Para a agradável surpresa de muitos desencantados professores, o futuro Ministro da Educação, professor Ricardo Vélez Rodríguez, deu início com chave de ouro à missão que lhe foi confiada pelo Presidente Bolsonaro. Sua referência primeira àquele que foi o mais importante mestre em toda a história da educação brasileira - o professor Anísio Teixeira - sinaliza para a retomada de caminhos que foram indevidamente abandonados.
Vale a pena reler o texto abaixo, publicado em 1962, contendo amostra do pensamento de Anísio. Ambos, os professores Anísio e Ricardo, conforme se vê, parecem vibrar no mesmo diapasão.
TEIXEIRA, Anísio. Valores proclamados e valores reais nas instituições escolares
brasileiras. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro,
v.37, n.86, abr./jun. 1962.
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"1) Duplicidade da aventura colonizadora na América
A
descoberta da América pelos europeus, nos fins do século quinze, deu
lugar a uma transplantação da cultura européia para este Continente. Tal
empreendimento constituiu, porém, uma aventura impregnada de
duplicidade. Proclamavam os europeus aqui chegarem para expandir nestas
plagas o cristianismo, mas, na realidade, movia-os o propósito de
exploração e fortuna. A história do período colonial é a história desses
dois objetivos a se ajudarem mutuamente na tarefa real e não confessada
da espoliação continental.A vida do recém-descoberto Continente foi,
assim, desde o começo, marcada por essa duplicidade fundamental:
jesuítas e bandeirantes; "fé e império"; religião e ouro. O português e o
espanhol que aqui aportavam não eram cristãos, mas, quando muito,
"cruzados". Não vinham organizar nem criar nações mas prear... Esta obra
destruidora e predatória nunca se confessava como tal, revestindo-se,
nas proclamações oficiais, com o falso espírito de cruzada cristã.De
mistura com ansiosa indagação sobre ouro e minas, o primeiro ato público
dos portugueses no Brasil foi a celebração da Santa Missa, e o nome que
deram à Terra, o de Santa-Cruz e Vera-Cruz, pouco depois vencido pelo
"de um pau de tingir panos", mas que produzia ouro.Nascemos, assim,
divididos entre propósitos reais e propósitos proclamados. A essa
duplicidade dos conquistadores seguiu-se a duplicidade da própria
sociedade nascente, dividida entre senhores e escravos, dando assim ao
contexto social do continente recém-descoberto o caráter de um
anacronismo, mesmo em relação à Europa, na época, em plena renovação
social e espiritual.
Quatro séculos e meio após a
descoberta, essa obscura e desabusada colonização oferece-nos o quadro
seguinte: parte do hemisfério norte foi definitivamente conquistada e
organicamente integrada em duas nações, de origem anglo-saxônica. Estas
duas nações lideram, nesta parte do planeta, a revolução democrática e a
revolução científica.Para isto, os Estados Unidos (o Canadá é caso à
parte) tiveram de destruir o índio "pagão", travar uma guerra de
independência contra a Metrópole e, nos meados do século passado, se
esvaírem numa das mais tremendas guerras civis que, até aquele momento,
registrara a história. Os mortos se elevaram mais de um milhão só do
lado do Norte, enquanto a população total da nação não excedia trinta
milhões.
Se dualidade e duplicidade houve, pois, nessa
parte norte continente, como de fato houve, entre colonizados e
colonizadores, primeiro, e, depois, entre escravistas e capitalistas ou,
mais exatamente, entre fazendeiros-patriarcas (Sul), ianques (Norte) e
pioneiros (Oeste), tais divisões e conflitos se fizeram suficientemente
claros e abertos, para se decidirem no campo de batalha.
A
observação vale para mostrar que a sociedade em busca de sua orgânica
integração, se não consegue superar pacificamente as força que a
dissociam, cai, ao que parece, inelutavelmente, na revolução e na guerra
civil.Abaixo do Rio Grande, desde o México até a Argentina e o Chile,
somos, depois de rápidas lutas pela independência, no século dezenove,
um grupo de nações mergulhadas nesse processo de organização e
integração, com maiores ou menores regressos, todas lutando para
efetivar as indispensáveis incorporações e assimilações sem a tragédia
da guerra civil que marcou a sociedade americana. Nem sempre há completa
percepção da dificuldade da tarefa.
O velho vício da
duplicidade mantém-nos, por vezes, no estado de descuidado enleio, com
que escamoteamos a nós próprios a verdadeira realidade. Chegamos, em
nossos hábitos, sob alguns aspectos, esquizofrênicos, a criar um tipo
específico de revolução, misto de teatro e de espasmo de violência, a
revolução insincera, a "revolução sul-americana"... É que a sociedade,
ainda constituída na base de divisões e estratificações sociais até
ontem toleradas, mas hoje, com os novos processos de comunicação e a
"revolução das expectativas montantes", em ponto de perigo e de
explosão, não ganhou completa consciência dos sinais que prenunciam as
convulsões integradoras.
Para analisar essa situação
sul-americana não é possível deixar de repetir observações que já se
tornaram cediças. Nem o espanhol nem o português que aqui apartaram
traziam propósitos de criar, deste lado do Atlântico, um mundo novo.
Encontraram um mundo novo, que planejaram explorar, saquear e, assim
enriquecidos, voltar à Europa. Viana Moog comentou, em páginas
definitivas, o "sentido predatório" da aventura sul-americana em
contraste com o "sentido orgânico" da formação norte-americana. Mundo
novo "vinham fundar aqui" os peregrinos do Mayflower. Novo mundo
encontraram aqui espanhóis e portugueses. O mundo novo dos americanos ia
ser criado. O novo mundo dos espanhóis e portugueses iria ser saqueado.
O saque prolongou-se, porém, e o regresso se retardou. Com o tempo,
surgiram os espanhóis e portugueses nascidos no novo continente, filhos
de espanhóis e portugueses das metrópoles.
Chamaram-se
"criollos", entre os espanhóis e "mazombos", entre os brasileiros.
Brasileiros é modo de dizer, pois "o termo brasileiro, como expressão e
afirmação de uma nacionalidade", não chegara a existir até começos do
século XVIII, conforme nos diz Viana Moog, que assim define o
"mazombismo", expressão cultural, dominante, no Brasil, até fins do
século passado, pouco importando que o nome tivesse desaparecido:
"consiste (o mazombismo) na ausência de determinação e satisfação de ser
brasileiro, na ausência de gosto por qualquer tipo de atividade
orgânica, na carência de iniciativa e inventividade, na falta de crença
na possibilidade do aperfeiçoamento moral do homem, em descaso por tudo
quanto não fosse fortuna rápida, e, sobretudo, na falta de um ideal
coletivo, na quase total ausência de sentimento de pertencer o indivíduo
ao lugar e à comunidade em que vivia".
O radicalismo
da formulação pode ser contestado, mas a afirmação é fundamentalmente
verdadeira. Os "brasileiros" eram "europeus" nostálgicos, transviados
nestas paragens tropicais. E como sucede em tais casos, nem eram aceitos
pelos europeus, como europeus, nem pelos brasileiros mestiços, ou seja
os primeiros brasileiros autênticos, como brasileiros. Esse tipo
cultural, dúbio, ambivalente, nem peixe nem carne, acabou por criar
nestas terras novas da América algo de congenitamente inautêntico, do
congenitamente caduco, na cultura americana.
Não se
tratava, com efeito, de reprodução das condições européias do momento,
mas de um recuo, de uma restauração contraditória e anacrônica. O
mazombo, dividido entre o desejo de regressar, o propósito de reproduzir
a cultura da metrópole e as novas condições, o novo meio, a nova
dinâmica da conquista, ignorava o próprio fato da transplantação
cultural e a necessidade inevitável de adaptação e se perdia em impulsos
ridículos e imitação e contrafação. Incapaz, pela sua irremediável
duplicidade, de aceitar as modificações que o meio impunha, suprimia
delas a possível força criadora, desnaturado o que havia de melhor no
nascente esforço nacional.
Os "mazombos", como os
"criollos", não eram europeus, nem sul-americanos... E assim hostis à
sua própria terra acabaram por se constituírem objeto de um risonho
desdém até do próprio mundo europeu, de que não se queriam desligar.A
verdade é que resistiam às força de formação nestas paragens de uma
cultura autêntica, com o arraigado sentimento de estrangeiros em sua
própria terra. Em vez de se voltarem para as possíveis deficiências ou
diversificações da cultura européia em nosso meio e nelas buscar o
sentido novo da adaptação local dos padrões transplantados,
envergonhavam-se de tais modificações e chegavam até a procurar
elidi-las ou escondê-las.
Mais do que isto. Chegaram à
engenhosidade de pretender suprir as deficiências de nossa realidade
humana e social por meio de revalidações legais. Já observei alhures
que, em nosso mazombismo, com os olhos voltados para um sistema de
valores europeus, que não conseguíamos ou não podíamos atingir,
buscávamos, num esforço de compensação, "declarar", por ato oficiai ou
legal, a situação existente como idêntica à ambicionada. Por meio desses
"atos declaratórios" fazíamos, sem metáfora, de preto e branco, pois
nada menos do que isso foram decretos declaratórios até de
"branquidade", nos tempos coloniais, com quais visávamos tornar
"convencional" a própria biologia.
Bem sei que podemos
olhar para tais fatos sob a luz das dificuldades de implantar nos
trópicos uma civilização de tipo europeu e considerar tal duplicidade
como esforço patético de assimilação pelo menos externa dos valores da
metrópole.A realidade, porém, é que nos acostumamos a viver em dois
planos, o "real", com as suas particularidades e originalidades, e o
"oficial" com os seus reconhecimentos convencionais de padrões
inexistentes. Enquanto fomos colônia, tal duplicidade seria explicável, à
luz de proveitos que daí advinham para o prestígio do nativo, perante a
sociedade metropolitana e colonizadora. A independência não nos curou,
porém, do velho vício. Continuamos a ser, com a autonomia, nações de
dupla personalidade, a oficial e a real.A lei e o governo não consistiam
em esforços da sociedade para disciplinar uma realidade concreta e que
lentamente se iria modificar. A lei era algo de mágico, capaz de
subitamente mudar a face das coisas. Na realidade, cada uma de nossas
leis representava um plano ideal de perfeição à maneira da utopia
platônica. Chegamos, neste ponto, a extremos inacreditáveis. Leis
perfeitas, formulações e definições ideais das instituições, e, como
ponto entre a realidade, por vezes, mesquinha e abjeta, e essas
definições ideais da lei, os atos oficiais declaratórios, revestidos do
poder mágico de transfundir aquela realidade concreta em uma realidade
oficial similar à prevista na lei.
Tudo podíamos
metamorfosear por atos do governo! Não havendo correspondência entre o
"oficial" e o "real", podíamos transformar toda a vida por atos
oficiais. Como já acentuei, tudo isto era possível, graças, primeiro, ao
dualismo de colônia e metrópole e, depois, ao dualismo de "elite" e
povo, aquela diminuta e aristocrática, este numeroso, analfabeto e mudo.
Reproduzíamos com esse dualismo nacional a situação colonial, mantendo a
nação no mesmo estado de duplicidade institucional.
2) Dificuldade da "transplantação" dos sistemas escolares
Desejamos
examinar, neste trabalho, quanto esse dualismo, dir-se-ia congênito, da
sociedade sul-americana, veio agravar no Brasil, pois só a respeito do
Brasil podemos dar testemunho, o dualismo das instituições escolares,
que buscamos transplantar, dando origem a paradoxal processo de
expansão, pelo qual exaltamos o aspecto mais velho e destinado a
desaparecer dos sistemas escolares que procurávamos copiar.
Entre
as instituições sociais, sabemos que a escola, mais do que qualquer
outra, oferece, ao ser transplantada, o perigo de se deformar ou mesmo
de perder os objetivos. A escola já é de si uma instituição artificial e
incompleta, destinada apenas a suplementar a ação educativa muito mais
extensa e profunda que exercem outras instituições e a própria vida.
Deve, portanto, não só ajustar-se, mas inserir-se no contexto das demais
instituições e do meio social e mesmo físico. A verdade é que a escola,
como instituição, não pode verdadeiramente ser transplantada. Tem de
ser recriada em cada cultura, mesmo quando essa cultura seja
politicamente o prolongamento de uma cultura matriz.No Brasil, a
Universidade não chegou a ser transplantada. Motivos políticos levaram
os colonizadores portugueses, ao contrário do que fez a Espanha, a esse
ato de prudência pedagógica. Chegamos à independência sem imprensa e sem
escolas superiores, com a maior parte de nossa elite formada nos
colégios da Companhia de Jesus (cuja influência nunca poderá ser
exagerada quanto a certos traços da tradição intelectual brasileira) e, a
seguir, para a graduação superior, na Universidade de Coimbra, em
Portugal, e assim continuamos, durante parte do império. Como que se
percebia obscuramente o perigo de se transplantarem instituições
delicadas e complexas como as da educação, sobretudo em seus níveis mais
altos e, por isto mesmo, mais difíceis e complexos.
Durante
toda a monarquia, já independentes, continuamos, quanto à expansão do
sistema escolar, sumamente cautelosos e lentos. A classe dominante,
pequena e homogênea, dotada de viva consciência dos padrões europeus e
extremamente vigilante quanto à sua própria perpetuação, parece ter tido
o propósito de manter restritas as facilidades de ensino, sobretudo de
nível superior.Com a abolição e a república, entramos, porém, em período
de mudanças sociais, que a escola teria de acompanhar. O modesto
equilíbrio dos períodos monárquicos, obtido em grande parte à custa da
lentidão de nossos progressos e de número reduzido de escolas, com que
se procurava manter a todo transe a imobilidade social, rompe-se afinal e
tem início a expansão do sistema escolar.
3)Evolução de sistemas escolares europeus
Antes
de examiná-la, cabe, porém, uma digressão para se fixarem as linhas de
evolução das instituições escolares nos países de onde recebíamos as
influências maiores. É indispensável, preliminarmente, recordar que
somente no século dezenove o Estado entrou a interferir, maciçamente, na
educação escolar. E, a princípio, apenas para criar uma escola diversa
das existentes, destinada a ministrar um mínimo de educação, considerado
necessário para a vida em comum, democrática e dinâmica, da emergente
civilização industrial.
Tal escola, ou seja, a escola
primária, que logo se faz compulsória, não tem os objetivos da educação
escolar tradicional, a que sempre existira, antes de o Estado se fazer
educador, e que visava manter o alto status social do grupo dominante. A
nova escola popular visa, tão-somente, e nunca é demais repetir, dar a
todos aquele treino mínimo, considerado indispensável para a vida comum
do novo cidadão no Estado democrático e industrial. A seu lado,
continuava a existir a outra educação, a de "classe", com os seus alunos
selecionados, não em virtude de seus talentos, mas de sua posição
social e de seus recursos econômicos, ministrada em escolas que, de modo
geral, se achavam sob controle particular ou autônomo. Na Europa e,
sobretudo, na França, os sistemas escolares correspondentes a esses dois
tipos de escolas coexistiam, lado a lado, separados e estanques, mesmo
quando vieram a ser mantidos pelo Estado. A escola primária, a primária
superior, as escolas normais e as escolas de artes e ofícios constituíam
o sistema popular de educação destinado a ensinar a trabalhar e a
perpetuar o modesto status social dos que o freqüentavam. As classes
"preparatórias" (primárias), o liceu, as grandes escolas profissionais, a
escola normal superior e a universidade constituíam o outro sistema,
destinado às classes abastadas e à conservação do seu alto status
social. Está claro que ingressar em tais escolas seria um dos meios de
participar dos privilégios dessas classes e, deste modo, ascender
socialmente.
Como o critério da matrícula, nos dois
sistemas, não era o de mérito ou demérito individual do aluno, isto é,
de sua capacidade e suas aptidões, mas o das condições sociais, ou
econômicas, herdadas ou ocasionalmente existentes, a distinção real
entre os sistemas não era de nível intelectual mas de nível social. A
longa associação da educação escolar com as classes mais abastadas da
sociedade determinou que, só em mínima parte, a escola se fizesse
realmente selecionadora de valores. Devendo receber todos os alunos
cujos pais estivessem em condições de arcar com o ônus de uma educação
prolongada dos filhos, independente da capacidade individual desses
mesmos alunos e de seu nível intelectual, a escola desenvolveu filosofia
da educação toda especial.
Tal filosofia era a de que
quanto mais supérfluos fossem os estudos escolares, mais formadores
seriam eles da chamada elite que às escolas fora confiada. Não se sabia o
que seus alunos iriam fazer, salvo que deveriam continuar a integrar as
classes abastadas a que pertenciam. Logo, se se devotassem os alunos a
estudos inúteis, "desinteressados", mas, segundo uma falsa psicologia,
"formadores da mente", deveriam depois ficar aptos a fazer qualquer
coisa que tivessem de fazer, na sua função de componentes do chamado
escol social...E assim se afastou da escola qualquer premência do fator
"eficiência", chegando-se a considerar tudo que se pudesse chamar de
"prático" ou "utilitário" como de pouco educativo. A escola "acadêmica",
isto é, supostamente treinadora do espírito e da inteligência, passou a
ser algo de vago, senão de misterioso, educando por uma série de
"exercícios", reputados de ginástica mental, ou pelo ensino de
"matérias" tidas especialmente como dotadas de "poderes educativos",
estas para o treino da memória, aquelas, da imaginação, outras, da
observação, e, deste modo, capazes de produzir peritos do intelecto ou
da sensibilidade. Por isto mesmo que buscava resultados tão abstratos e
tão alusivos, não podia desenvolver critérios severos de eficiência. Os
resultados só viriam a ser conhecidos mais tarde, na vida, quando os
respectivos ex-alunos, vinte ou trinta anos depois, vitoriosos em suas
carreiras, por motivos absolutamente diversos, apontassem para o latim
distante ou os incríveis exercícios de memória e dissessem que tudo
deviam àquela escola, aparentemente tão absurda e, no entanto, tão
miraculosa!
Essa escola tradicional, tipicamente de
"classe", destinada aos grupos mais altos da sociedade, e eficaz para
eles, pois não ministrava senão educação para a fruição, para o lazer,
não era e nunca foi uma escola seletiva de inteligência. Pelo contrário,
constituía uma forma especial de educação, destinada a qualquer
inteligência, desde que o aluno pertencesse aos grupos finos e abastados
da sociedade.Tal escola tradicional acabou por se fazer um anacronismo
nos grandes sistemas escolares europeus. As força sociais e o
desenvolvimento científico, que haviam compelido o Estado a criar a
educação mínima compulsória e as escolas pós-primárias de educação
prática e utilitária, renovaram as condições de preparo até mesmo para
as velhas profissões liberais e impuseram várias outras profissões
técnicas que também demandavam outro tipo de educação. Tais força vêm
transformando e unificando toda a educação escolar, que passou a
objetivar o preparo dos homens (de todos os homens), de acordo com suas
aptidões, a fim de redistribuí-los pelas múltiplas e diversas ocupações
de uma sociedade industrial, científica e extremamente complexa.
Educação assim, com tais propósitos definidos e claros, já não visa a
nenhum fictício "treino da mente", mas à especialização adequada para
ocupações específicas, inclusive a ocupação acadêmica, no sentido de
formação do professor, do estudioso ou do cientista.
A
educação para o lazer continuou e continua sem dúvida a existir, mas
como parte integrante da educação de qualquer um, desde o cidadão comum
até o de nível mais alto, em escolas que a todos visa a formar para o
trabalho, segundo a sua inteligência, e para o consumo, segundo as suas
posses ou as posses da sociedade de abundância em vias de surgimento.O
importante a notar é, porém, que esta nova educação já não é uma
educação para "certa classe superior", mas educação para a inteligência:
quanto mais inteligente o aluno, mais longe poderá ele ir. Por isto
mesmo, não gozou daquela sedução da antiga escola acadêmica, a qual
"classificava" o aluno e lhe permitia a ascensão automática à chamada
"elite". A nova escola só facilitava a ascensão dos mais inteligentes e
capazes.A fusão ou integração dos dois sistemas escolares – o prático e
especializado e o das elites – acabou por se processar, em todos os
países desenvolvidos, desaparecendo, de certo modo, a antiga educação
puramente de "classe".
Na América do Norte, pela
organização de um único sistema público de educação, com extrema
flexibilidade de programas e a livre transferência entre eles. Na
Inglaterra, pela "escada contínua" de educação, pela qual se permite que
o aluno, seja lá qual for a escola que freqüente, ou a classe a que
pertença, possa ascender a todos os graus e variedades de ensino. Na
França, pela transferibilidade do aluno de um sistema para outro, com o
que, de certo modo, se unificaram os dois sistemas, seguido de um regime
de bolsas-de-estudo, destinado a permitir aos alunos desprovidos de
recursos, mas capazes, o acesso às altas escolas seletivas.Além dessa
interfusão dos alunos, pela qual se quebrou o dualismo do sistema, do
ponto-de-vista das classes que abasteciam os dois tipos diversos de
escolas, processou-se verdadeira revisão de métodos e programas, graças à
qual as escolas chamadas utilitárias se vêm fazendo, cada vez mais,
escolas de cultura geral, sem perda dos seus aspectos práticos, e as
escolas chamadas "clássicas" ou "acadêmicas" se vêm transformando, cada
vez mais, em escolas de cultura moderna, preocupadas com os problemas de
seu tempo, sem perda dos aspectos de cultura geral, hoje mais
inteligentemente compreendidas.
Em todos os países
democráticos, os sistemas escolares tendem assim a constituir um único
sistema de educação, para todas as classes, ou melhor, para uma
sociedade verdadeiramente democrática, isto é, sem classes fechadas, em
que todos os cidadãos tenham oportunidades iguais para se educar e, se
distribuir, depois, pelas ocupações e profissões, de acordo com a
capacidade e aptidões individuais demonstradas e confirmadas.
No
novo sistema educacional, a classificação social posterior do aluno é
resultado da redistribuição operada pelo processo educativo e não algo
que decorra automaticamente de haver freqüentado certas escolas
destinadas a grupos privilegiados de alunos de recursos. O aluno terá as
oportunidades que sua capacidade e o preparo realmente obtido
determinarem.
Está claro que nenhum país atingiu ainda
esta perfeição. Mas, nos Estados mais desenvolvidos, já se estende
aquela educação mínima oferecida pelo Estado até os 16 e os 18 ou 19
anos com ampla diversificação de currículos e programas para as
diferentes aptidões, seguidas de um sistema de bolsas para os estudos
superiores, a fim de facilitar o ingresso dos capazes sem recursos – uma
vez que o ensino superior, de modo geral, ou depende dos recursos da
família ou impõe sacrifícios pessoais consideráveis.
4) Evolução dos sistemas escolares brasileiros
Em
nossos países, embora insista que me refiro especialmente ao Brasil,
devia repetir-se evolução ao longo das linhas acima referidas. Ao
iniciar-se, com efeito, a nossa expansão escolar, e a fim de obstar a
que tal expansão gerasse perturbadores deslocamentos sociais, não faltou
o cuidado de se desenvolver, como na Europa, dois sistemas
educacionais: um pequeno, reduzido, acadêmico, destinado à classe
dominante; e outro, primário, seguido de escolas normais e
profissionais, destinado ao povo, com a amplitude que fosse possível. Os
dois sistemas, paralelos e independentes, ainda mais afastados
ficariam, se o primeiro fosse dominantemente particular.
E
assim se fez, evitando-se, desse modo, qualquer perigo de ascensão
social mais acelerada.Tivemos, pois, expansão, mas a imobilidade social,
como na Europa, ficou assegurada, do modo acima exposto, ou seja,
retirando-se qualquer atrativo ao sistema popular de educação, destinada
a manter cada um dentro de seu status social, e transferindo à órbita
privada o sistema acadêmico, pela sua escola secundária de elite, a fim
de que não fosse acessível senão aos que tivessem recursos.
Graças
a tais circunstâncias, conseguimos manter reduzidas as oportunidades
educacionais destinadas a permitir efetivamente a ascensão social,
limitando a escola secundária – propedêutica ao ensino superior - aos
alunos que já se encontrassem em certas camadas da sociedade, não
podendo os demais freqüentá-la, por falta de recursos econômicos ou por
falta de condições prévias de educação doméstica e social. Como
organizávamos as nossas escolas segundo os padrões europeus e como tais
padrões presumiam níveis de educação coletiva e doméstica relativamente
altos, comparados aos existentes em nossa população mais baixa, a
escola, mesmo a que se designava de popular, não era popular, mas
tìpicamente de classe média. Não era só a roupa, e sapato, que afastavam
o povo da escola, mas o próprio tipo de educação que ali ministrávamos e
de que não podia aproveitar-se, em virtude da penúria do seu ambiente
cultural doméstico. O "padrão europeu", cuidadosamente mantido, servia
assim para limitar a participação popular à própria escola popular.
A
escola primária e a escola normal prosperavam, mas como escolas de
classe média; a escola acadêmica e o ensino superior ficavam ainda mais
restritos, destinando-se dominantemente a grupos da classe superior
alta. Abaixo dessas classes, média e superior, dormitava, esquecido, o
povo.Toda expansão de educação, é preciso que se leve em conta,
determina a alteração das condições existentes de estabilidade social e,
também, importa em alteração dos tipos de educação anteriormente
dominantes. É fácil compreender que, salvo casos de estados sociais
regressivos, toda sociedade produz a educação necessária à sua
perpetuação.
A sociedade de tipo estagnado que se
produzira, afinal, na América do Sul, tinha, em suas reduzidas
oportunidades educativas, as condições apropriadas à perpetuação do
estado social vigente.Quando a aspiração da educação compulsória para
todos surge, representa este fato um desejo de mudança social. Trata-se
de ampliar a participação dos membros da sociedade na sua comunidade
moral e política; trata-se de ampliar os direitos dos membros da
sociedade; trata-se de melhorar suas condições de trabalho; trata-se de
facilitar oportunidades, não só de participação, mas de ascensão social.
E esta foi a situação em toda a Europa.Entre nós, entretanto,
proclamava-se o ideal da educação compulsória, mas, na realidade, a
sociedade, pelas suas força conservadoras, a ela se opunha. Mil e um
meios são utilizados para se restringirem as facilidades de educação
compulsória. Como já não seriam legítimos tais movimentos de defesa do
status quo, fazem-se eles, tortuosos, sutis e obscuros. A dualidade
social já não pode ser proclamada. Proclamá-la agora é a aspiração à
participação integradora.
Como então evitá-la?
Dificultam-se
os recursos para o empreendimento; ministra-se educação do tipo inútil e
que desencoraje a maioria em prossegui-la; e se a teimosia popular
insistir pela freqüência à escola, abrevia-se o período escolar,
oferece-se o mínimo possível de educação, alega-se que tal se faz por
princípios democráticos, a fim de atender a todos ... Contanto que o
processo educativo perca os seus característicos perturbadores, ou seja,
a sua capacidade de facilitar o deslocamento e a reordenação social, em
virtude da expansão escolar a todos. Depois de assim degradar a
educação popular compulsória, as nossas sociedades, em sua duplicidade
proverbial, entram a manobrar para impedir a ampliação das oportunidades
de educação de nível médio e superior.No período de estagnação social,
nenhuma dificuldade havia para isto. Bastava manter a educação,
propriamente de elite, confiada à iniciativa privada, ou então, com
currículos suficientemente "desinteressantes", em rigor inúteis, para
desencorajar possíveis veleidades desconcertantes ...O fracasso desses
recursos habituais para o controle da expansão educacional, é a surpresa
dos últimos trinta anos da vida brasileira e, acredito, de grande parte
das nações sul-americanas.
A nascente classe média da
década dos vinte, numa sociedade sem tradição de classe média, porque
realmente constituída da casta semi-aristocrática e semifeudal dominante
e do povo propriamente dito, entrou a exigir para si exatamente a
educação acadêmica e semi-inútil da classe alta. Se passasse a exigi-Ia e
tivesse a liberdade de tentar praticá-la experimentalmente, talvez
acabasse criando uma escola que conviesse aos seus interesses e não
prejudicasse a sociedade como um todo. Mas aí é que surgiu o obstáculo:
mantiveram-se as leis antigas, elaboradas para impedir a expansão por
meio de padrões de estudo, altos e complicados. Mantidos que foram tais
padrões e currículos, abriu-se o caminho à falsificação, saída única
para a expansão desejada. A alternativa deveria ser a de experimentação,
de ensaio, de escolas com professores despreparados, mas livres de
tentar ensinar o que soubessem, em progresso gradual com reconhecimento e
classificação a posteriori. Negada tal alternativa, a saída única foi a
ousada simulação do cumprimento dos "padrões" fixados a priori, altos e
impostos pelo centro, fossem lá quais fossem as condições. Já não se
tratava de tateios de ensaios, de esforços modestos, mas sérios, a serem
apreciados a posteriori, repito, por meio de exames de Estado, ou
processos semelhantes de verificação.
Tratava-se de
pura e simples burla; burla de currículos, burla de professores, burla
de alunos. A educação fez-se um ritual, um processo de formalidades,
como se tratasse de algo convencional, que se fizesse legal pelo
cumprimento das formas prescritas.O ideal professado da expansão das
oportunidades educativas, ao invés de promover a educação real de um
número maior de indivíduos, determinou a degradação das próprias formas
destinadas à perpetuação da elite tradicional. Se um grupo social não
tivesse criado para si condições especiais de privilégio, fundadas nos
seus títulos formais de educação, não seria provável que o grupo
ascendente da sociedade quisesse para si uma educação tão pouco
eficiente e muito menos tornada inútil pela simulação e degradação dos
seus próprios padrões. Se a burla ou engano traz vantagens, é que a
sociedade era ainda aquela sociedade impregnada de duplicidade do tempo
da colônia.Trata-se, com efeito, de algo particular, e somente possível,
porque o processo educativo de preparação da "elite" não se fazia com
os recursos culturais reais e locais da vida brasileira, mas constituía
processo especial de incorporação de aspectos de "cultura estrangeira"
ou ainda estrangeira ...
A burla cultural, ou seja, o
charlatanismo, é logo descoberta em qualquer cultura, seja lá qual for o
seu nível. Jamais algum país poderia estabelecer, conscientemente, um
regime de burla cultural. Se tal se dá, em algum país, é que este país
está a burlar algo de estranho à sua própria cultura. Trata-se de
incorporação de algo estrangeiro, cuja importância, não sendo
compreendida nem sentida, parece poder ser burlada sem maiores
conseqüências. É evidente que a educação chamada de "elite" se fazia com
o propósito de formar pessoas para uma cultura alienada da cultura
local ou da cultura de seu tempo. Sabemos, com efeito, que as veleidades
de formação humanística dessas escolas semi-aristocráticas dos nossos
países centro e sul-americanos pretendiam transmitir uma cultura
literária clássica, "latina", e supostamente herdada pelas nossas
culturas indígenas ou mestiças.
A elite colonial
estrangeira, depois a elite monárquica nativa e, por último, a elite
republicana, vinda da Monarquia, todas se enfeitavam com traços dessa
cultura européia e veleidades até de cultura clássica. Somente no século
XX, e mais acentuadamente a partir do fim da segunda guerra mundial, é
que se inicia a desagregação dessa pseudocultura e surgem sinais de uma
autêntica cultura nativa.Diante dessa ruptura dos quadros culturais,
impunha-se, repetimos, a modificação dos "padrões" impostos e o início
de, um regime de liberdade e experiência, com a fixação de padrões a
serem gradualmente atingidos, em sucessivas verificações que, pouco a
pouco, estabelecem, a posteriori, padrões locais, padrões regionais e,
enfim, padrões nacionais. O nacional não se imporia, mas seria o
resultado desejado e buscado, o resultado a alcançar. Por que jamais
estabelecemos essas condições? Por que preferimos os diktats
legislativos, impondo uniformes, rígidos e perfeitos "padrões", para, a
seguir, sob a pressão das força de expansão, conceder autorizações para o
funcionamento de escolas no mais terrível desacordo com tais padrões?
Não é fácil de explicar. Mas, é isto que estamos tentando fazer.
Mantendo
o poder centralizado, dificultando a experimentação e o ensaio,
impondo, artificialmente, "padrões uniformes", que copiávamos de
"modelos" europeus, já na própria Europa, aliás, como antes observamos,
em processo de transformação, tomou o governo central, rigorosamente, a
posição de "metrópole" colonizadora, submetendo a educação a modelos
impostos e alheios às condições sociais e locais. O desejo real seria o
de "coarctar", o de "impedir" a expansão e assim manter o status quo.
Ignorou-se, porém, aquele velho hábito de metamorfosear a realidade por
meio de atos oficiais declaratórios. Logo que a pressão social se fez
suficientemente forte para expandir de qualquer modo as oportunidades
escolares, o grupo social ascendente procurou aproveitar-se daquela
velha atitude de revalidação legal. O controle central, destinado
aparentemente a assegurar a "qualidade" e a obstar a simplificação da
escola, passou a ser, pelo contrário, o próprio instrumento da expansão,
"revalidando" situações, apesar de seu desencontro com os padrões da
lei, por meio de atos que equivaliam a considerá-las idênticas às
daqueles padrões.
O governo central, "poder
concedente", poderoso e distante, fez-se o instrumento da expansão,
autorizando escolas, mediante um sistema de "formalidades" processuais,
fiscalização "nominal" e "legalização" de papéis de exame, dando origem à
criação originalíssima de verdadeiro "cartório educacional", por meio
do qual se "certifica" a educação recebida e se declara não a sua
eficiência, mas a sua legalidade. Educar, no Brasil, transformou-se numa
questão de formalidades técnicas legais, da mesma natureza das que
regem a compra e venda de um imóvel ...A situação não se iniciou com o
desembaraço que hoje a caracteriza. No início houve rigores. Mas o fato
de a escola ser definida em lei e dever ser autorizada a funcionar,
dentro dos "padrões" previstos na lei – altos, perfeitos e rígidos
padrões, a priori fixados – tal fato somente poderia ser compreendido
como um processo de impedir a expansão educacional, ou de não permiti-la
senão quando a escola fosse do tipo conveniente a certa classe, em
condições de aproveitar-se dos padrões estipulados, mais ou menos
estrangeiros e em completa desvinculação com a realidade temporal e
local. Se, em contradição com estes propósitos, a pressão social acabou
por obrigar a expansão de qualquer modo das escolas, havia que mudar a
legislação.
Como não o fizemos, tivemos que manter
apenas na aparência os tais "padrões", duplamente inexeqüíveis:
primeiro, devido à falta de professores e, segundo – o que é mais
importante ainda, se possível – devido a não estarem os alunos de origem
social modesta, que buscavam as novas escolas, nas condições de classe
ou de meio cultural necessárias para tirar real proveito do tipo de
educação puramente acadêmica, previsto nas leis. Para a expansão
imprudente faltavam, assim, professores e alunos do tipo exigido pelos
"padrões" altos e estranhos à cultura local.
Recordemos,
conforme já nos referimos, que também nós tivemos o cuidado de manter
um sistema de ensino dual, embora sem a nitidez do paradigma francês. A
escola primária, a escola normal e as chamadas escolas profissionais e
agrícolas constituíam um dos sistemas; e a escola secundária, as escolas
superiores e, mais recentemente, a universidade, o segundo sistema.
Neste último, dominava a filosofia educacional dos estudos
"desinteressados" ou inúteis, mas supostamente treinadores da mente, e
no primeiro, a da formação prática e utilitária, para o magistério
primário, as ocupações manuais ou os ofícios, as atividades comerciais e
agrícolas.
No propósito de conservar tranqüilizadora
imobilidade social, o Poder Público adotou a política de manter, de
preferência, as escolas primárias, normais, técnicas e agrícolas –
desinteressando-se pelo ensino secundário acadêmico. Estabelecimentos
deste tipo, não manteria senão alguns poucos, considerados de
demonstração ou modelos. A política educacional seria, assim, a de
promover apenas o sistema público de educação, caracterizado por escolas
populares e de trabalho. Com o objetivo disto assegurar é que o Estado
conservou a legislação anterior de ensino, pela qual tinha o ensino
secundário acadêmico o privilégio de constituir-se o meio de acesso ao
ensino superior. Como tal ensino seria dominantemente particular e,
portanto, pago, acreditou-se ser isto suficiente para limitar a sua
matrícula às classes mais abastadas do país. O ensino primário, o normal
e o técnico-profissional continuariam desse modo as vias normais de
educação das classes populares, fechada, assim, a sua possibilidade de
ascensão social. Pois o ensino secundário, destinado a tal ascensão,
seria privado e pago.Tal duplicidade legislativa deu resultado oposto ao
visado. A grande maioria dos alunos das classes modestas, mas
ascendentes, precipitou-se em grande afluxo para as escolas secundárias.
O Estado julgava que, não as criando nem mantendo, poderia conter a
pressão social para o acesso a elas. Mas, não reparou que, embora quase
não as mantivesse, reconhecia, pela equiparação, as escolas
particulares, quantas aparecessem. E isto era o mesmo, ou era mais do
que mantê-las, pois com isto retiraria à matrícula o caráter competitivo
que as escolas públicas desse nível, não sendo para todos, haveria de
adotar. Por outro lado, também não refletiu que, dada a organização da
escola secundária e, sobretudo, a sua mantida filosofia de escolas
apenas para um suposto "treino da mente", tal escola podia ser barata,
enquanto as demais escolas – para "treino das mãos", digamos, a fim de
acentuar o contraste – seriam sempre caras, pois requeriam oficinas,
laboratórios e aparelhagem de alto custo.
E foi deste
modo surpreendente e paradoxal que se abriu o caminho para a expansão
escolar descompassada, que se processou em todo o país, nos últimos
trinta anos... De um lado, passamos a ter a escola secundária,
regulamentarmente uniforme e rígida, de caráter acadêmico, e, portanto,
aparentemente fácil de fazer funcionar, com o privilégio de escola de
passagem para o ensino superior (passagem naturalmente ambicionada por
todos os alunos), de custo módico e entregue à iniciativa particular,
mediante concessão pública; e do outro, um sistema público de educação –
a escola primária, a escola normal, o ensino técnico-profissional,
comercial e o agrícola – sem nenhum privilégio especial, valendo pelo
que conseguisse ensinar e não assegurando nenhuma vantagem, nem mesmo a
de passar para outras escolas. Está claro que o sistema público de
escolas, via de regra, entrou em lento perecimento, enquanto a escola
secundária, em sua mor parte, de propriedade privada, mas reconhecida
oficialmente, com o privilégio máximo de ser a estrada real da educação,
iniciou a sua carreira de expansão, multiplicando muitas vezes a sua
matrícula nos últimos trinta anos. Operada essa expansão, passou-se à do
ensino superior. A escola secundária propedêutica tem de se continuar
na escola superior. Multiplicam-se então as faculdades de filosofia, de
ciências econômicas, de direito e, de vez em quando, mais
audaciosamente, até escolas de medicina e de engenharia.Tudo isto se fez
possível, graças à manutenção de uma legislação anacrônica, destinada a
conter a expansão do ensino e mantê-lo somente acessível às classes
mais abastadas. Com efeito, a concessão desse ensino à iniciativa
privada visava torná-lo um ensino caro. A falta de consciência,
entretanto, da sociedade nascente, em relação às dificuldades de ensino
desse tipo criou a oportunidade para que se multiplicassem exatamente as
escolas desse molde acadêmico.
Sentido surpreendente
dessa evolução. Dois conceitos anacrônicos.Impossível não nos
surpreendermos com tal resultado. Imagine-se que na Inglaterra alguém
pensasse multiplicar Oxford e Cambridge, porque essas universidades
eram, até o fim do século XIX, universidades clássicas, sem ciências nem
tecnologia, puramente humanísticas e, portanto... fáceis de manter!Ao
invés da fusão transformadora dos dois sistemas, que se deu em todas as
nações desenvolvidas, tivemos, no Brasil, a expansão da educação de tipo
dominantemente acadêmico, ou como tal considerada. A educação desse
tipo, a mais difícil das educações, foi aqui tornada a mais fácil e a
mais barata. Mas a população brasileira não está a buscar tais escolas
em virtude dos ensinamentos que ministram, pois realmente pouco ensinam,
mas pelas vantagens que oferecem e pelo menor custo de seus estudos, o
que permite que sejam elas ainda escolas privadas. Como nem professores
nem alunos lá estão seriamente a buscar a educação que a escola
"proclama" oferecer, reduzem-se todos os seus pseudo-estudos a
expedientes para passar nos exames.
Os sistemas
escolares que visamos imitar transformaram-se e hoje são sistemas
unificados de estudos acadêmicos, científicos e tecnológicos, de acesso
baseado na competência e no mérito. Nós, pelo contrário, expandimos tudo
que era, na Europa, resultado de anacronismo ou de errôneas teorias
psicológicas, levando os nossos sistemas escolares ao incrível paradoxo
de se transformarem em uma numerosa congérie de escolas de ensino para o
lazer, em uma civilização dominantemente de trabalho e produção.No
esforço de explicar tal paradoxo, talvez se deva recordar que no século
dezoito gozava grande voga a teoria da educação para a ilustração, de
certo modo aparentada à da educação acadêmica para cultura geral. Tal
educação seria sempre um bem em si mesma e que importaria distribuir a
quantos se pudesse, mesmo em quantidades ínfimas. Não seria impróprio
chamar-se tal concepção de concepção mágica de educação. Diante dela, a
escola passa a ser um bem em si mesma e, como tal, sempre boa, seja
pouca ou inadequada, ou mesmo totalmente ineficiente. Algo será sempre
aprendido e o que for aprendido constituirá um bem.
É
graças a concepções desse feitio que devemos poder racionalizar a nossa
expansão irresponsável de escolas e justificar a nossa coragem de
chamá-las de escolas acadêmicas ou intelectuais.Mas, se conservamos
ainda a concepção perempta e mística dos séculos dezoito e dezenove, não
conservamos as condições dominantes naquele tempo. Temos hoje as mesmas
necessidades dos países desenvolvidos, precisando de nos educar para
novas formas de trabalho e não apenas formas novas de compreender o
nosso papel social e humano, como seria o caso nas tranqüilidades, a
despeito de tudo, do século dezoito.
Daí, então, a
educação – e quando falo em educação compreende-se sempre educação
escolar – precisar ser, tanto num país subdesenvolvido, quanto nos
países desenvolvidos, eficiente, adequada e bem distribuída,
significando por estes atributos: que deve ser eficaz, isto é, ensine o
que se proponha a ensinar e ensine bem: que ensine o que o indivíduo
precisa aprender e mais, que seja devidamente distribuída, isto é,
ensine às pessoas algo de suficientemente diversificado, nos seus
objetivos, para poder cobrir as necessidades do trabalho diversificado e
vário da vida moderna e dar a todos os educandos reais oportunidades de
trabalho.A educação faz-se, assim, necessidade perfeitamente relativa,
sem nenhum caráter de bem absoluto, sendo boa quando, além de eficiente,
for adequada e devidamente distribuída. Já não nos convém qualquer
educação dada de qualquer modo. Deste tipo já é a que recebemos em casa e
pelo rádio e pelo cinema. A educação escolar tem de ser uma determinada
educação, dada em condições capazes de torná-la um êxito, e a serviço
das necessidades individuais dos alunos em face das oportunidades do
trabalho na sociedade.
A contradição entre estas novas
necessidades educativas e o velho conceito místico e absoluto da
escola-bem-em-si-mesma, juntamente com a expectativa de automática
ascensão social pela escola que antes analisamos, deve ajudar-nos a
identificar a gravidade da falsa expansão educacional brasileira.
5) Distância entre os valores proclamados e os valores reais
Estamos,
com efeito, ao contrário do que fizeram os países desenvolvidos, a
inspirar a nossa expansão educacional com os conceitos de
educação-bem-em-si-mesma e de educação exclusivamente para fruição e
lazer, há um século, pode-se dizer, superados. São estes os dois
conceitos errôneos, que, a nosso ver, ainda dominam, na realidade
prática, a política educacional brasileira, quiçá sul-americana: a) a
concepção mística ou mágica da escola, pela qual toda e qualquer
educação tem valor absoluto e, por conseguinte, é útil e deve ser
encorajada por todos os modos; b) a concepção de educação escolar como
processo de passar, de qualquer modo, automàticamente, ao nível da
classe média e ao exercício de ocupações leves ou de serviço e não de
produção.
Respondem tais conceitos pelas
racionalizações com que substituímos os valores que proclamamos pelos
valores reais bem diversos, que praticamos, conforme se poderia
facilmente exemplificar. Assim, ao mesmo tempo em que proclamamos a
importância suprema do ensino primário, aceitamos a sua progressiva
simplificação: pela redução de horários para alunos e professores e a
tolerância cada vez maior de exercício de outras ocupações pelos mestres
primários; pela redução do currículo a um corpo de noções e
conhecimentos rudimentares, absorvidos por memorização, e a
elementaríssima técnica de leitura e escrita; pela precariedade da
formação do magistério primário; pela improvisação crescente de escolas
primárias sem condições adequadas de funcionamento e sem assistência
administrativa ou técnica; pela perda crescente de importância social da
escola primária, em virtude de não concorrer especialmente para a
classificação social dos seus alunos; pela substituição de sua última
série pelo "curso de admissão" ao ginásio, buscado como processo mais
apto àquela desejada "reclassificação social".
Ao mesmo
tempo em que proclamamos o ensino médio como recurso para melhorar o
nível de formação de nossa força de trabalho, admitimos a sua expansão
por meio de escolas ineficientes, com programas livrescos, horários
reduzidos e professores improvisados ou sobrecarregados, em virtude das
expectativas que gera de determinar a passagem para as ocupações de tipo
classe média que é o que realmente buscamos.
Proclamando
a necessidade da formação dos quadros de nível superior, aceitamos,
fundados na mesma duplicidade de objetivos, a improvisação crescente de
escolas superiores, sobretudo aquelas em que a ausência de técnicas
específicas permite a simulação do ensino, ou o ensino simplesmente
expositivo, como as de economia, direito, filosofia e letras.
Nos
demais campos, promovemos, cheios de complacência, campanhas educativas
mais sentimentais do que eficientes, na área da educação de adultos, da
educação rural e do chamado bem-estar social. Resistindo à idéia de
planejamento econômico e financeiro, insinuamos, implicitamente, que se
pode fazer educação sem dinheiro, animando campanhas de educandários
improvisados e crenças ainda menos razoáveis de que toda a educação pode
ser gratuita, para quem quiser, do nível primário, ao superior, sejam
quais forem os recursos fiscais e em que pese a deficiência per capita
da nossa "riqueza nacional".
Poderíamos continuar a
alinhar outros fatos, ou desdobrar os apresentados em outros tantos,
como, por exemplo, os relativos ao currículo secundário,
reconhecidamente absurdo pela impossibilidade de ensinar tantas
matérias, mesmo com professores ótimos, no tempo concedido, mas ainda
assim tranqüilamente aceito em sua ineficiência, porque a educação
sempre foi isto, uma espécie de atirar-no-que-viu-e-matar-o-que-não-viu,
não se concebendo que haja exigência de tempo, espaço, equipamento,
trabalho e dinheiro, acima de um minimum minimorum que torne a educação
sempre possível e para toda a gente. Somente a concepção de educação
como uma atividade de caráter vago e misterioso é que poderia levar-nos a
aceitar essa total e generalizada inadequação entre meios e fins na
escola. A isto é que chamo de concepção mágica da educação, que me
parece a dominante em nosso meio como pressuposta inconsciente e base de
nossa política educacional. Não podemos modificar por ato de força a
mentalidade popular em educação, como não podemos modificar a crença de
muitos no uso, por exemplo, da prece para chover; mas, já chegamos
àquele estágio social em que não oficializamos, não legislamos sobre a
obrigação de preces públicas contra flagelos climatéricos ...Em
educação, há que fazer o mesmo. Toda essa educação de caráter mágico
pode ser permitida, pode ser deixada livre; mas, não deve ser sancionada
tendo conseqüências legais. Este, o primeiro passo para que tais
tentativas sejam realmente tentativas e tenham caráter dinâmico,
tornando possível o progresso gradual das escolas, desse estágio mágico
até o estágio lógico ou científico, em que meios adequados produzam os
fins desejados.
A escola primária entre nós
encontra-se, aliás, nessa situação. Não se dá ao seu diploma nenhum
valor especial e, por esse motivo, chegou a ser uma escola de razoável
autenticidade. Se hoje está perdendo esse caráter é que as escolas de
nível secundário não obedecem ao mesmo regime e, tendo como alto prêmio o
seu diploma, estão atraindo os alunos antes de terminarem o curso
primário, o qual assim se isola e se desvaloriza socialmente.É
indispensável que a escola secundária tenha a mesma finalidade geral
educativa que possui a escola primária, sem outro fim senão o dela
própria. Só assim, como a escola primária, ela será, quando tentativa,
uma tentativa com as vantagens e incertezas de uma tentativa, e quando
organizada e eficiente, uma escola realmente organizada e eficiente,
dando os frutos de sua eficácia.
É felizmente para isto
que marchamos, à medida que a mentalidade da nação, sob o impacto das
mudanças sociais e da extrema difusão de conhecimentos da vida moderna,
vem, gradualmente, substituindo seus conceitos educacionais, ainda
difusos, pelos novos conceitos técnicos e científicos, e apoiando uma
reconstrução escolar, por meio da qual se estabeleça para os brasileiros
a oportunidade de uma educação contínua e flexível, visando prepará-los
para a participação na democracia e para a participação nas formas
novas de trabalho de uma sociedade economicamente estruturada,
industrializada e progressiva. Grande passo neste sentido foi a lei, já
em vigor, de equivalência relativa entre o curso acadêmico e os cursos
vocacionais.
Essa educação, nas primeiras seis séries,
comum e obrigatória para todos, prosseguirá em novos graus, no nível
médio, para os mais capazes e segundo as suas aptidões, visando, como a
de nível primário, à preparação para o trabalho nas suas múltiplas
modalidades, inclusive a do trabalho intelectual, mas não somente para
este.A continuidade da escola – em seus diferentes níveis irá
emprestar-lhe o caráter de escola para todos, sem propósito de
classificação social, dando a cada um o de que mais necessitar e mais se
ajustar à sua capacidade, com o que melhor se distribuirá ou
redistribuirá a população pelas diferentes variedades e escalões do
trabalho econômico e social, segundo as necessidades reais do país em
geral e de suas regiões em particular.Tal sistema de educação popular,
abrangendo de 11 a 12 séries ou graus, permitirá, quando completo ou
integralmente organizado, que o aluno se candidate, após a última série
ou grau, ao ensino superior, pelo regime de concurso. Não visa,
entretanto, ao preparo para esse exame, pois terá finalidade própria,
significando, nos termos mais amplos, a educação da criança, no período
da escola primária, e a educação do adolescente, no da escola média.
O
que será essa educação não será a lei que o vai dizer, mas a evolução
natural do conhecimento dos brasileiros relativamente à criança e ao
adolescente e à civilização moderna e industrial em que a escola, no
primeiro nível, vai iniciar as crianças e, no segundo nível, habilitar
economicamente os jovens adolescentes brasileiros. Tal escola mudará e
transformar-se-á como muda e se transforma toda atividade humana baseada
no conhecimento e no saber. Progrediremos em educação, como
progrediremos em agricultura, em indústria, em medicina, em direito, em
engenharia – pelo desenvolvimento do saber e pelo melhor preparo dos
profissionais que o cultivam e o aplicam, entre os quais se colocam, e
muito alto, os professores de todos os níveis e ramos."
Lista dos 424 que querem Lula candidato!
Há 8 anos