilizatória. No dizer de Valerio Rohden (in O totalitarismo tardio), obra referida na bibliografia já colocada disponível,

“Adorno definiu a educaçãonão como a tal de formação do homem, porque ele questiona a qualquer um esse direito, nem como transmissão de conhecimentos, mas como a produção de uma consciência reta. Isto significa desenvolver a capacidade para deci-sões próprias conscientes – uma maioridade de consciência. Maioridade significa tornar consciente ou, então, racionalidade, entendida como consciência da realidade, que inclui um momento de adaptação, pela qual o educando é preparado para encontrar o seu caminho no mundo, mas que se torna problemático quando a educação se reduz a uma questão de adaptação, de produzir um well adjusted people, que reproduz inclusive o que a realidade tem de má. Uma educação racional teria que ser capaz de reunir adaptação e resistência. Por isso racionalidade significa maisdoque asimples capacidade formal de pensar. Consciência e capacidade de pensar significam, mais profundamente, capacidade de fazer experiências com o pensamento. Esta identificação entre educação e experiên-cia termina num identificar-se com uma educaçãopara a maioridade, mas também com uma educação para a imaginação ou, nas palavras de Goethe, com uma educação para a originalidade.

Um tal sentido artístico de educação, de um indivíduo capaz de plasmar a si e seu mundo pela capacidade de pensar dista de dois extremos: de supor que a autonomia aí pensada seja produto de uma razão pura ou de um espírito absoluto que não leve em conta a realidade – conquanto só pelo pensamento se possa determinar uma prática correta – e, de outro lado, de supor que a educaçãoconsista num darwinismo que vê seu maior êxito na sua capacidade adaptativa ao mundo dado desde a mais tenra infância. Uma tal concepção adapatativa já não funciona tampouco como educação para o trabalho. O simples adestramento torna-se insuficiente num mundo em acelerada mudança, que requer uma capacitação para a flexibilidade, para uma conduta madura e crítica. Numa tal situação a capacidade de pensar para reorientar-se no mundo torna-se fundamental. Ou, como dizia Adorno, esta combinação de treinamento imediato e horizonte de orientação é algo que praticamente ainda falta em toda a nossa formação profissional ulterior.

Uma outra forma de glorificação da heteronomia, que torna a questão da maioridade um problema mundial, é a da educação autoritáriam como Adorno pôde verificar durante um estágio na então União Soviética. Logo, esta questão é um fenômeno que transcende os sistemas políticos. Infelizmente, lamenta Adorno, a literatura pedagõgica, em sintonia com um mundo que pede uma educação para a menoridade, dá mais importância ao autoritarismo do que à questão da maioridade. A autonomia, porém, não substitui nem ex-clui a autoridade.Diz Adorno que o momento da autoridade é pressuposto como um momento genético do processo da maioridade, do qual, porém, não se pode fazer uso abusivo. A presença da autoridade do professor tem que se fazer sentida pelo aluno como um guia para a sua própria emancipação. O professor detém uma superioridade inicial, que não pode ser subestimada mas que se cumpre quando o aluno aprendeu a lição, isto é, sabe continuá-la por si. Isto significa que não pode haver nenhuma verdadeira escola sem professor, mas que, por outro lado, o professor tem que ter clareza de sua tarefa principal consiste em tornar-se supéfluo. A autonomia, assim, é compatível com aautoridade, mas não com o autoritarismo e com a dispensa prematura de autoridade, levando a uma maioridade aparente. O que remete à questão da co-gestão escolar, que tanto pode constituir-se numa fachada ilusória de maioridade, denominada por Adorno de brincar de autonomia, como pode, se bem conduzida, despertar uma forte motivação de aprendizagem.

Mas como falar de educação para aautonomia, para a criatividade, para a participação consciente e para o pensamento próprio num mundo que prima pelo culto da menoridade, da adaptação, da heteronomia e da babárie em todas as suas formas de agressão e agessividade, a ponto de haver pensadores que acham que se uma vez vencesse apaz no mundo, o homem teria de inventar outras formas de agressividade em substituição às guerras? (Coisas como, por exemplo, o esporte de competição).

Adorno adverte contra qualquer tentação de otimismo, enfatizando o perigo que corremos, simplesmente pela razão de que não somente a sociedade, em sua forma atual, mantém os homens menores, mas precisamente porque toda tentativa séria, de movê-los para a maioridade, está exposta a incríveis resistências, e porque tudo que não presta no mundo encontra logo seus loquazes advogados, que querem provar ao outro que justamente isso que se quer já está superado há tempos, ou não é mais atual, ou é utópico. Por isso, a vontade de mudança tem de partir do reconhecimento da própria fraqueza.

Aprendamos de vez esta lição e admitamos que a autonomia é o término distante e o sempre a caminho do processo educativo. Se a autonomia é o sentido da educação, ela se apresenta como uma idéia prática que nos exige moralmente.

Aspecto fundamental é o vínculo entre democracia e autonomia. A maioridade é uma exigência da democracia. Nem a democracia pode funcionar sem sujeitos autônomos, nem a maioridade pode exercer-se fora de uma sociedade livre ou esclarecida. Mas, por acaso, vivemos numa sociedade esclarecida? Kant, de uma forma não resignada, respondera que não (viveríamos, todavia, segundo ele, numa época em vias de esclare-cimento). Para Adorno, hoje, tornou-se difcil dizer que vivemos numa época em vias de esclarecimento, porque nenhum homem na sociedade atual pode existir eetivamente de acordo com a sua própria determinação. O problema crucial da maioridade converte-se então na questão de como a gente pode opor-se a essa institucionalização da heterono-mia. O mecanismo da menoridade tornou-se planetário, como uma autonomia ao avesso: “o mundo quer ser enganado”, dizia Adorno. Uma crítica imanente tem que tornar isso claro, já que nenhuma democracia normal pode permitir-se ser contra o esclarecimento.

Toda teoria da educação de Adorno parece-se com um aggiornamento do texto de Kant – Que é o Esclarecimento? Segundo Kant, o esclarecimento é a tomada de consciência de uma menoridade de que se tem culpa. Essa é uma culpa não de tipo proposital, como um crime, mas do tipo da omissão, que como tal pode ser-nos imputada. A culpa que o Escla-recimento lhe atribui é a da falta de ousadia e a preguiça de não pensar por si próprio, sem a direção de um Outro. Por preguiça e covardia o homem prefere o tutoramento e a menoridade à maioridade, em relação à qual Kant tomou como lema uma frase de Horácio: “Ousa saber!” O Esclarecimento significa a coragem para dar opasso para a maioridade, que os tutores e o mundo consideram arriscado.

Que essa tarefa de esclarecer-se, como passo para a autonomia, tem um sentido moral pode ver-se tanto a partir do contexto dos versos de Horácio, do qual Kant tirou o seu lema, como também a partir da sua obra Doutrina da Virtude. Aí fica claro que a autono-mia não se identifica com algo que o homem quer espontaneamentei, num sentido natu-ral, como quando busca por si a felicidade; mas tem o sentido de uma tarefa, no sentido de que ele deve buscar a sua liberdade e o desenvolvimento de suas aptidões, sem as quais não pode optar racionalmente por umaforma própria de vida. Nas palavras de Kant, é-lhe um dever conseguir pelo seu esforço elevar-se sempre mais da rudeza de sua natureza, da animalidade, à humanidade, unicamente pela qual ele é capaz de estabelecer-se fins; completar a sua falta de saber pela instrução e corrigir os seus erros; e isto não apenas a razão técnico-prática lhe recomenda para seus fins ulteriores, mas a razão moral-prática ordena-lhe incondicionalmente e torna-lhe este fim um dever, para tornar-se digno da humanidade que o habita.

Em acordo com esta concepção da razão moral como fundamento do dever de trabalhar pela autonomia está aquilo que Adorno acrescenta a uma observação feita por Hellmut Becker (de que “reflexões e racionalidade não são por si nenhuma prova contra a barbá-rie”). A isto Adorno propõe não tomar a reflexão in abstracto, que como tal pode servir tanto ao cego domínio quanto ao seu contrário. Acrescenta que “estas reflexões têm que ser elas mesmas transparentes em seu fim humano”. O fim humano vincula-se à razão moral-prática. Uma razão técnica e neutra não está comprometida com fins humanos.

Os equívocos a que interpretações do Iluminismo têm levado não tomam em conta essa diferença. E levam a perguntas como a segunte, colocada por Salinas Fortes: “Ou será, como diria um nouveau philosophe, desses do nosso século mesmo, que não estaria nos sonhos de dominação racional dos homens do Iluminismo já presente o germe nefando do totalitarismo? Talvez. Ou ainda: não seria a própria formulação desse ideal emancipatório, sob a égide de uma Razão dominadora, uma nova mitologia ilusória e perigosa trazendo necessariamente em seu bojo consequências desastrosas?” Kant, afinal, fundou sua concepção de uma razão crítica para mostrar que essa razão dominadora não faz parte do conceito de razão estrita, centrada na liberdade, e que como tal não é nem arrogante nem dominadora, mas democrática. Foi, antes, a crença nesse sentido de razão humana que levou Salinas a escrever no início de seu livro: “Revalorizar o homem significa antes de tudo encará-lo como devendo tornar-se sujeito e dono de seu próprio destino; é esperar que cada homem, em princípio, pense por conta própria”.

O SEGREDO DA IDÉIA DE EDUCAÇÃO

Segundo Kant, na idéia de educação “esconde-se o grande segredo de perfeição da natureza humana”. Talvez ninguém tenha entendido melhor a educação do que Kant, porque detectou o seu segredo. Este segredo, não mencionado aí textualmente, é a idéia de autonomia humana. Podemos dizer que esta idéia é capaz de integrar os diversos momentos da educação que ele detalhou: a disciplina, a cultura, a civilização e a moralidade, fundando-os neste último momento. Porque é pela moralidade que o homem pode conceber-se como fim para si próprio, capaz de pela razão dar um sentido a sua própria vida.

Quero chamar a atenção para o aspecto de universalidade e de senso crítico contido no termo “idéia”, para mostrar também que Kant pensou a educação com maior senso de realidade do que Rousseau, que inspirou fortemente sua teoria. Kant deu extraordinária importância à vinculação entre razão e experimento educacional. Além disso, não achou sua concepção menos correte ante os obstáculos, que de modo algum impedem a sua realização. As crianças devem desde o início aprender, para além de amar os outros, a desenvolver disposições cosmopolitas. Ou seja, o interesse que elas desenvolvem para consigo e para com aqueles em cuja companhia cresceram tem de incluir um interesse pelo Bem da humanidade. “Elas devem alegrar-se com o sumo bem do mundo, ainda que ele não inclua nenhuma vantagem à sua pátria ou ganho próprio”. Ao senso de interesse pelo bem da humanidade vincula-se o despertar de um senso crítico, no sentido teórico de conhecimento social e no sentido prático de agir em favor dos que são vítimas das contingências da sociedade. “Deve-se mostrar ao adolescente que a desigualdade dos homens é uma instituição que surgiu da busca de vantagens de um homem sobre outro. A consciência da igualdade dos homens, aolado da desigualdade civil, pode ser-lhe ensina-da pouco a pouco”. Que esta idéia de educação, portanto, não é utópica no sentido pejorativo do termo, não impede que seja classificada de utópica em seu sentido positivo: que ela nos ensina a medir-nos, não em relação a outros homens, despertando com isso sentimentos de inferioridade ou superioridade, mas em relação a um parâmetro absoluto, como são os conceitos da razão, funcionando como arquétipos ou originais, despertando sentimentos como a humildade, que “nada mais é do que uma comparação de seu valor com a perfeição moral”.

A plausibilidade deste ponto de partida depende da justificabilidade do termo “idéia”, na concepção da educação como idéia. A idéia é a representação específica de um projeto de razão. Enquanto o entendimento produz categorias com as quais compreende a realidade dada, a razão concebe a prática inexistente, mas que pode e deve existir, através de idéias.Uma idéia contém a representação de uma perfeição prática. “Uma idéia não é senão o conceito de uma perfeição que ainda não se encontra na experiência”. Que ela ainda não se encontre nesta significa que ela ainda pode vir a existir na mesma, desde que seja concebida corretamente, isto é, de acordo com as faculdades humanas. Neste sentido a idéia é praticamente verdadeira. As ações ou regras que aseguirem poderão ou, segundo o caso, deverão passar a existir. Os exemplos de Kant são os da idéia de uma república regida segundo regras de justiça e aidéia de uma educação como desenvolvimento de todas as disposições naturais do homem. Podemos entender o que subjaz a essa concepção, de um desenvolvimento dessas disposições, com base numa interpretação que Kant fez do princípio supremo da ética estóica: “Vive em conformidade com a natureza!” Viver em conformidade com a natureza significa; não viver de acordo com os instintos da natureza, mas de acordo com a idéia que a funda. Viver de acordo com uma idéia significa conceber racionalmente esse fundamento e adequar sua vida a essa representação não dada da razão. Pensar uma idéia como fundamento da natureza, como as disposições naturais que a educação deve desenvolver, significa também perguntar pela sua verdade: em que medida a natureza corresponde a essa idéia, isto é, pode desenvolver-se em sua direção?

A forma de a natureza realizar-se no homem é a razão. Em decorrência disso cabe à educação a tarefa essencial do desenvolvimento da razão, a partir da qual o homem pode realizar-se autonomamente. Ao homem não bastam os instintos, graças aos quais os animais realizam-se espontaneamente segundo leis da natureza. Os animais forma cuidados por uma razão estranha a eles. “Mas o homem necessita uma razão própria. Ele não tem nenhum instinto e tem que fazer ele mesmo o plano de sua conduta”. Ou seja, para que o homem alcance seu próprio destino, necessita de um conceito desse destino, isto é, daquilo que bom para ele e a partir de si mesmo. O modo de aeducação cooperar com esta conquista da capacidade de autodeterminação da própria vida consiste em submeter a natureza humana a regras, pelas quais ela vai-se cultivando, isto é, alargando suas inclinações; vai se disciplinando, isto é, impedindo que ele proceda de maneira bárbara e, enfim, moralizando-o, isto é, buscando fins que possam contar com o interesse dos demais. Este submetimento, inicialmente exterior, da natureza humana a regras significa que uma geração educa a seguinte. Para que ela, no entanto, tenha êxito e não se torne heterônoma, tem de exercer-se com uma consciência esclarecida, no sentido deque lhe cabe ensinar o aluno a aprender a pensar, o que tem a ver com uma forma de proceder segundo princípios da razão, dosquaisbrotam todas as ações, que são originalmente determinações racionais de nossa vontade.Pertence ao conceito de ação asua vinculação com um pensamento próprio, pelo qual a pessoa concebe de uma forma original o que quer fazer, sem imposição externa de sua forma de vida.

A educação para a capacidade de pensar é a fórmula pela qual se compreende a base de uma educação para a autonomia, e é a razão pela qual a questão do esclarecimento está presente em todas as obras da filosofia crítica de Kant. O esclarecimento, como capacida-de de servir-se de sua razão sem adireçaõ deum outro, opõe-se ao adestramento, cujo termo alemão segundo Kant provém do inglês to dress (vestir). O adestramento envolve, se não um nível animal de desenvolvimento, uma simples fachada de educação. Pois “com o adestramento ainda não se conseguiu nada; trata-se sobretudo de que as crianças aprendam a pensar. Este culmina em princípios, dos quais todas as ações brotam”. A in-sistência neste ponto deve-se a que o esclarecimento como forma de pensar autônomo tem um significado realmente muito maior do que aparenta, na medida em que a capacidade de pensar torna-se princípio da prática, já que a prática brota de idéias como projetos racionais de vida humana.

A tarefa da educação comensura-se com a vida humana, como parte da ação pela qual o homem enfrenta os obstáculos jamais superáveis, hoje ainda mais desafiadores, contra o seu próprio vir-a-ser humano. “O homem só pode tornar-se homem pela educação”. Assim sendo, pergunta-se o próprio Kant: “Até quando deve durar a educação?” E ele responde: “Até o o momento em que a própria natureza determinou que o homem mesmo a conduza.” Diante disso, poderíamos dizer que a educação tem que ter a percepção dos seus limites, que são os limites domomento em que alguém se converte de objeto em sujeito da educação. Al lidar com seres conscientes de sua liberdade, ela, no mínimo, tem de mudar seus métodos, de transformar o ensino numa paulatina participação do aluno na determinação do processo em que ele se encontra envolvido. Mas como na sociedade tudo tende a conspirar para manter os homens na menoridade, o último estágio da educação, que deveríamos ter sempre diante dos olhos, econtra-se sempre muito distante. Se aeducação ficar apenas nos seus estágios prévios da disciplina, da cultura e da civilização, sem se preocupar em ir além deles, buscando criar sujeitos que se autode-terminem, ela se nega a si própria. Sob este aspecto, Kant em certos momentos foi muito pessimista, como ao escrever: “Vivemos no momento do disciplinamento, da cultura e da civilização, mas nem de longe ainda no momento da moralização. Na situação atual dos homens podemos dizer que a felicidade dos Estados cresce com a miséria dos homens”. O perigo de uma educação que não dá o último passo é que ela se torne uma educação autoritária, para o adestramento, para a adaptação e para a dominação, naquele sentido desvirtuado de uma razão tecnocrática. Mas mesmo que essa educação para a autonomia não fosse praticada, isto não a invalidaria como idéia correta de educação, porque a razão não se caracteriza pela reprodução do que é, e sim, pela produção do que ela concebe como devendo-ser, sobre a base de princípios de liberdade, justição e desenvolvimento das capacidades humanas. O que deve-ser guia-se por aquilo que os homens de um ponto de vista prático-objetivo querem como o melhor para si, sem cuja liberdade e vontade eles nada são.

A razão, como opensamento, não é algo abstrato: ela é prática e ativa, lutando sob a forma da virtude contra os obstáculos que enfrenta para estabelecer-se. O homem não conquistaria sua racionalidade sem essa luta, da qual a educação faz parte.O homem não é um ser moral por natureza. “Ele torna-se um ser moral quando pela sua razão eleva-se aos conceitos de dever e de lei”. Não se trata de conceitos estranhos, como o de uma lei que o coagisse externamente. Isso pode ocorrer nas fases preliminares da educação, em que o aluno é tutorado. Ao nvel de uma educação esclarecida, o homem segue leis que ele mesmo por sua razão se dá, ou às quais pode dar seu livre assentimento. Se a educação preparar o homem para a sua autonomia, todas as heteronomias que ele enfrentar num mundo que tenta subjugá-lo e mantê-lo em sua menoridade, não serão obstáculos intransponíveis, contanto que a educação não o ensine a resignar-se perante elas e não o converta em instrumento para fins estranhos.

As funções do professor - Bertrand Russel

"O ensino, mais do que a maioria das outras profissões, transformou-se, durante os últimos cem anos, de uma pequena profissão altamente especializada referente apenas a uma minoria da população, num grande e importante ramo do serviço público. Essa profissão tem uma grande e honrosa tradição, que se estendeu desde o raiar da história até tempos recentes, mas qualquer professor do mundo moderno que se permite ser inspirado pelos ideais de seus predecessores está sujeito a perceber claramente que a sua função não é ensinar o que ele acha que deve ensinar, mas disseminar crenças e preconceitos que possam ser considerados úteis por aqueles que são os seus empregadores.

Em outras épocas esperava-se que um professor fosse um homem de conhecimento ou sabedoria excepcionais, em cujas palavras os homens faziam bem em atentar. Na Antigüidade os professores não constituíam uma profissão organizada, não se exercendo controle algum sobre o que ensinavam. É verdade que, com freqüência, eram punidos, depois, pelas suas doutrinas subversivas. Sócrates foi condenado à morte e afirma-se que Platão foi lançado à prisão, mas tais incidentes não interferiram com a divulgação de suas doutrinas.

Qualquer homem que possua o impulso genuíno de professor mostrar-se-á mais ansioso de sobreviver em seus livros do que em sua própria carne. Um sentimento de independência intelectual é essencial ao desempenho adequado das funções do professor, já que a sua tarefa é instilar o que sabe a respeito do conhecimento e da razoabilidade no processo de formar a opinião pública. Na Antigüidade, desempenhava ele livremente as suas funções, exceto quando se verificavam intervenções espasmódicas e inefetivas por parte de tiranos ou de multidões. Na Idade Média, o ensino tornou-se prerrogativa exclusiva da Igreja Católica, tendo como resultado pouco progresso, quer intelectual, quer social. Com o Renascimento, o respeito geral pela cultura trouxe de novo considerável grau de liberdade ao professor.

É verdade que a Inquisição obrigou Galileu a retratar-se e queimou Giordano Bruno na fogueira, mas ambos já haviam realizado o seu trabalho antes de serem punidos. Instituições tais como as universidades permaneceram, em grande parte, nas garras dos dogmatistas, resultando daí que a maioria do melhor trabalho intelectual foi feito por homens de cultura independente. Na Inglaterra, principalmente, até quase o fim do século dezenove, dificilmente se encontravam homens verdadeiramente proeminentes, com exceção de Newton, que estivessem ligados a universidades. Mas o sistema social era tal que isso pouco interferia com as suas atividades ou a sua utilidade.

Em nosso mundo altamente organizado, deparamos com um novo problema. Algo que se chama Educação é ministrado a toda gente, geralmente pelo Estado, mas também, às vezes, pelas Igrejas. O professor transformou-se, assim na grande maioria dos casos, num servidor cortês obrigado a executar as ordens de homens que não têm a sua cultura, não dispõem de experiência quanto ao trato da juventude, e cuja única atitude com respeito à educação é a de um propagandista. Não é muito fácil de ver-se de que maneira podem os professores, em tais circunstâncias, realizar as funções para as quais estão especialmente adequados.A educação pelo Estado é obviamente necessária, mas, de maneira igualmente óbvia, envolve certos perigos contra os quais deve haver certas precauções.

Os males que há a temer puderam ser vistos, em sua plena magnitude, na Alemanha nazista, podendo, ainda hoje, ser observados na Rússia. Onde tais males prevalecem, homem algum pode ensinar, a menos que subscreva um credo dogmático que poucas pessoas de inteligência livre são capazes de aceitar sinceramente. Não apenas deve ele subscrever um tal credo, mas, ainda, ser indulgente diante de abominações, abstendo-se de manifestar suas opiniões a respeito de assuntos correntes. Enquanto tal homem estiver apenas ensinando o alfabeto e a tabuada, os quais não despertam controvérsias, os dogmas oficiais não deturpam, necessariamente, a instrução por ele ministrada; mas mesmo quando se acha ensinando esses elementos, espera-se, nos países totalitários, que ele não empregue os métodos que lhe pareçam os mais capazes de produzir os melhores resultados didáticos, mas que inculque medo, subserviência e obediência cega, exigindo indiscutível submissão à sua autoridade. Logo que passa além dos simples elementos, é obrigado a adotar a opinião oficial em tudo o que se refere a questões controvertidas.

O resultado disso é que os jovens se tornaram na Alemanha nazista – e ainda o são na Rússia – intolerantes fanáticos ignorantes do mundo existente fora de seus países, desacostumados inteiramente à discussão livre e incapazes de perceber que as suas opiniões possam ser discutidas sem maldade. Tal estado de coisas, mau como é, seria menos desastroso se os dogmas inculcados fossem, como no catolicismo medieval, não só universais como, também, internacionais. Mas toda a concepção de uma cultura internacional é negada pelos dogmatistas modernos, os quais pregaram um credo na Alemanha, outro na Itália, outro na Rússia e ainda outro no Japão. Em cada um desses países, o nacionalismo fanático era o que mais se ressaltava no ensino dos jovens, resultando daí que os homens de um país não têm nenhuma base em comum com os homens de outro, e que nenhuma concepção de uma civilização comum se coloque no caminho de um ferocidade belicosa.

A decadência do internacionalismo cultural continuou de maneira cada vez mais acentuada desde a Primeira Guerra Mundial... Há países em que o aprendizado do nacionalismo é menos extremo, mas não deixa de ser, em toda parte, muito mais forte do que era antes. Há uma tendência na Inglaterra e nos Estados Unidos para se dispensar os professores franceses e alemães encarregados do ensino de francês e alemão. A prática de se considerar a nacionalidade de um homem, em vez da sua competência, ao designá-lo para um posto, é prejudicial à educação, além de constituir uma ofensa ao ideal da cultura internacional, que foi uma herança por nós recebida do Império Romano e da Igreja Católica, mas que está agora sendo submergida por uma nova invasão bárbara, procedente mais de baixo do que de fora.Em países democráticos, tais males ainda não atingiram nada que se possa comparar a essas proporções, mas deve-se admitir que há grave perigo de que semelhantes manifestações se verifiquem na educação, e que esse perigo só poderá ser evitado se aqueles que acreditam na liberdade de pensamento estiverem alerta, a fim de proteger os professores contra a escravidão intelectual.

Talvez o primeiro requisito para isso seja uma concepção clara dos serviços que podem ser esperados do professor em benefício da comunidade. Todos concordam com os governos do mundo em que a disseminação de informação de caráter positivamente não controvertível é uma das funções menos importantes do professor. Essa é, certamente, a base em que se elaboram todas as demais e, numa civilização técnica como a nossa, isso tem, indubitavelmente considerável utilidade. Deve existir numa comunidade moderna um número suficiente de homens que possua a habilidade técnica necessária à preservação do aparelhamento mecânico do qual depende o nosso conforto material. Além disso, é inconveniente que uma grande parte da população não saiba ler nem escrever. Por essas razões, somos todos a favor da educação compulsória universal.

Mas os governos perceberam que é fácil, no decurso de tal instrução, inculcar crenças relativas a assuntos passíveis de controvérsia, produzindo hábitos mentais que podem ser convenientes ou inconvenientes aos que se acham à testa do governo. A defesa do Estado, em todos os países civilizados, está tanto nas mãos dos professores como nas das pessoas que pertencem às forças armadas. Exceto nos países totalitários, a defesa do Estado é desejável, e o simples fato de a educação ser usada para tal propósito não constitui, por si só, motivo para crítica. A crítica só surgirá se o Estado for defendido pelo obscurantismo e apelar para a paixão irracional.

Tais métodos são inteiramente desnecessários no caso de um Estado digno de ser defendido. Não obstante, há uma tendência natural no sentido da sua adoção por aqueles que não possuem conhecimento de primeira mão relativa à educação. Acha-se muito difundida a crença de que as nações se tornam fortes pela uniformidade de opinião e pela supressão da liberdade. Ouve-se dizer, repetidamente, que a democracia enfraquece um país na guerra, apesar do fato de, em cada guerra importante desde o ano de 1700, a vitória ter ficado nas mãos do lado mais democrático. As nações têm sido levadas à ruína, de maneira muito mais freqüente, devido mais à insistência quanto a uma uniformidade doutrinal acanhada do que devido à discussão livre e à tolerância de opiniões divergentes.

Os dogmatistas do mundo inteiro acreditam que, embora eles próprios conheçam a verdade, os outros serão levados a crenças falsas, se lhes for permitido ouvir os argumentos apresentados por ambas as partes. Esta é uma opinião que conduz a um ou outro destes dois infortúnios: ou um grupo de dogmatistas conquista o mundo e proíbe todas as idéias novas, ou, o que é pior, os dogmatistas rivais conquistam regiões diferentes e pregam o evangelho do ódio contra o outro grupo. O primeiro deste males existiu durante a Idade Média; o último, durante as guerras religiosas e, novamente, em nossos dias. O primeiro torna a civilização estática; o segundo tende a destruí-la completamente. Contra ambos, o professor deve ser a principal salvaguarda.

É óbvio que o espírito partidário organizado constitui um dos maiores perigos de nossa época. Na forma de nacionalismo, conduz a guerras entre nações e, nas outras formas, leva à guerra civil. Deveria ser tarefa dos professores manter-se fora das lutas partidárias e procurar inculcar na juventude o hábito da investigação imparcial, fazendo com que julgue as questões pelos próprios méritos destas e se mantenha em guarda contra a aceitação de afirmações ex parte, apenas pelo seu valor aparente. Não se devia esperar que o professor lisonjeasse os preconceitos quer da multidão, quer dos alto funcionários do Estado. Sua virtude profissional deveria consistir numa presteza em julgar com isenção de ânimo ambas as partes, empenhando-se por elevar-se acima da controvérsia e manter-se numa região de investigação científica imparcial. Se há pessoas para as quais o resultados das suas investigações possa ser inconveniente, deveria ele ser protegido contra o seu ressentimento, a menos que se possa provar haver ele se dedicado a uma propaganda desonesta, mediante a disseminação de inverdades demonstráveis.

A função do professor, porém, não é somente atenuar a violência das controvérsias. Tem ele tarefas mais positivas a realizar, e não pode ser um grande professor a menos que seja inspirado pelo desejo de realizar tais tarefas. Os professores são, mais do que qualquer outra classe profissional, os guardiães da civilização. Deveriam estar intimamente cônscios do que é a civilização, bem como desejosos de comunicar um atitude civilizada aos seus alunos. Somos, assim, levados à pergunta: que constitui uma comunidade civilizada? Tal pergunta poderia ser respondida, comumente, tendo-se em vista apenas testes materiais. Um país é civilizado se tiver muitas máquinas, muitos automóveis, muitos banheiros e uma grande quantidade de meios rápidos de locomoção. Na minha opinião, a grande maioria dos homens modernos atribui a tais coisas demasiada importância.

A civilização, no sentido mais importante, é uma coisa do espírito, e não acréscimos materiais ao lado físico da vida. É, em parte, uma questão de conhecimento e, em parte, uma questão de emoção. Quanto ao que diz respeito ao conhecimento, o homem deveria ter consciência da sua própria pequenez e do seu meio imediato em relação ao mundo no tempo e no espaço. Deveria encarar o seu próprio país não apenas como o seu país, mas como um dentre os demais países do mundo, todos eles com igual direito de viver, de pensar e de sentir. Deveria ver a sua própria época em relação ao passado e ao futuro, percebendo que as suas próprias controvérsias parecerão tão estranhas às épocas futuras como hoje nos parecem as controvérsias das épocas passadas.

Adotando-se um ponto de vista ainda mais amplo, deveria ter consciência da vastidão das épocas geológicas e das enormes distâncias astronômicas; mas deveria ter consciência de tudo isso não como um peso que esmagasse o espírito da criatura humana, mas como um vasto panorama que alargasse a mente que o contemplasse. Quanto ao que diz respeito às emoções, é necessário, para que um homem seja verdadeiramente civilizado, um alargamento bastante idêntico de perspectiva, partindo do que é puramente pessoal. Os homens vão do nascimento à morte às vezes felizes, às vezes infelizes; às vezes generosos, outras vezes avaros e mesquinhos; às vezes heróicos, outras vezes covardes e servis. Para o homem que encara esse desfile como um todo, certas coisas se sobressaem como dignas de admiração.

Certos homens foram inspirados por amor à humanidade; outros, pelo intelecto supremo, nos ajudaram a compreender o mundo em que vivemos; e alguns outros, mediante sensibilidade excepcional, criaram beleza. Tais homens produziram algo de bom e positivo para contrabalançar o longo registro de crueldade, opressão e superstição. Tais homens fizeram tudo que estava em seu poder para tornar a vida humana uma coisa melhor do que a breve turbulência dos selvagens. O homem civilizado, quando não pode admirar tem em mente mais a compreensão do que a reprovação. Procurará antes descobrir e remover as causas impessoais do mal do que odiar os homens que se encontrem em suas garras. Tudo isto deveria estar na mente e no coração do professor, pois, se isto estiver em sua mente e em seu coração, procurará transmitir tal coisa aos jovens que se acham sob os seus cuidados. Homem algum poderá ser um bom professor se não tiver sentimentos de cálida afeição para com os seus alunos, bem como um desejo sincero de comunicar-lhes o que ele próprio considera de valor.

Para o propagandista, os seus alunos são soldados em potencial de um exército. Estão destinados a servir a propósitos alheios à suas próprias vidas, não no sentido em que cada propósito generoso transcende o próprio eu, mas no sentido de contribuir para privilégios injustos ou para um poder despótico. O propagandista não deseja que os seus discípulos observem o mundo e escolham livremente um propósito que lhes pareça valioso. Deseja, como um artista podador, que o seu desenvolvimento seja exercitado e retorcido no sentido de adaptar-se ao propósito do jardineiro. E, ao contrariar o seu desenvolvimento natural, tornar-se apto a destruir neles todo o generoso vigor, substituindo-o pela inveja, pelo espírito de destruição e pela crueldade.

Não há necessidade que os homens sejam cruéis; ao contrário, estou persuadido de que a maior parte da crueldade é resultado de se contrariar os impulsos dos primeiros anos, principalmente os impulsos no sentido do que é bom. As paixões repressivas e de perseguição são muito comuns, como a situação atual do mundo o prova amplamente. Mas não constituem parte inevitável da natureza humana. Pelo contrário, são sempre, creio eu, resultado de alguma espécie de infelicidade. Deveria ser uma das funções do professor abrir novas perspectivas aos seus alunos, mostrando-lhes a possibilidade de atividades não só agradáveis como úteis, libertando assim os seus impulsos generosos e impedindo o desenvolvimento do desejo de roubar aos outros as alegrias que lhes faltam. Muita gente se refere com desprezo à felicidade como um fim, mas pode-se suspeitar de que se trata de criaturas amargas. Uma coisa é renunciar à própria felicidade tendo-se em vista uma finalidade pública; mas é inteiramente diferente tratar-se a felicidade geral como se fosse coisa sem importância. No entanto, isso é feito, freqüentemente em nome de algum suposto heroísmo. Há, em geral, nas pessoas que adotam tal opinião, um veio de crueldade, baseado, provavelmente, em inveja inconsciente, sendo que a fonte dessa inveja será encontrada, quase sempre, na infância ou na juventude.

O educador deveria ter por objetivo educar adultos livres desses infortúnios psicológicos, que não se mostrem ansiosos de privar os outros da felicidade porque eles próprios foram privados dela.Como as coisas se encontram hoje em dia, muitos professores se acham incapazes de dar o melhor que podiam de si mesmos. Há várias razões para isso, algumas das quais mais ou menos acidentais, e outras profundamente enraizadas. Começando pelas primeiras dessas razões, convém dizer que a maioria dos professores se acha sobrecarregada de trabalho, sendo eles obrigados a preparar os seus alunos apenas para os exames, em vez de lhes ministrar um treino mental generoso. As pessoas que não estão acostumadas a ensinar – e isto inclui, praticamente, todas as autoridades educacionais – não têm idéia do dispêndio de inteligência que isso envolve.

Não se espera que os padres façam sermões, todos os dias, durante várias horas, mas um esforço análogo é exigido dos professores. O resultado disso é que muitos deles ficam esgotados e nervosos, alheios às obras recentes sobre as matérias que ensinam, e incapazes de inspirar aos seus alunos a sensação de prazer intelectual que se obtém através de uma nova compreensão e de um novo conhecimento.Isso não constitui, no entanto, de modo algum, a questão mais grave.

Na maior parte dos países, certas opiniões são reconhecidas como corretas, enquanto que outras são tidas como perigosas. Espera-se que os professores cujas opiniões não são corretas se mantenham calados a respeito delas. Se eles mencionam as suas opiniões, isso é considerado propaganda, enquanto que a referência a opiniões corretas é considerada como sendo simplesmente instrução sólida. O resultado disso é que as vozes perquiridoras têm com freqüência de sair para fora da sala de aula a fim de descobrir o que é que pensam os espíritos mais vigorosos da sua época. Há nos Estados Unidos uma matéria chamada Instrução Cívica, na qual, mais do que em qualquer outra, se deverá esperar que o ensino conduza a caminhos errados. Ensinam aos jovens, numa espécie de compêndio que parece feito em copiador, como é que se supõe que os assuntos públicos devam ser conduzidos, evitando-se cuidadosamente que os alunos tenham qualquer conhecimento quanto à maneira pela qual são eles realmente conduzidos. Quando se tornam adultos e descobrem a verdade, o resultado é, com muita freqüência, um cinismo completo, no qual se perdem os ideais públicos – ao passo que, se lhes tivessem ensinado meticulosamente qual a verdade e feito, quando ainda bastante jovens, os comentários adequados, poderiam ter-se tornado homens capazes de combater males que, tal como são as coisas, não lhes despertam mais do que um complacente alçar de ombros.

A idéia de que a falsidade é edificante é um dos pecados que assediam aqueles que elaboram os planos educacionais. Eu não consideraria que um homem pudesse ser um bom professor a menos que ele estivesse firmemente resolvido, no exercício de sua profissão, a não ocultar a verdade devido ao fato de não ser ela considerada “edificante”. A espécie de virtude que pode ser produzida pela ignorância protegida é demasiado frágil, rompendo-se ao primeiro contato com a realidade. Há, neste mundo, muitos homens que merecem admiração, e seria bom que os jovens aprendessem a ver as razões pelas quais esses homens são admiráveis. Mas não é bom ensinar-lhes a admirar patifes ocultando a sua patifaria.

Pensa-se que o conhecimento das coisas tais como são conduzirá ao cinismo, mas o mesmo poderá acontecer se o conhecimento chegar subitamente a causar surpresa e horror. Se vier, porém, gradualmente, devidamente entremeado com o conhecimento do que é bom, no decurso de um estudo científico inspirado pelo desejo de se chegar à verdade, não terá tal efeito. De qualquer modo, contar mentiras aos jovens, os quais não dispõem de meios para verificar o que se lhes diz, é coisa moralmente indefensável.O que, antes de mais nada, um professor deveria procurar produzir em seus alunos, se se quiser que a democracia sobreviva, é a espécie de tolerância que nasce do empenho de se compreender aqueles que são diferentes de nós. Constitui, talvez, um impulso natural encarar-se com horror e aversão todas as maneiras e costumes diferentes daqueles com que estamos habituados. As formigas e os selvagens condenam os estranhos à morte. E aqueles que nunca viajaram, quer física, quer mentalmente, acham difícil de se tolerar as maneiras estranhas e grotescas de outras nações e de outras épocas, bem como outras seitas e outros partidos políticos.

Esta espécie de intolerância ignorante é a antítese da visão civilizada, constituindo um dos mais graves perigos a que está exposto o nosso mundo superpovoado. O sistema educacional deve ter por objetivo corrigir tal coisa, mas pouquíssimo se fez nesse sentido até o momento. Em cada país, o sentimento nacionalista é encorajado, ensinando-se às crianças das escolas – coisas em que elas se acham bastante prontas a acreditar – que os habitantes de outros países são moral e intelectualmente inferiores aos do país em que os escolares vivem. A histeria coletiva, a mais louca e cruel de todas as emoções humanas, é encorajada, em vez de ser desencorajada, sendo os jovens incentivados a acreditar naquilo que ouvem com freqüência dizer, em lugar de acreditarem naquilo em que há uma base racional para se acreditar.

Em tudo isso, não se deve censurar o professor. Eles não são livres para ensinar o que desejam. São eles que conhecem mais intimamente as necessidades da juventude. São eles que, mediante contato diário, se interessam pelos jovens. Mas não são eles que decidem o que deverá ser ensinado ou quais os métodos didáticos que deverão ser adotados. Deveria haver muito mais liberdade do que a que existe na profissão de professor. Deveria haver muito mais oportunidades de autodeterminação, mas independência quanto à interferência de burocratas e intolerantes. Ninguém consentiria, em nossos dias, que se sujeitasse os médicos ao controle de autoridades que nada entendessem de medicina e tencionassem dizer-lhes de que maneira deveriam tratar de seus pacientes, exceto, naturalmente, quando se apartassem criminosamente do propósito da medicina, que é o de curar o paciente.

O professor é uma espécie de médico cujo propósito é curar o paciente de infantilidade, mas não lhe permitem decidir por si mesmo, baseado em sua experiência, quais os métodos mais apropriados para tal fim. Algumas poucas universidades históricas, pelo poder de seu prestígio, asseguram uma autodeterminação virtual, mas a imensa maioria das instituições educacionais se acha tolhida e controlada por homens que não compreendem o trabalho em que estão interferindo.

A única maneira de se impedir o totalitarismo em nosso mundo altamente organizado, é assegurar um certo grau de independência aos indivíduos que realizam trabalho público útil, e entre tais indivíduos os professores merecem lugar de destaque. O professor, como o artista, o filósofo e o homem de letras, somente pode realizar adequadamente o seu trabalho caso se sinta como indivíduo dirigido por um impulso criador íntimo, e não sentindo-se dominado e agrilhoado por um autoridade externa. É muito difícil de encontrar-se, em nosso mundo moderno, um lugar para o indivíduo. Pode ele subsistir no alto como ditador num Estado totalitário ou como magnata plutocrático num país de grandes empreendimentos industriais, mas no reino do espírito está se tornando cada vez mais difícil preservar-se a independência das maiores forças organizadas que controlam as existências de homens e mulheres. Caso se queira que o mundo não se veja privado do benefício a ser auferido de seus melhores espíritos, terá ele de encontrar algum método que lhes permita, apesar da sua organização, escopo e liberdade. Isso envolve uma abstenção deliberada por parte daqueles que dispõem do poder, bem como uma percepção consciente de que há homens aos quais se deve dar liberdade de ação.

Os Papas da Renascença puderam sentir desse modo com respeito aos artistas renascentistas, mas os homens poderosos de nossa época parecem experimentar maior dificuldade em sentir respeito pelas criaturas dotadas de talento excepcional. A turbulência de nossa época é inimiga da fina flor da cultura. O homem da rua acha-se cheio de medo, não se sentindo, portanto, disposto a tolerar liberdades que não lhe parecem necessárias. Talvez devamos esperar tempos mais tranqüilos, antes que as reivindicações da civilização possam de novo vencer as reivindicações do espírito partidário. Entrementes, é importante que ao menos alguns continuem a perceber as limitações, pela organização, do que pode ser feito. Todo sistema deveria permitir saídas e exceções, pois, se não o fizer, acabará, no fim, por esmagar tudo o que há de melhor no homem."


(Texto escrito pouco depois da Segunda Grande Guerra, pelo filósofo, pacifista e matemático inglês Bertrand Russel. Publicado em "Ensaios Impopulares").

SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO - PROGRAMA 2012/1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FAE/DECAE
Sociologia da Educação – 2012/1
CARGA HORÁRIA: 60 HORAS (4 créditos)
Professor: Antônio Machado de Carvalho

EMENTA:Estrutura social e Educação: reprodução social e transmissão de conhecimento. O impacto das revoluções tecnológicas nos processos civilizatórios: o papel da escola. A relação da escola com a sociedade e com o Estado. Análise sociológica do fracasso escolar.

PRIMEIRA UNIDADE: A Sociedade contemporânea

a) Conceitos básicos da teoria sociológica
b) As revoluções científicas e tecnológicas e suas implicações
c) A nova divisão do trabalho
d) A questão ambiental e energética

SEGUNDA UNIDADE: A escola fundamental e os determinantes da escolarização

a) O papel do Estado
b) Os direitos sociais e a questão da cidadania
c) O fracasso escolar e as determinações de classe, gênero e cor

TERCEIRA UNIDADE: Propostas de organização da escola

a) Contexto histórico em que surgiram
b) Objetivos sociais e políticos
c) Concepção da formação para o trabalho e para a cidadania

METODOLOGIA: Aulas expositivas, trabalhos em grupo e seminários

AVALIAÇÃO: Provas em sala, ao final de cada unidade, num total de pelo menos três, e trabalho final.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BÁSICAS (outras sugestões serão apresentadas ao longo do semestre):
- ALPORT, Gordon. A natureza do preconceito (texto avulso).
- ARENDT, H. A condição Humana. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991.
- ARENDT, H. As origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
- BERGER, Peter. Perspectivas sociológicas. Petrópolis: Ed. Vozes, 1976.
- BERGER, Peter E LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Ed. Vozes, 1978.
- CASTRO, Cláudio Moura. Educação brasileira, consertos e remendos. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
- CASTRO, Cláudio Moura. Custos e determinantes da educação na A. Latina. Rio de Janeiro: INTED, 1978.
- CASTRO, Cláudio Moura. Escolas feias, escolas boas. (texto avulso).
- CORIAT, Benjamin. Pensar pelo avesso: o modelo japonês... Rio de Janeiro: Revan, 1994.
- DURKHEIM, E. Educação e sociologia. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1972.
- FORRESTER, V. O horror econômico. São Paulo: UNESP, 1997.
- FRIEDMANN, Georges. El hombre y la técnica. Barcelona: Ediciones Ariel. 1970.
- LOJKINE, Jean. A revolução informacional. São Paulo: Cortez, 1995.
- MANACORDA, M. A. História da Educação: da antigüidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1989.
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- SOARES, Rose Dore. A concepção gramsciana do Estado e o debate sobre a escola (Tese de doutoramento).
- SOUZA, Jessé. A ralé brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
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- VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Editora Estação Liberdade. 1999.