quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Querem impor a mordaça (publicado em O Globo, de 27-12-2011)

"Não é novidade a forma de agir dos donos do poder. Nas três últimas eleições presidenciais, o PT e seus comparsas produziram dossiês, violaram sigilos fiscais e bancários, espalharam boatos, caluniaram seus opositores, montaram farsas. Não tiveram receio de transgredir a Constituição e todo aparato legal.

Para ganhar, praticaram a estratégia do vale-tudo. Transformaram seus militantes, incrustados na máquina do Estado, em informantes, em difamadores dos cidadãos. A máquina petista virou uma Stasi tropical, tão truculenta como aquela que oprimiu os alemães-orientais durante 40 anos.

A truculência é uma forma fascista de evitar o confronto de ideias. Para os fascistas, o debate é nocivo à sua forma de domínio, de controle absoluto da sociedade, pois pressupõe a existência do opositor.

Para o PT, que segue esta linha, a política não é o espaço da cidadania. Na verdade, os petistas odeiam a política. Fizeram nos últimos anos um trabalho de despolitizar os confrontos ideológicos e infantilizaram as divergências (basta recordar a denominação “mãe do PAC”).

A pluralidade ideológica e a alternância do poder foram somente suportadas. Na verdade, os petistas odeiam ter de conviver com a democracia. No passado adjetivavam o regime como “burguês”; hoje, como detém o poder, demonizam todos aqueles que se colocam contra o seu projeto autoritário.

Enxergam na Venezuela, no Equador e, mais recentemente, na Argentina exemplos para serem seguidos. Querem, como nestes três países, amordaçar os meios de comunicação e impor a ferro e fogo seu domínio sobre a sociedade.

Mesmo com todo o poder de Estado, nunca conseguiram vencer, no primeiro turno, uma eleição presidencial. Encontraram resistência por parte de milhões de eleitores. Mas não desistiram de seus propósitos. Querem controlar a imprensa de qualquer forma.

Para isso contam com o poder financeiro do governo e de seus asseclas. Compram consciências sem nenhum recato. E não faltam vendedores sequiosos para mamar nas tetas do Estado.

O panfleto de Amaury Ribeiro Junior (“A privataria tucana”) é apenas um produto da máquina petista de triturar reputações. Foi produzido nos esgotos do Palácio do Planalto. E foi publicado, neste momento, justamente com a intenção de desviar a atenção nacional dos sucessivos escândalos de corrupção do governo federal.

A marca oficialista é tão evidente que, na quarta capa, o editor usa a expressão “malfeito”, popularizada recentemente pela presidente Dilma Rousseff quando defendeu seus ministros corruptos.

Sob o pretexto de criticar as privatizações, focou exclusivamente o seu panfleto em José Serra. O autor chegou a pagar a um despachante para violar os sigilos fiscais de vários cidadãos, tudo isso sob a proteção de uma funcionária (petista, claro) da agência da Receita Federal, em Mauá, região metropolitana de São Paulo. Ribeiro — que está sendo processado — não tem vergonha de confessar o crime. Disse que não sabia como o despachante obtinha as informações sigilosas.

Usou 130 páginas para transcrever documentos sem nenhuma relação com o texto, como uma tentativa de apresentar seriedade, pesquisa, na elaboração das calúnias. Na verdade, não tinha como ocupar as páginas do panfleto com outras reportagens requentadas (a maioria publicada na revista “IstoÉ”).

Demonstrando absoluto desconhecimento do processo das privatizações, o autor construiu um texto desconexo.

Começa contando que sofreu um atentado quando investigava o tráfico de drogas em uma cidade-satélite do Distrito Federal. Depois apresenta uma enorme barafunda de nomes e informações. Fala até de um diamante cor-de-rosa que teria saído clandestinamente do país.

Passa por Fernandinho BeiraMar, o juiz Nicolau e por Ricardo Teixeira. Chega até a desenvolver uma tese que as lan houses, na periferia, facilitam a ação dos traficantes. Termina o longo arrazoado dizendo que foi obrigado a fugir de Brasília (sem explicar algum motivo razoável).

O panfleto não tem o mínimo sentido. Poderia servir — pela prática petista — como um dossiê, destes que o partido usa habitualmente para coagir e tentar desmoralizar seus adversários nas eleições (vale recordar que Ribeiro trabalhou na campanha presidencial de Dilma). O autor faz afirmações megalomaníacas, sem nenhuma comprovação.

A edição foi tão malfeita que não tomaram nem o cuidado de atualizar as reportagens requentadas, como na página 170, quando é dito que “o primo do hoje candidato tucano à Presidência da República...” A eleição foi em 2010 e o livro foi publicado em novembro de 2011 (e, segundo o autor, concluído em junho deste ano).

O panfleto deveria ser ignorado. Porém, o Ministério da Verdade petista, digno de George Orwell, construiu um verdadeiro rolo compressor. Criou a farsa do livro invisível, isto quando recebeu ampla cobertura televisiva da rede onde o jornalista dá expediente.

Junto às centenas de vozes de aluguel, Ribeiro quis transformar o texto difamatório em denúncia. Fracassou. O panfleto não para em pé e logo cairá no esquecimento. Mas deixa uma lição: o PT não vai deixar o poder tão facilmente, como alguns ingênuos imaginam. Usará de todos os instrumentos de intimidação contra seus adversários, mesmo aqueles que hoje silenciam, acreditando que estão “pela covardia” protegidos da fúria fascista.

O PT não terá dúvida em rasgar a Constituição, se for necessário ao seu plano de perpetuação no poder.

O panfleto é somente uma pequena peça da estrutura fascista do petismo."


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O professor Marco Antonio Villa é historiador. Trabalha na Universidade Federal de São Carlos (SP). Ele é a prova viva de que ainda há lucidez nas universidades brasileiras.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Nota ignóbil e mentirosa do PC do B

"Nota ignóbil e mentirosa do PC do B em louvor à ditadura da Coréia do Norte é um acinte aos democratas brasileiros.

O falecido Kim Jong-Il herdou a ditadura do pai a passou ao filho, Kim Jong-un. Já os elogios do PC do B à tirania de regime cruel e corrupto é um insulto aos democratas.

Deixei passar algo ocorrido anteontem, mas, como sempre digo ao amigo do blog, não tenho qualquer problema em comentar fatos que me pareçam importantes mesmo que com atraso.

No caso, a ignóbil nota do PC do B “solidarizando-se” com o “povo norte-coreano” pela morte do ditador sanguinário, ladrão e assassino chamado Kim Jong-Il, que herdou o poder do pai e o transmitiu ao filho e que administrou um desastre completo: um país voltado à plena militarização, cujo povo passa fome, não tem acesso à maioria dos bens da civilização moderna e há décadas é mantido, sob lavagem cerebral incessante, completamente isolado do mundo.

Um regime cruel, que prende, tortura e mata quem considera adversários. Onde não há representação popular e nem algo parecido a um Judiciário, com uma economia capenga e uma minúscula elite dirigente que, em contrapartida, e às custas do povo, tem vida de xeque árabe.


1) Regime que viola e pisoteia direitos


Não saberia dizer se há outro país no mundo que viola tanto e tão sistematicamente os direitos humanos e pisoteia de forma tão completa os direitos civis mínimos de seus cidadãos como a Coréia do Norte.

E, no entanto, a nota do presidente do PC do B, Renato Rabelo, diz, a certa altura:
“O camarada Kim Jong-Il deu continuidade ao desenvolvimento da revolução coreana, inicialmente liderada pelo camarada Kim Il-Sung, defendendo com dignidade as conquistas do socialismo em sua pátria. Patriota e internacionalista promoveu as causas da reunificação coreana, da paz e da amizade e da solidariedade entre os povos.”


2) “Conquistas do socialismo” num país que passa fome


Quais teriam sido as “conquistas do socialismo” num país em que, comprovadamente, centenas de milhares de pessoas já morreram de fome? Em que não há liberdade de expressão para os cidadãos, liberdade de imprensa, liberdade partidária, liberdade sindical? Que “paz” é essa, num país que dedica mais da metade de seu orçamento a gastos militares e que já desenvolveu a bomba atômica?


Outro trecho da nota do presidente do PC do B parece, realmente, uma piada, uma ironia, de tão mentirosa e cínica:

“Durante toda a sua vida de destacado revolucionário, o camarada Kim Jong-Il manteve bem altas as bandeiras da independência da República Popular Democrática da Coreia, da luta anti-imperialista (sic), da construção de um Estado e de uma economia prósperos e socialistas, e baseados nos interesses e necessidades das massas populares.”


3) A miserável Coréia do Norte é definida como “próspera”


“Estado e economia prósperos”? Maior do que a Coréia do Sul capitalista – tem 120 mil quilômetros quadrados, contra 98 mil – e com população menor (25 milhões no Norte, 49 milhões no Sul), o “Estado e economia prósperos” que a ditadura comunista conseguiu “construir” na infeliz Coréia do Norte tem um Produto Nacional Bruto de raquíticos 40 bilhões de dólares, comparado ao 1,5 trilhão de dólares da riqueza do Sul.

A nota do PC do B é um repositório de cinismo e descaramento e, como sempre recordo, essa gente que pensa desse modo é firme aliada do governo Dilma, do qual detém nacos do poder inteiramente desproporcionais ao desprezível apoio eleitoral de que, felizmente, desfrutam das urnas.

A nota do PC do B é vergonhosa e um acinte aos democratas brasileiros.”

(Copiado, e ligeiramente editado, do blog do Ricardo Setti, em 22/12/2011).


Que todos leiam e contenham sua náusea!



PS: O filhote do Kim pai – o KimKim, ou Kinkinzinho, neto do Kim avô – tem uma carinha que lembra uma raça de porquinhos muito comum nos grotões de Minas Gerais: o Tuim. Cresciam soltos, em amável convivência com gatos, galinhas e, até, cachorros. Vagavam pelos quintais fuçando aqui e ali enquanto sua hora não chegava.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Morre Kim Jong Il, baluarte do Socialismo, da Democracia e da Paz no Mundo

(Escrito por Emmanuel Goldstein, do blog VanguardaPopular)


“CAMARADAS!

Sentimos profundamente a morte do camarada Kim Jong Il, nosso melhor amigo, líder e guia incomparável.É imensa e irreparável a nossa perda. Para todos nós a vida do camarada Kim simbolizava o futuro feliz e radioso, significava a certeza de outro mundo possível, em que os homens se verão definitivamente livres da exploração pelo próprio homem.

A morte do camarada Kim é, por isso, uma perda excepcionalmente pesada, não apenas para o bravo povo Norte-Coreano, que, graças ao companheiro Kim, se libertou das cadeias da escravidão capitalista, mas também para os trabalhadores do mundo inteiro, para os maconheiros da USP e para toda a humanidade progressista.

MAS, comunistas, modestos discípulos do grande Kim, o sol da democracia proletária, cabe-nos o dever de saber transformar a nossa dor em energia criadora para prosseguirmos sem desfalecimentos pelo caminho que nos indicou Kim, o Caminho da libertação dos Povos oprimidos pelo capitalismo, o caminho da vitória do Socialismo e do Comunismo no mundo inteiro.

A memória gloriosa do grande Kim permanecerá eternamente viva no coração do Povo Brasileiro que, dirigido pelo glorioso Partido VanguardaPopular, armado com os sábios ensinamentos recebidos do camarada Kim, luta com vigor crescente pela implantação do socialismo groucho-marxista em nossa Pátria e contra os traidores burgueses que vendem o Brasil aos imperialistas ianques.

Tudo faremos para honrar a sagrada memória do camarada Kim, lutando com maior audácia e firmeza pela causa do Socialismo, da Democracia e da Paz Mundial!

Ódio e morte aos imperialistas norte-americanos! VIVA KIM JONG-IL!”

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IMPAGÁVEL! Realmente, a manifestação da VanguardaPopular é muito superior àquela do PC do B. Numa última homenagem, o partido mais stalinista do Brasil vai se chamar, doravante, de PC do K (PC do Kim).

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

PT disputa com PMDB vaga de Kim Jong-il

"A estatal KCTV divulgou um vídeo que mostra que Kim Jong-il fez 69 e faleceu.

PYONGYANG - A presidenta Dilma Rousseff divulgou uma nota de pesar pelo falecimento de King Jong-Il, Grande Líder do povo bom e amigo da Coreia do Norte, dizendo que "após a saída de Fátima Bernardes do Jornal Nacional, o mundo passou a direcionar os olhares para a Coreia do Norte em busca de tendências estético-capilares e do uso criativo do laquê. É uma perda lastimável de um penteado que entrou para a História". A presidenta é contra que Patrícia Poeta assuma o poder em Pyongyang.

O presidente Barack Obama também se manifestou. Diz a nota da Casa Branca: "O ano de 2011 será marcado pela destituição de ditadores sanguinários pelas mãos ora do povo, ora de Deus, ora das tropas americanas, ora do blog de Reginaldo Azedo. Bin Laden, Kadafi e agora Kim Jong-il. Ainda temos até dia 31 para nos livrar de Fidel e Ahmadinejad".

O Congresso brasileiro se rejubilou com a oportunidade histórica de implantar o fisiologismo arejado e altaneiro do século XXI numa ditadura comunista. José Sarney e mais 439 parlamentares do PMDB embarcaram imediatamente para a Coreia do Norte.
"Vamos ocupar a praça principal de Pyongyang e mostrar ao povo coreano os benefícios do voto de cabresto, dos currais eleitorais, do adesismo, das igrejas evangélicas e das concessões de rádio e TV", discursou o presidente do Senado pelo sistema de som do avião.

A iniciativa provocou um racha com o PT, que também se movimentava para emplacar Fernando Pimentel como sucessor natural de Kim Jong-il. "Há ONGs e consultorias na Coreia?", perguntou Orlando Silva, que coordenará a campanha."

(publicado em The i-piauí Herald, em 19/12/2011)

Kim Jong-Il: Um outro mundo é possível (e inevitável)

(Flavio Morgenstern, do blog O Implicante, em 21-12-2011)


“Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.” – Kim Jong-Il



Morreu na sexta-feira Kim Jong-il, ditador da Coréia do Norte, um mito do Tumblr e da indústria de óculos escuros. O ditador, no poder desde 1994, era chamado de “Querido Líder”. Seu pai, Kim Il-sung, era o ‘Grande Líder”, sendo considerado uma espécie de “presidente eterno” da Coréia do Norte até hoje. Uma verdadeira múmia ideológica. É pela alcunha de “líder” que muitos canais de notícias brasileiros, sempre acusados de “direitismo”, o chamaram, com horror à alcunha de “ditador”. A notícia de sua morte só foi divulgada na madrugada de segunda-feira ao Ocidente pela agência de notícias estatal KCTV, para evitar que o ditador aparecesse nas primeiras páginas dos jornais de domingo e do Implicante™.

1) KCTV. Ca-ce-te-vê. Taí um nome que mata o Casseta & Planeta de inveja. “KCTV”. Um fuzil na cara da sociedade. A tal KCTV (impossível parar de repetir isso) atribuiu a morte de Kim Jong-Il à “fadiga” do Líder Supremo e à “dedicação de sua vida ao povo”. Já a agência de notícias sul-coreana Yonhap diz, com base em fontes na Coréia do Norte, que o ditador morrera de ataque cardíaco numa viagem de trem. Deve ter sido na linha que vai pra Guaianazes.

A Coréia do Norte foi governada com mão-de-ferro desde a sua criação, em 1945. Kim Il-sung e Kim Jong-il tornaram a Coréia do Norte o Estado mais totalitário e fechado do mundo. É o único país existente com liberdade econômica tecnicamente inexistente, estagnado em último lugar no índice de liberdade econômica, que analisa a liberdade dos países através de critérios como negócios, comércio, liberdade fiscal, de intervenção do governo, monetária, investimentos, autonomia financeira, corrupção, trabalho e direitos de propriedade, ganhando de todos os países totalitários mais violentos do mundo atual, como Irã, Myanmar, Zimbábue, Líbia, Venezuela (já com menos liberdade do que Cuba), Bielorússia, Cuba, Laos, Turcomenistão, Haiti (aquele que juram ser um retrato do lado podre do “capitalismo”) e Nigéria.

A política da Coréia do Norte foi fechar as portas ao mundo exterior e viver com uma espécie de falsa autonomia completa da realidade. Ainda assim, o país morreria inteiro de fome, não fossem substanciais verbas injetadas por aliados anti-ocidentais, como China e, em menor grau, Rússia. Ainda assim, ambas as grandes potências asiáticas dão sinais de incômodo cada vez maior com o ousado, extravagante e caro irmão menor, sempre a pedir mais dinheiro de fora, tendo como único investimento centralizado as armas nucleares.

2) O que aprendemos com a Coréia do Norte

A Coréia é talvez o único lugar do mundo em que a Guerra Fria ainda não acabou. O Império Coreano foi dominado pelo Japão em 1905, após a Guerra Russo-Japonesa. Uma das batalhas mais violentas da Segunda Guerra no extremo oriente foi em seus pântanos. Com a derrota japonesa no fim da Segunda Guerra, o território foi dividido entre uma zona soviética ao norte e outra ocupada pelos EUA, ao sul. Como em todas as ocupações militares americanas no séc. XX, a situação piorou muito assim que as tropas militares yankees queimaram o chão e deixaram o país sob seu próprio destino.
Desde sempre, ambas as Coréias reinvidicavam supremacia sobre todo o território, não aceitando a cisão imposta pelo inimigo vencedor. A Coréia do Norte, desde seus primeiros dias governada por Kim Il-sung, recusou-se a participar das eleições de 1948 supervisionadas pela ONU, que criaria dois governos distintos. Era o prenúncio da Guerra da Coréia, que separaria os dois territórios para sempre.

A Guerra da Coréia pode ser encarada como a única batalha da Guerra Fria vencida pelos EUA, ou, em termos mais científicos, a menos perdida. Iniciada no segundo mandato do democrata Harry Truman, seria a única guerra iniciada e terminada “rapidamente” por um democrata – dali para frente, a Guerra Fria se caracterizaria por guerras iniciadas por democratas e terminadas por republicanos, ciclo que só foi quebrado com a primeira Guerra do Iraque, na gestão de Bush pai.
Os sistemas comunistas se entendiam por uma irmandade de características comuns. A primeira, que já se afiguraria na primeira Internacional Comunista, mas só se materializaria com a ascensão do Partido Bolchevique, seria o monopólio total do Partido. Se, em Marx, a dialética histórica implica que o capitalismo inevitavelmente não se sustentaria e ruiria, cedendo historicamente seu lugar ao socialismo, os partidos, já pré-criados pelo próprio Marx, subvertem a ordem e forçam uma derrocada que não aconteceria – via de regra pelas armas e terrorismo. É exatamente esse o famoso “outro mundo possível” que propagam como a futura salvação de todos os problemas da humanidade. Segundo discurso do próprio Kim Jong-il, no documentário Team America, esse outro mundo possível não apenas é possível, como inevitável.

Aliada a isso, a segunda característica seria ainda mais determinante: embora o partido local permita alguma discussão interna, assim que uma decisão é tomada entre os seus, toda a sociedade deve aceitá-la sem resignação e posterior discussão. O poder é centralizado ao extremo, com uma pequena aparência de discussão racional que só é tangível a seus cupinchas. A partir deste momento, todo o poder é vertical, nunca permitindo uma horizontalização de decisões. É um sistema muito bem aprendido pelo modelo de decisão por “assembléia”, barbarismo autoritário que viceja até hoje na extrema-esquerda de qualquer universidade.

O caminho está armado para uma crescente centralização totalitária, condição sine qua non para o poder comunista. Ao contrário do que se costuma propalar, o culto da imagem de um líder não foi um desvio da doutrina aplicado por Stálin e, por coincidência, por Mao Zedong e todos os outros líderes comunistas, sendo sim a conseqüência mais inescapável do próprio marxismo.

O stalinismo só vingou com o próprio Stálin. Os outros estados socialistas que iriam nascendo após a Segunda Guerra eram de orientação rigorosamente marxista-leninista (Lênin também era considerado uma espécie de “eterno comandante” do bloco soviético). Apenas no extremo Oriente alguns dirigentes totalitários eram encarados como “pensadores”, tendo então suas idéias alçadas ao mesmo nível de Marx e Lênin. O artigo 2.º da Constituição da República Popular da China de 1978 dizia: “a ideologia norteadora da República Popular da China é o marxismo-leninismo-pensamento de Mao Zedong”. Já no caso da nossa Coréia do Norte, Kim Il-sung já é descrito mais modestamente como “superior a Cristo em amor, superior a Buda em benevolência, superior a Confúcio em virtude e superior a Maomé em justiça”.

Assim, cai-se o mito da esquerda que trata Trotsky como seu velho Dom Sebastião – aquele que foi sem nunca ter sido, e aquele que, se for copiado no que não fez, trará finalmente o socialismo que dá certo. Ditadores como Stalin, Mao, Pol-Pot e os nossos Kim norte-coreanos são vistos como personalistas malucos que destruíram logo o melhor sistema político já criado pelo homem. Curiosamente, seu apelo à quase divinização de figuras que nunca exerceram o poder (ou não por muito tempo) como Trotsky, Che Guevara, Rosa Luxemburgo ou Marighella já personaliza o poder antes mesmo de algum destes figurões ser entronado.

As tomadas de poder pelos comunistas ocorriam, via de regra, por membros da burguesia em arroubos um tanto lunáticos em que se acreditavam proletários. Quase sempre, não recebiam apoio algum da população que juravam defender. Mesmo assim, pode-se definir que uma tomada foi “nativa” quando era realizada sem uma ajuda externa decisivamente importante. Mesmo dilacerada e cindida por três inimigos externos distintos em meio século, dificilmente a subida ao poder na Coréia seria considerada nativa. Grupos pequenos, impopulares e apoiados com tropas da União Soviética (que debandaram em 1948) foram a força motriz para passar como um rolo compressor sobre uma população cujo contato com a palavra “democracia”, ou com a idéia de que têm poder em si para a participação política, foi, por milênios, praticamente nulo.

Mesmo com a anexação oficial da Coréia como colônia do Japão em 1910, ela só se tornou campo de batalha no fim da Segunda Guerra. Kim Il-sung foi um dos que lideraram movimentos de resistência à ocupação japonesa. É levado para a Rússia após causar boa impressão nos líderes vermelhos para um treinamento político e militar adicional.³ O velho Kim, portanto, não era exatamente um intelectual, e sim um grande guerreiro que sobe ao poder absoluto. É o que dá não estudar e se preocupar com invasão de reitoria. Coloca-se um guerrilheiro esquisitão e ultra-nacionalista no alto posto e imediatamente começa-se o massacre.

Todos os partidos se fundem no Partido Comunista, que chega a ter 600 mil membros em dezembro de 1946 (cerca de 10% da população adulta). Como queria hegemonia sobre toda a península coreana, a Coréia do Norte só aparece como Estado dois meses depois de a Coréia do Sul ser declarada Estado independente. O líder sul-coreano era o conservador nacionalista Rhee Syngman, apoiado então pelos EUA. A única coisa em que Syngman e Kim Il-sung concordavam era que a Coréia seria unificada um dia – cada um aspirando ser o grande timoneiro.

O resultado da cisão das Coréias é conhecido. A Coréia do Sul, pelas décadas subseqüentes, virou no máximo uma democracia falha e corrupta. Um processo de democratização começou a surgir nos anos 80: sério e bem-sucedido, tornou o atrasado país autoritário em um dos tigres asiáticos com garras mais afiadas do planeta. Seu IDH, cada vez mais alto, já é maior que o da Dinamarca e se situa quase encostado no da Islândia e de Hong Kong, passando pesos pesados como Israel, Bélgica, Áustria, França, Eslovênia (que soube enriquecer rapidamente aplicando princípios liberais com o desmantelamento da Cortina de Ferro) e Finlândia. Para tal, mantém uma altíssima liberdade econômica, superior a de paraísos fiscais menores como Costa Rica, Panamá e Cabo Verde, tendo realizado uma das privatizações mais ferozes que o mundo já viu.

Seu sistema de educação é considerado o melhor do mundo junto ao chinês e ao finlandês, sendo exportado para o mundo criando escolas baratas e de altíssimo padrão onde quer que sejam encontradas. Sua língua, baseada no alfabeto silábico hangeul, é vista hoje como uma das línguas mais bem estruturadas do mundo, guardando uma riquíssima cultura. Com a abertura ao mundo, a Coréia alçou em menos de 20 anos vôos simplesmente impensáveis, como ter hoje um dos circuitos de Fórmula 1 mais modernos do mundo, além de seu altíssimo desempenho em esportes (o que a Coréia do Norte, mesmo com o totalitarismo favorecendo esportes, nunca conseguiu), a ponto de criar sua própria arte marcial, o Tae Kwon Do, e tecnologia (as versões coreanas de marcas importantes, embora nem sempre igualáveis às originais, são fonte de equipamentos eletrônicos baratos a todo o mundo). Em 1978, o PIB da Coréia do Sul foi quase quatro vezes maior que o do Norte. Hoje, apenas duas décadas de democratização e liberalismo depois, o PIB da Coréia do Norte corresponde a apenas 3,1% do da Coréia do Sul. Tal fato não impede o Querido Líder de gastar com guardas de trânsito femininas escolhidas a dedo por ele para funcionarem como semáforos humanos em ruas sem carros, nem dos projetos faraônicos como uma cidade inteira para mostrar a superioridade comunista em relação ao sul – a cidade de Kijong-Dong, com prédios sem vidro, paredes ou salas: apenas muros de concreto, numa cidade fantasma onde ninguém mora. Isso sem falar nos gastos com conhaque (US$850,000 gastos com Hennessy anualmente) e, claro, as armas nucleares.

3) Kim Jong-il, o Christopher Hitchens deles

Kim Il-sung, o pai de Kim Jong-il, possuía uma contradição em relação a outros comunistas: era praticamente um desconhecido, inclusive dos comunistas coreanos. Graças a isso, não houve resistência à sua ascensão à liderança do partido, nem mesmo por parte da União Soviética, acreditando que seria fácil controlá-lo.4 A guerra da Coréia já foi uma mostra do poder de Kim, por Stálin, finalmente, após um ano de pressão, ajudá-lo a invadir o sul. Mesmo com a guerra terminada poucos meses depois da morte de Stálin, a Guerra Fria coreana nunca mais terminaria. Três milhões de norte-coreanos fogem do norte para o sul durante a guerra. Até 1987, foram 1,663 milhões de coreanos mortos. Mais de um vigésimo do país.

A Coréia do Norte foi o único país a se aproveitar do stalinismo mesmo depois de Stálin morto. A figura do Grande Pai seria importante para Kim Il-sung injetar um caráter mitológico ultrapassando as raias do ridículo para a preparação de seu filho, Kim Jong-il, como seu sucedâneo. Mas logo o líder soviético foi sendo paulatinamente trocado por um fortíssimo apelo nacionalista: desde 1997, três anos após a morte de Il-sung, quando finalmente assumiu todos os cargos que seu pai ocupava, o “Querido Líder” se cercou de uma corte e, com hábitos esquisitíssimos e cafonérrimos, aproveita todo o luxo e ostentação do Ocidente, ao mesmo tempo que tenta livrar seu feudo de qualquer possibilidade de influência, mesmo cultural, externa.

A doutrina aplicada por ele, o socialismo juche (que chega a ser quase oposto ao socialismo baath, de, entre outros, Saddam Hussein), prega a completa auto-suficiência do país em relação ao mundo, embora, como visto, a Coréia só não morre de fome por dinheiro chinês e russo. O país abandonou parte das doutrinas stalinistas (embora também seja descendente direto do leninismo) para uma doutrina xenófoba que busca “pureza racial” aos moldes nazistas.

O corte de contato com o mundo exterior é patrocinado pelas forças armadas. Um departamento do partido tem como principal função verificar se os rádios nas casas das pessoas está sintonizado em freqüências fixas, que permitiriam transmissões do exterior.

Como todo socialismo, além da retórica, há o dinheiro: altos funcionários são muito bem pagos, como generais do Exército, sem falar nas autoridades do partido e da polícia. Os mitos sobre sua pessoa que são passados à população são um show de criatividade: as cartilhas do governo dizem que Kim Jong-il não produz urina ou fezes. Seu nascimento teria sido “sobrenatural”, com uma nova estrela e um arco-íris duplo o “anunciando”, além de um iceberg falante. As estações do ano também teriam repentinamente mudado de inverno para primavera (também não entendi se o iceberg sobreviveu). Toma essa, Moisés.

Foi isso que o mundo perdeu. Não foi um dos ditadores que Lula chamou de “meu amigo, irmão e líder”, nem um destes ditadores que acabam fazendo com que os terroristas que o colocam no poder ganhem o Nobel da Paz, mas não custa também lembrar que, quando o Brasil quis uma vaga no Conselho de Segurança da ONU em 2009, sabe lá Deus pra quê (o que faria se o Querido Líder resolvesse jogar uma bomba atômica no seu antigo inimigo, o Japão, por exemplo?), pensou seriamente em abrir uma embaixada em Pyongyang, quase enviando o embaixador Arnaldo Carrilho para a capital, quando qualquer apoio à candidatura brasileira ao assento permanente no Conselho de Segurança era lucro – inclusive bajular e defender com votos o programa nuclear iraniano. O teatro dos vampiros só não deu certo por um teste nuclear realizado pouco antes da viagem do embaixador – só assim para Celso Amorim dar pra trás. Sequer a Alemanha, que tem 30% de sua energia vinda de usinas nucleares, possui assento permanente, visto ser a derrotada da Segunda Guerra.

Com um país governado tão personalisticamente por um ditador que ditava moda, o mundo tem de ficar de sobreaviso a qualquer novo chilique que passe pela cabeça de seus líderes atômicos. Mas, de fato, há que se comemorar o fim de uma era, e torcer para seu filho, Kim Jong-un, ser alguém provavelmente brega, mas menos desbaratadamente demente. Os riscos são grandes: mas se comemoro até morte de barata, não vejo motivo para não comemorar morte de um ditador sanguinário.”


4)Em tempo (Por Mike Spinelli, publicado no blog jalopnik).

Para enriquecer o relato acima, do Implicante, alguns comentários sobre um dos mais caros fetiches do pequeno ditador.

“Kim Jong-Il, o Querido Líder de um país miserável, no qual a maioria dos cidadãos é pobre demais até para ter uma bicicleta, aproveitou os frutos de sua ditadura ao máximo até sua morte. Muitos desses frutos foram carros da Mercedes-Benz. O finado chefão da Coreia do Norte e fã de observar coisas, cujo nascimento teria sido prenunciado por uma andorinha e anunciado por um arco-íris duplo, morreu neste último final de semana de um ataque cardíaco com (aproximadamente) 69 anos, a bordo do trem que utilizava devido ao medo de aviões.

Durante seu reinado de praticamente 18 anos, a admiração de Kim pelos carros da Mercedes-Benz foi bem documentada. Sempre destoou um pouco o fato de ele utilizar os recursos do país dessa forma, considerando que as sanções das Nações Unidas há muito tempo baniram a venda de itens de luxo no país. Claro que, com a proibição do uso de celulares e da Internet pela população (além de qualquer acesso a informações que não tenham origem estatal) dificilmente alguém no país saberia disso, mesmo que o resto do mundo tivesse conhecimento.

Claro que as sanções nunca impediram o QL (Querido Líder) de entornar meio milhão de verdinhas em conhaque por ano, além de contêineres de lagostas e caviar. Obviamente, Kim tinha bastante dinheiro para gastar nestas e outras coisas. Segundo alguns relatórios, ele guardava cerca de US$ 4 bilhões em bancos europeus. Um desertor revelou que os gastos pessoais de Kim totalizavam 20% do orçamento do país – uma nação com um PIB per capita de apenas R$ 3.550. Isso disponibilizava um capital vasto para alimentar seu fetiche por Mercedes.”


5) CONCLUSÃO: Acima, muito acima do Grande Líder Kim Jong-Il, existe somente um outro. Claro, só pode ser aquele que substituiu o profeta Maomé como interlocutor de Deus e intérprete da Mãe de Todos os Livros: Lula, o Inefável. Seu pensamento síntese: “Sem um dedo, fiz mais que Bill Gates e Steve Jobs”.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Coréia do Norte, PC do B e a morte do ditador

Um dos últimos ditadores da face da terra, um certo Kim Jong Il, morreu no últimos final de semana. O PC do B manifestou-se em nota pela sua direção nacional (que segue abaixo, para a devida apreciação), na data de 20 de dezembro de 2011. Para efeitos de esclarecimentos, a turma do PC do B é a mesma que controla o Ministério dos Esportes do governo brasileiro atual (basta lembrar do tal Orlando Silva, ministro defenestrado por corrupção, e que gostava de usar o cartão corporativo para pagar conta de R$5 reais de tapioca e caldo de cana consumidos em feira ao ar livre). Essa gente perigosa também está infiltrada nas áreas da saúde, da administração pública e, principalmente, nas escolas do Brasil, de todos os níveis, diga-se a propósito. Pela sua forma de ver o mundo dá para se imaginar os riscos que sofrem as crianças e os jovens que estão sob sua área de influência. Que ninguém pense que o documento abaixo seja "fake", ou fruto de algum humorista. Os companheiros, ou camaradas, não se sabe bem que tratamento seria o mais correto, pensam exatamente como se expressam. Depois ficam ofendidos, magoados mesmo, quando alguém critica o aventureirismo em que se meteram durante o regime militar. A verdade é que não esqueceram nada e não aprenderam nada. Certamente, não batem bem da bola.

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"Estimado camarada Kim Jong Um
Estimados camaradas do Comitê Central do Partido do Trabalho da Coréia

Recebemos com profundo pesar a notícia do falecimento do camarada Kim Jong Il, secretário-geral do Partido do Trabalho da Coreia, presidente do Comitê de Defesa Nacional da República Popular Democrática da Coreia e comandante supremo do Exército Popular da Coreia.

Durante toda a sua vida de destacado revolucionário, o camarada Kim Jong Il manteve bem altas as bandeiras da independência da República Popular Democrática da Coreia, da luta anti-imperialista, da construção de um Estado e de uma economia prósperos e socialistas, e baseados nos interesses e necessidades das massas populares.

O camarada Kim Jong Il deu continuidade ao desenvolvimento da revolução coreana, inicialmente liderada pelo camarada Kim Il Sung, defendendo com dignidade as conquistas do socialismo em sua pátria. Patriota e internacionalista promoveu as causas da reunificação coreana, da paz e da amizade e da solidariedade entre os povos.

Em nome dos militantes e do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) expressamos nossas sentidas condolências e nossa homenagem à memória do camarada Kim Jong Il.

Temos a confiança de que o povo coreano e o Partido do Trabalho da Coreia irão superar este momento de dor e seguirão unidos para continuar a defender a independência da nação coreana frente às ameaças e ataques covardes do imperialismo, e ao mesmo tempo seguir impulsionando as inovações necessárias para avançar na construção socialista e na melhoria da vida do povo coreano.

Renato Rabelo, presidente nacional do PCdoB e Ricaro Abreu Alemão secretário de Relações Internacionais do PCdoB"

sábado, 17 de dezembro de 2011

De peito aberto - Nelson Mota

(Publicado em O Globo, de 16-12-2011)

"Que Praça Tahir que nada, Ocuppy Wall Street é passado, que indignados conseguem chamar mais atenção para suas causas? Entre as novas formas de manifestações e protestos na era digital, a mais sensacional é o coletivo ucraniano Femen. Mulheres lindas, louras e nuas, ou quase, protestando em via pública pelas mais variadas causas, não necessariamente feministas.

De peito aberto, elas gritam contra a corrupção, as fraudes eleitorais, a violência contra mulheres, a prostituição, e ganham espaços espetaculares na mídia planetária. Os policiais encarregados de reprimi-las ficam nervosos e cheios de dedos, elas esperneiam e gritam enquanto eles tentam cobrir a nudez ultrajante com a manta da hipocrisia. Epa! Nudez ultrajante? Manta da hipocrisia? Menos, colunista, menos.

As manifestações começaram em Kiev, mas as garotas do Femen ficaram tão famosas que até já atuaram como protestantes-convidadas na Rússia. Se continuarem tão requisitadas para manifestações na Europa, em breve poderão programar uma turnê internacional de protestos.

Hoje elas são cerca de 300 militantes na Ucrânia, mas a tropa de choque que vai para as ruas tem 40 ativistas, não por acaso as mais bonitas e com melhores atributos para a missão. Logo se abriu outra discussão entre as feministas, sobre a ausência de barangas no núcleo duro, ou macio, das manifestações. Elas negam e dizem que já houve até uma sexagenária topless. Mas é exceção, a tática é mesmo escalar as mais gatas para chamar a atenção. É um bom uso para a beleza.

Feministas americanas históricas como Betty Friedan e Germaine Greer ficariam histéricas diante das lourinhas e louraças do Femen e seus corpos avassaladores.

Não se discutem os méritos das suas causas, mas a eficiência dos seus métodos e práticas, as reações que provocam. Elas invertem o jogo de mulheres nuas como objetos sexuais dos homens, e exercem seu poder exibindo o corpo, não como oferta ou sedução, mas como um veículo de suas vontades.

São elas que estão em controle, aos homens resta ficar olhando e desejando - mas terão delas apenas as suas palavras de ordem e seus slogans."

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O pensamento de FHC analisado por Millôr Fernandes

"LIÇÃO PRIMEIRA

De uma coisa ninguém podia me acusar — de ter perdido meu tempo lendo FhC (superlativo de PhD). Achava meu tempo melhor aproveitado lendo o Almanaque da Saúde da Mulher. Mas quando o homem se tornou vosso Presidente, achei que devia ler o Mein Kampf (Minha Luta, em tradução literal) dele, quando lutava bravamente, no Chile, em sua Mercedes (“A mais linda Mercedes azul que vi na minha vida”, segundo o companheiro Weffort, na tevê, quando ainda não sabia que ia ser Ministro), e nós ficávamos aqui, numa boa, papeando descontraidamente com a amável rapaziada do Dops-DOI-CODI.

Quando, afinal, arranjei o tal Opus Magno — Dependência e Desenvolvimento na América Latina — tive que dar a mão à palmatória. O livro é muito melhor do que eu esperava. De deixar o imortal Sir Ney morrer de inveja. Sem qualquer partipri, e sem poder supervalorizar a obra, transcrevo um trecho, apanhado no mais absoluto acaso, para que os leitores babem por si:

“É evidente que a explicação técnica das estruturas de dominação, no caso dos países latino-americanos, implica estabelecer conexões que se dão entre os determinantes internos e externos, mas essas vinculações, em que qualquer hipótese, não devem ser entendidas em termos de uma relação “causal-analítica”, nem muito menos em termos de uma determinação mecânica e imediata do interno pelo externo. Precisamente o conceito de dependência, que mais adiante será examinado, pretende outorgar significado a uma série de fatos e situações que aparecem conjuntamente em um momento dado e busca-se estabelecer, por seu intermédio, as relações que tornam inteligíveis as situações empíricas em função do modo de conexão entre os componentes estruturais internos e externos. Mas o externo, nessa perspectiva, expressa-se também como um modo particular de relação entre grupos e classes sociais de âmbito das nações subdesenvolvidas. É precisamente por isso que tem validez centrar a análise de dependência em sua manifestação interna, posto que o conceito de dependência utiliza-se como um tipo específico de “causal-significante’ — implicações determinadas por um modo de relação historicamente dado e não como conceito meramente “mecânico-causal”, que enfatiza a determinação externa, anterior, que posteriormente produziria ‘conseqüências internas’.”

CONCURSO

Qualquer leitor que conseguir sintetizar, em duas ou três linhas (210 toques), o que o ociólogo preferido por 9 entre 10 estrelas da ociologia da Sorbonne quis dizer com isso, ganhará um exemplar do outro clássico, já comentado na primeira parte desta obra: Brejal dos Guajas — de José Sarney.

LIÇÃO SEGUNDA

Como sei que todos os leitores ficaram flabbergasted (não sabem o que quer dizer? Dumbfounded, pô!) com a Lição primeira sobre Dependência e Desenvolvimento da América Latina, boto aqui outro trecho — também escolhido absolutamente ao acaso — do Opus Magno de gênio da “profilática hermenêutica consubstancial da infra-estrutura casuística”, perdão, pegou-me o estilo. Se não acreditam que o trecho foi escolhido ao acaso, leiam o livro todo. Vão ver o que é bom!

Estrutura e Processo: Determinações Recíprocas

“Para a análise global do desenvolvimento não é suficiente, entretanto, agregar ao conhecimento das condicionantes estruturais a compreensão dos ‘fatores sociais’, entendidos estes como novas variáveis de tipo estrutural. Para adquirir significação, tal análise requer um duplo esforço de redefinição de perspectivas: por um lado, considerar em sua totalidade as ‘condições históricas particulares’ — econômicas e sociais — subjacentes aos processos de desenvolvimento no plano nacional e no plano externo; por outro, compreender, nas situações estruturais dadas, os objetivos e interesses que dão sentido, orientam ou animam o conflito entre os grupos e classes e os movimentos sociais que ‘põem em marcha’ nas sociedades em desenvolvimento. Requer-se, portanto, e isso é fundamental, uma perspectiva que, ao realçar as mencionadas condições concretas — que são de caráter estrutural — e ao destacar os móveis dos movimentos sociais — objetivos, valores, ideologias —, analise aquelas e estes em suas relações e determinações recíprocas. (…) Isso supõe que a análise ultrapasse a abordagem que se pode chamar de enfoque estrutural, reintegrando-a em uma interpretação feita em termos de ‘processo histórico’(1). Tal interpretação não significa aceitar o ponto de vista ingênuo, que assinala a importância da seqüência temporal para a explicação científica — origem e desenvolvimento de cada situação social — mas que o devir histórico só se explica por categorias que atribuam significação aos fatos e que, em conseqüência, sejam historicamente referidas.
(1) Ver, especialmente, W. W. Rostow, The Stages of Economic Growth, A Non-Communist Manifest, Cambridge, Cambridge University Press, 1962; Wilbert Moore, Economy and Society, Nova York, Doubleday Co., 1955; Kerr, Dunlop e outros, Industrialism and Industrial Man, Londres, Heinemann, 1962.”

Comentário do Millôr, intimidado:

A todo momento, conhecendo nossa precária capacitação para entender o objetivo e desenvolvimento do seu, de qualquer forma, inalcançável saber, o professor FhC faz uma nota de pata de página. Só uma objeçãozinha, professor. Comprei o seu livro para que o senhor me explicasse sociologia. Se não entendo o que diz, em português tão cristalino, como me remete a esses livros todos? Em inglês! Que o senhor não informa onde estão, como encontrar. E outra coisa, professor, paguei uma nota preta pelo seu tratado, sou um estudante pobre, não tenho mais dinheiro. Além do que, confesso com vergonha, não sei inglês. Olha, não vá se ofender, me dá até a impressão, sem qualquer malícia, que o senhor imita um velho amigo meu, padre que servia na Paróquia de Vigário-Geral, no Rio. Sábio, ele achava inútil tentar explicar melhor os altos desígnios de Deus pra plebe ignara do pequeno burgo e ensinava usando parábolas, epístolas, salmos e encíclicas. E me dizia: “Millôr, meu filho, em Roma, eu como os romanos. Sendo vigário em Vigário-Geral, tenho que ensinar com vigarice”.

LIÇÃO TERCEIRA

Há vezes, e não são poucas, em que FhC atinge níveis insuperáveis. Vejam, pra terminar esta pequena explanação, este pequeno trecho ainda escolhido ao acaso. Eu sei, eu sei — os defensores de FhC, a máfia de beca, dirão que o acaso está contra ele. Mas leiam:

“É oportuno assinalar aqui que a influência dos livros como o de Talcot Parsons, The Social System, Glencoe, The Free Press, 1951, ou o de Roberto K. Merton, Social Theory and Social Structure, Glencoe, The Free press, 1949, desempenharam um papel decisivo na formulação desse tipo de análise do desenvolvimento. Em outros autores enfatizaram-se mais os aspectos psicossociais da passagem do tradicionalismo para o modernismo, como em Everett Hagen, On the Theory of Social Change, Homewood, Dorsey Press, 1962, e David MacClelland, The Achieving Society, Princeton, Van Nostrand, 1961. Por outro lado, Daniel Lemer, em The Passing of Traditional Society: Modernizing the Middle East, Glencoe, The Free Press, 1958, formulou em termos mais gerais, isto é, não especificamente orientados para o problema do desenvolvimento, o enfoque do tradicionalismo e do modernismo como análise dos processos de mudança social”.

Amigos, não é genial? Vou até repetir pra vocês gozarem (no bom sentido) melhor: “formulou (em termos mais gerais, isto é, não especificamente orientados para o problema do desenvolvimento) o enfoque (do tradicionalismo e do modernismo) como análise (dos processos de mudança social)”.

Formulou o enfoque como análise!

É demais! É demais! E sei que o vosso sábio governante, nosso FhC, espécie de Sarney barroco-rococó, poderia ir ainda mais longe. Poderia analisar a fórmula como enfoque.
Ou enfocar a análise como fórmula.

É evidente que só não o fez em respeito à simplicidade de estilo.



- Tópico avulso sobre imodéstia e pequenos disparates do eremita preferido dos Mamonas Assassinas:

Vaidade todos vocês têm, não é mesmo? Mas há vaidades doentias, como as das pessoas capazes de acordar às três da manhã para falar dois minutos num programa de tevê visto por exatamente mais ou menos ninguém. Há vaidades patológicas, como as de Madonas e Reis do Roque, só possíveis em sociedades que criaram multidões patológicas.

Mas há vaidades indescritíveis. Vaidade em estado puro, sem retoque nem disfarce, tão vaidade que o vaidoso nem percebe que tem, pois tudo que infla sua vaidade é para ele coisa absolutamente natural. Quem é supremamente vaidoso, se acha sempre supremamente modesto. Esse ser existe materializado em FhC (superlativo de PhD). Um umbigo delirante.

O que me impressiona é que esse homem, que escreve mal — se aquilo é escrever bem o meu poodle é bicicleta — e fala pessimamente — seu falar é absolutamente vazio, as frases se contradizem entre si, quando uma frase não se contradiz nela mesma, é considerado o maior sociólogo brasileiro.

Nunca vi nada que ele fizesse (Dependência e Desenvolvimento na América Latina, livro que o elevou à glória, é apenas um Brejal dos Guajas, mais acadêmico) e dissesse que não fosse tolice primária. “Também tenho um pé na cozinha”, “(os brasileiros) são todos caipiras”, “(os aposentados) são uns vagabundos”, “(o Congresso) precisa de uma assepsia”, “Ser rico é muito chato”, “Todos os trabalhadores deviam fazer checape”, “Não vou transformar isso (a moratória de Itamar) num fato político”. “Isso (a violência, chamada de Poder Paralelo) é uma anomia”. E por aí vai. Pra não lembrar o vergonhoso passado, quando sentou na cadeira da prefeitura de São Paulo, antes de ser derrotado por Jânio Quadros, segundo ele “um fantasma que não mete mais medo a ninguém”. Eleito prefeito, no dia seguinte Jânio Quadros desinfetou a cadeira com uma bomba de Flit.

E, sempre que aproxima mais o país do abismo no qual, segundo a retórica política, o Brasil vive, esse FhC (superlativo de PhD) corre à televisão e deita a fala do trono, com a convicção de que, mais do que nunca, foi ele, the king of the black sweetmeat made of coconuts (o rei da cocada preta), quem conduziu o Brasil à salvação definitiva e à glória eterna. E que todos querem ouvi-lo mais uma vez no Hosana e na Aleluia. Haja!"

FONTE: escrito por Millôr Fernandes; transcrito do blog O Esquerdopata.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A menina dentro do sopro (Shala Andirá)

A menina tem os olhos cor de cinza adormecida.
A menina chove dentro do sopro na orla sanguínea.
A menina chove azul, fininha, como grafite
quando definha. A menina chove
porque o que resta: é cheiro
de pingo tocando o chão do asfalto e a mágica do
céu cuspindo raio num sopro de trovão perseguindo o vento,
bem alto.

A menina chove dentro da teia de aranha
fiando diamantes líquidos por sobre o que
permanece calado dentro das pupilas.
A menina chove por que não há o que fique
mais claro do que o que se lê, no esforço relicário
de reler um grafite cinza claro.
A menina chove dentro do sopro.
Perto da sístole que é onde o coração
se contrai virando o jogo.

A menina chove o barulhinho, para quando ele dormir
poder sonhar, quem sabe, tudo de novo.
A menina chove dentro coração.
Dentro da praça no meio do povo.

Porque há um algo qualquer que se consome lento
no silêncio da ópera. No barulhinho brando da
madeira que um dia foi fogo:

(estalando o esmalte das línguas
até que chegaram: as vírgulas).
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(Para desatar nós e desapertar laços)

Mármore (Shala Andirá)

Partes mortas dançam
onde descansam os dedos do homem frágil.
Morrem mais as desesperanças e
se, não há fim, há sempre começo.

É preciso que haja vida, pois a morte é precisa
e antes que ele diga do excesso, surgirá
no calor o contorno lírico dos lábios e haverá
sorrisos,
na despedida das coisas perdidas, brincando
esse amor como coisa desmedida.

Esculpida de flores foi ganhando forma
de uma música infinita extraída do muro,
que girava em torno do menino
que tocava um violão sem cordas,
desacreditando no destino.


(Shala Andirá nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, em 19 de março de 1974)

Uma lição para a vida - Prof. Roberto DaMatta

(Publicado em O Estado de São Paulo - 14-12-2011)

Roberto daMatta é um notável antropólogo brasileiro. E um grande professor, acrescente-se. O texto abaixo é uma aula digna de ser multiplicada e repetida ao longo dos anos. Quem conhece o ambiente acadêmico brasileiro poderá entender as razões que fazem de Harvard a mais prestigiosa universidade do mundo. Roberto daMatta torna clara a maneira como se concretiza a mais brilhante recomendação kantiana: o pensar com a própria cabeça! O artigo segue abaixo.


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"Na minha primeiríssima e inesquecível - quem não se lembra de toda primeira e última vez? - estada nos Estados Unidos, em 1963, eu - um humilde e inseguro aprendiz de antropologia social numa portentosa Harvard - fiquei tão chocado quanto deslumbrado quando ouvia meninos e meninas com 20 e poucos anos de idade "discordarem" das idéias que saíam como cascata da obra dos grandes gênios das ciências sociais. Especialmente dos seus inventores, aqueles orgulhosos, persistentes, obsessivos e desafiadores Durkheim, Marx, Tocqueville, Frazer, Hocart, Mauss, Tylor, Maine, Weber... que em vez de policiarem e decretarem sobre o mundo, decidiram fazer o mais difícil: compreendê-lo em seus próprios termos. Esse modo mais complexo e profundo de transformá-lo.

Eu ficava apatetado e cheio de culpa quando meus colegas, uns merdinhas de olhos azuis claros como a inocência das louras que clamavam terem sido estupradas por negros, diziam em alto e bom som: "Eu discordo de Mauss!"; "Durkheim estava errado!"; "Preocupa-me a posição de Weber!"; "Marx perdeu o bonde!"; e assim por diante.

O modo tranquilo com que meus colegas, debaixo do olhar aprovador dos nossos professores, discordavam desses pioneiros me perturbava, pois quanto mais originais eram suas teorias, mais eles eram criticados. As opiniões não eram meras apreciações formais ou elogiosas de um iniciante ajoelhado diante de um mestre, mas uma assertiva sempre negativa e ostensivamente contrária ao que era discutido que, sendo boa ou profundamente enganada, promovia a discussão das idéias gerais contidas no livro em debate. Desse modo, todos (menos eu) faziam questão de bater de frente e essa atitude que para mim, surgia como hipercrítica, e até mesmo agressiva, passava por um crivo que eu não havia aprendido e certamente não existia no Brasil. O filtro de um ponto de vista individual e não a perspectiva pessoal que tende a atenuar ou arrefecer o debate e a apreciação do outro.

Entendi que estava no universo dos "eus". De fato, o que eu mais ouvia era o pronome pessoal "I" (eu). Entendi por que em inglês a primeira pessoa do singular, o "eu", é escrito com letra maiúscula...

Nesse contexto, passei por uma experiência decisiva. Num seminário sobre a história da antropologia, dirigido pela professora Cora Du Bois, uma pioneira, ao lado de Margaret Mead e Ruth Bennedict na prática da antropologia social, uma mulher que havia feito trabalho de campo na Ilha de Alor, na Indonésia, quando nós, no Brasil, achávamos um problema ir a Niterói e impossível conhecer Manaus, eu apresentei um desses autores clássicos. Não me lembro mais quem era, mas não me esqueci da luz que essa experiência lançou na diferença entre o meu modo de aprender e o dos meus colegas harvardianos. Pois quando terminei o meu resumo, recebi da professora uma pergunta surpreendente.

- Sua apresentação está mais do que correta! - disse Cora Du Bois -, mas o que eu quero mesmo é saber o que você pensa sobre as teorias que acabou de apresentar.
A ênfase no "você" que individualizava e buscava a minha opinião íntima - o sentimento de um "eu" que mal sabia era autônomo e tomava partido - deixou-me embasbacado. Eu jamais havia pensado em me distanciar e me individualizar diante do autor estudado. Pelo contrário, eu havia feito exatamente o oposto e me identificava com ele preparando-me para defendê-lo a todo custo. Jamais havia passado pela minha cabeça que era possível e desejável formar uma opinião pessoal sobre ele e, eis o espanto, que essa opinião, mesmo sendo a de um jovem iniciante, contava e a experiente e sábia professora fazia questão de ouvi-la.

No Brasil eu era bamba em discutir ideias, projetos, leis e sistemas políticos sem ser obrigado a tomar posição em relação ao que estava em pauta. Aliás, o que eu aprendia era jamais criticar certos autores e, pela mesma moeda, elogiar outros. Mas entre o lado direito e o esquerdo, o alto e o baixo, o bom e o ruim não havia nenhum espaço para dizer o que eu realmente pensava de cada um deles.

Meu aprendizado não era individual. Era pessoal e grupal no sentido de que cada grupo ou turma tinha seus padrinhos e heróis, bem como seus inimigos e bandidos, como figuras para serem idolatradas e admiradas, a ponto de jamais serem apreciadas de modo individualizado. Sabíamos definir socialismo e liberalismo, mas não aprendíamos a tomar uma posição sobre cada um desses sistemas - e a exprimir o que eles diziam para cada um de nós.

Éramos, como ocorre em tantas outras esferas da vida social brasileira (e, imagino, latino-americana), contra ou a favor. Não líamos Marx, éramos marxistas! Ou reacionários, porque simpatizávamos com Durkheim, que jamais falou em luta de classes. Mas, entre um e outro, jamais fazíamos como aqueles meninos de Harvard que tomavam um partido individual relativamente a cada autor e assim mediam suas aversões e simpatias às suas idéias, métodos e teorias. E isso, parece, faz diferença. A diferença entre a repetição e o modismo e a verdadeira criatividade."

A mão inteligente - Cláudio de Moura Castro

(Publicado em O Estado de São Paulo - 14 de dezembro de 2011)



O grande economista Cláudio de Moura Castro comenta importantes princípios já conhecidos há séculos, porém tão negligenciados na atualidade. Dentre os exemplos históricos, reporta-se ele aos trabalhos desenvolvidos pelos "Compagnons du Devoir", ou Companheiros do Dever, organização mantida pela Maçonaria Francesa. Este oriente da Sublime Ordem foi além da dimensão simbólica, aplicando na vida prática os preceitos e, sobretudo, o tempo necessário para erigir um Mestre, respeitado na sua literalidade (passando pelo grau de Aprendiz e Companheiro). A construção de templos à virtude e de masmorras ao vício obriga o irmão a aprender a não só lapidar a pedra bruta mas, também, elaborar os projetos e as plantas das obras a fazer. A Maçonaria brasileira muito teria a contribuir para as transformações sociais da Pátria se abraçasse a experiência dos Compagnons du Devoir, fugindo das meras e rotineiras abstrações inefáveis do seu cotidiano. Realmente, o homem pensa porque tem mãos! O artigo de Cláudio Moura Castro segue abaixo.

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"Entre os 10 e os 16 anos, como freqüentava uma escola medíocre, de interior, em vez de estudar assuntos chatos e mortos, passava o tempo livre nas oficinas de manutenção de uma fábrica local. Guiado pelos velhos mestres, serrei, preguei, limei e bati martelo nas forjas. Deslumbrava-me com a vida e os desafios das oficinas. Passados os anos, descobri que a minha inteligência se desenvolveu mais lidando com problemas na bancada do que nos bancos escolares.

A percepção de que se aprende com as mãos é moeda corrente nas corporações de ofício europeias, de origem medieval. Para os Compagnons du Devoir (França), "o conhecimento mora na cabeça, mas entra pelas mãos". Ou seja, "a inteligência da mão existe" (J. Berger). Segundo os compagnons, o homem teria duas inteligências, uma especulativa e outra prática, por isso tem uma cabeça e duas mãos. Para eles, lógica se aprende resolvendo problemas de torneiras ou encaixes.

Ruminações de serralheiros e carapinas? Nem tanto, pois o filósofo grego Anaxágoras afirmou: "Por ter mãos, o homem é o mais inteligente dos animais". Ou, se queremos artilharia pesada, que tal Kant, para quem a "mão é a janela da mente"? O papel do lado prático da escola aparece em Montessori e outros, ganhando força na escola de Rudolf Steiner. Infelizmente, a escola foi atropelada pelo peso do academicismo, ficando meio artificial. Foi monopolizada por gente voltada para a "inteligência especulativa". O uso das mãos sumiu da escola. Com a miragem do "knowledge worker", ter-se-ia tornado um apêndice subalterno, cuja única função é apertar teclas.

Mas eis que o assunto desperta, com novas roupagens e escoltado pela melhor ciência neurofisiológica. Charles Bell fala da "mão inteligente". De fato, descobriu-se que a mão se comunica com o cérebro por múltiplos circuitos neuronais, enleando-se promiscuamente com os da inteligência. Ou seja, foi mapeado um acesso privilegiado da mão ao pensamento. Alguns pesquisadores afirmam que, dispondo de um instrumento tão sofisticado e sensível, a mão do homem fez o cérebro evoluir. Aceitemos, pois, como séria a teoria de que aprendemos com as mãos.

Duvidam? Mostre-se a uma pessoa um canivete, de todos os ângulos, com todos os detalhes. Aparentemente, tudo foi visto. Mas, inevitavelmente, virá o pedido: "Deixa eu ver" - levando à cuidadosa manipulação do objeto. Se os olhos já haviam visto tudo, faltava às mãos enxergar.

Diante disso, por que deixa de ser usado na escola esse grande livro-texto que são as mãos?

Aprendemos ao segurar, medir, pesar e desmontar. Aprendemos quando usamos ferramentas, quando resolvemos os mil problemas de construir alguma coisa ou de consertar um aparelho. Não creio que deslindar sujeitos e predicados em Os Lusíadas seja mais educativo do que deduzir logicamente por que a lâmpada não acende. Pesquisar um circuito elétrico, com diagramas e aparelhos de testes, é analiticamente tão denso quanto muito do que se pretende fazer na escola. Além disso, obriga aos múltiplos saltos entre a abstração do circuito no papel e os componentes do circuito de verdade. É assim que se aprende teoria, pendulando entre ela e a prática, num vaivém permanente.

Perry Wilson, um estudante americano, tinha dificuldades medonhas em Matemática. Tropeçou sucessivamente ao longo do curso, acabando vencido no início do seu curso superior. Frustrado, foi aprender carpintaria, para fazer casas. Como as casas daquele país são feitas pelo próprio carpinteiro, incluindo muito trabalho com plantas e cálculos, logo descobriu que a mesma Matemática que o havia maltratado era agora óbvia e fácil. Impressionado com a descoberta, criou um programa chamado "If I had a hammer", no qual os alunos participantes constroem uma cabana de madeira no pátio da escola. Mas como acontece com as casas de verdade, antes de serrar e pregar há muita planta e muita conta para fazer, além de outros conhecimentos requeridos. Surpresa! Em poucos dias, observa-se um substancial aumento nas notas de Matemática dos alunos participantes.

Cabe uma advertência, pois não se trata de exumar a disciplina de "Trabalhos Manuais", já desmoralizada pelo seu título rasteiro e pouco casando pensamento e ação. No tempo limitado da escola, é preciso escolher atividades em que haja uma interação feliz e fértil entre a mão e a cabeça. Recortar figuras de revistas é manual, mas intelectualmente pobre. Demonstrar um teorema é um exercício mental demasiado distante do mundo das coisas. Mas o Teorema de Pitágoras pode ser aprendido na rua. Por exemplo, como traçar no solo um ângulo reto, dispondo apenas de um pedaço de barbante?

A abstração é a culminância do desenvolvimento intelectual do homem. Mas a capacidade de operar na estratosfera das teorias não vem pronta de fábrica. De fato, o aprendizado de teorias rarefeitas arrisca-se a virar pura decoreba se não começar vendo, pegando e medindo. O tal "knowledge worker", tão de moda, precisa ser educado no concreto e no real, depois é que vem o descolamento progressivo do sensorial. As atividades escolares deveriam ser escolhidas de forma a criar o máximo de oportunidades de usar as mãos para aprender. Como, de uma forma ou de outra, tais atividades vêm sendo feitas por incontáveis anos, não se trata de inventar, mas de recuperar o melhor que já apareceu.

O que era uma percepção intuitiva de alguns hoje percebemos ser ciência respeitável, demonstrando que a mão é inteligente e, portanto, é utilíssima no aprendizado, tanto do prático como do teórico. Por que a nossa escola insiste em refugiar-se nas brumas de um intelecto que ignora a riqueza intelectual das mãos?"


(Claudio de Moura Castro, economista e verdadeiramente especialista em Educação).

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Marketing do desejo - Luiz Felipe Pondé

(Publicado na Folha de São Paulo em 12-12-2011)


"Mais importante do que o sucesso é passar uma imagem de sucesso." Você pode ouvir uma frase como esta em qualquer palestra brega de motivação em recursos humanos.
Já disse antes que acho palestras assim a coisa mais brega que existe. Mais brega do que isso só mesmo achar que o mundo melhorou porque existe o Facebook.
A melhor forma de manter a dignidade na era do Facebook (se você não resistir a ter um) é não contar para ninguém que você tem um Facebook. Quase tudo é bobagem nas redes sociais porque o ser humano é banal e vive uma vida quase sempre monótona e previsível.
E a monotonia é o traje cotidiano do vazio. E a rotina é o modo civilizado de enfrentar o caos, outra face do vazio.
A ideia de que aprendemos a falar porque quisemos "conhecer" o mundo é falsa. Segundo os evolucionistas, é mais provável que tenhamos aprendido a falar para falar mal dos outros e fofocar.
O "Face" é, neste sentido, um artefato paleontológico que prova que nada mudou.
Sempre se soube que não basta à mulher de Cesar ser honesta, ela tem que parecer honesta, portanto, a imagem de honesta é mais importante do que a honestidade em si. Mas aqui, o foco é diferente: aqui a questão é a hipocrisia como substância da moral pública. Todo mundo sabe que a mentira é a mola essencial do convívio civilizado.
No caso de frases como a citada no primeiro parágrafo, comum em palestras de motivação em recursos humanos, é que são oferecidas como "verdades construtivas de comportamento". E não como o que verdadeiramente são: estratégias para desgraçados e "losers" se sentirem melhor.
Ficamos covardes. Fosse esta geração de jovens europeus (que só sabe pedir direitos e iPads) que tivesse que enfrentar Hitler, ele teria ganhado a guerra.
Provavelmente esses estragados por décadas de "estado de bem-estar social" teriam dito "não à guerra em nome da paz". Grande parte do estrago que Hitler fez no início foi causada por gente que gostava de dizer que a paz sempre é possível. Gente medrosa mesmo.
Mas nossa época, como eu costumo dizer muitas vezes, é a época do marketing de comportamento. A "ciência da mentira dos losers". Dentro desta disciplina geral, existe o marketing do desejo, especializado em mentir para as pessoas dizendo que "sim, confie no seu desejo que tudo dará certo".
Mesmo alguns psicanalistas (vergonha da profissão) embarcaram nesse otimismo de classe média. "Nunca traia seu desejo", dirão os traidores da psicanálise.
Sabe-se muito bem que é o desejo que nos trai porque ele está e vai além do que, muitas vezes, conseguimos suportar.
Uma das grandes tragédias de nosso tempo é o fato de que não existem mais recursos "simbólicos" para aqueles que resistem ao desejo em nome de "um bem maior", como no caso da família, do casamento, ou simplesmente resistir a virar canalhas com desculpas do marketing. O legal é ser "escroto" se dizendo "livre". A "ética do desejo", que recusa abrir mão do próprio desejo em nome de algo maior do que ele, destruiu a noção de caráter.
Para a moçada do marketing do desejo, resistir ao desejo é coisa de gente idiota e mal resolvida porque ter caráter não deixa você muito feliz o tempo todo.
É verdade que resistir ao desejo não garante felicidade alguma, mas uma cultura dominada pela ideia de felicidade é uma cultura de frouxos. Mas outra verdade, não menor do que a anterior, é que o desejo pode ser um companheiro traiçoeiro. A afetação da felicidade faz de nós retardados mentais. Eu nunca confio em gente feliz.
O mestre Freud dizia que o desejo é desejo de morte. Afirmação dura. Mas o que ela carrega em si é o que já sabemos: o desejo nos aproxima do nada (morte) porque desvaloriza tudo que temos. Por isso, quando movidos por ele, sem o cuidado de quem se sabe parte de uma espécie louca, flertamos com o valor zero de tudo.
Nada disso significa abrir mão do desejo, mas sim saber que ele nos faz animais que caminham sobre tumbas que sorriem para nós como mulheres fáceis. Resistir ao desejo talvez seja uma das formas mais discretas de amar a vida.”

(Luiz Felipe Pondé é filósofo e professor da PUC/SP)

domingo, 11 de dezembro de 2011

O homônimo - contado por Sebastião Nery

(Casos sobre Paulo Egydio Martins, ex-ministro e ex-governador de São Paulo)


“Para preencher cargos-chave do governo, havia norma de consultar o SNI, para saber os antecedentes da pessoa. Logo que entrei no ministério (Indústria e Comércio, governo Castelo), Golbery me explicou: – A diferença entre um informe e uma informação é a seguinte: o informe é “ouvi dizer”, é para ser verificado, é um primeiro boato. A informação é um fato que está comprovado. Quando você receber uma informação com um visto meu, é para cumprir.
Um dia recebi uma informação com o visto do Golbery, dizendo que um alto funcionário do ministério era um pederasta que mantinha relações com contínuos no gabinete dele. Ele pedia que eu o demitisse.
Comecei a levantar a vida do tal rapaz. Como não constatei nada, não assinei nenhum decreto. Golbery me cobrou. Expliquei a ele:
- Ministro, lamento muito mas não constatei aquelas informações.
- Paulo eu não disse a você que uma informação com o meu visto era para ser cumprida?
- O senhor disse, mas acontece que caberia a mim a responsabilidade de exonerá-lo. Não constatei nada. Não cumpri.
- Mas isso é muito grave. Precisa ser cumprido.
- Então ponha outro ministro no meu lugar, porque não vou cumprir.
Na saída de uma outra reunião, ele me deu um tapinha nas costas:
- Paulo, você se lembra daquele caso? Você tinha razão. Era um homônimo. Assunto encerrado”.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Ética e educação - Prof. Roberto Romano

(Entrevista ao Instituto Millenium – 22-11-2011)


“Instituto Millenium – EXISTE UMA CRISE ÉTICA EM TODO O MUNDO; QUAL É A ESPECIFICIDADE DO QUADRO BRASILEIRO?

Sempre existiu e sempre existirá crise ética no mundo. A ética resulta do equilíbrio instável entre os comportamentos (reforçados pelos valores estabelecidos) e as novas formas de agir e pensar. Ela, portanto, supõe a crise, cujo significado original vem do grego krisis, “instante de passagem, de escolha, de prova, decisão”. A cada átimo os nossos hábitos sofrem o teste maior: eles preservam a nossa vida e a existência da sociedade que nos acolhe? Formas tradicionais de comportamento, caso não permitam responder positivamente a tal pergunta, inevitavelmente perdem vigência em médio ou longo prazo.

Importa recordar o significado original do termo “ética”. Na semântica histórica o termo ressalta o sentido de “postura” (hexis). Como a sociedade grega era guerreira, os jovens deviam aprender as posições corretas para a corrida, o uso das lanças etc. Tal aprendizado se fazia nas disputas, sob orientação de instrutores ou no próprio campo de batalha (Platão diz que os meninos deveriam sentir o cheiro do sangue, nas guerras). Era vital correr certo, pois o uso inadequado dos pés, das pernas, de todo o corpo, faria o exército perder tempo, podendo ser vencido. Ora, quem aprende a andar errado, repete o erro automaticamente. Idêntico automatismo ocorre quando se adquire a posição correta. Hexis, assim, é algo vital para a sociedade grega, sendo por semelhante motivo valorizada a sua prática certa. O automatismo traz o problema. Quando alguém anda ou corre erradamente, com muita dificuldade poderá corrigir o erro que, de tanto ser repetido, torna-se inconsciente. É preciso aprender o certo desde a mais tenra infância, daí o fato de a ética ser ligada diretamente à educação. Com o tempo, por metáfora, a postura passou a ser empregada para a atividade da mente. Assim como se aprende um bom gesto físico, também se aprende um bom raciocínio. Ou, em caso oposto, uma péssima postura na forma de pensamento. Também aqui é estratégico que a criança aprenda a boa postura desde a mais tenra idade, caso contrário ela aprenderá formas erradas de imaginar, calcular, agir diante dos valores imateriais.

O problema é que a sociedade grega, apesar de sua elevação filosófica, artística, científica, assumiu o automatismo de sua cultura, a que dizia aos cidadãos da polis que eles eram os únicos dignos de ostentar o título de homens, seres plenamente racionais e valorosos. Assim nasceu o mito da autoctonia e da supremacia grega sobre os orientais e os ocidentais do Norte europeu. Aristóteles, na “Política”, diz que os homens do Oriente têm inteligência aguda, mas são covardes. Os europeus do Norte são bravos, mas pouco brilhantes no pensamento. Os gregos, bem, eles reuniriam a coragem à mente lúcida. E seriam, propriamente, homens. Os demais povos, os bárbaros (palavra produzida com uma onomatopeia, que imita sarcasticamente os estrangeiros ignorantes da língua grega, sendo portanto alheios ao Logos, à razão), tinham como destino ser dominados pelos helênicos.

Surge aí um automatismo que persegue a ética ocidental até hoje, impedindo sua plena cooperação com outras éticas. Tal postura pode ser grosseiramente racista, mas pode ser traduzida em pensamentos etnocêntricos, embora refinados intelectualmente. É o caso do brilhante historiador da cultura guerreira grega, Victor Davis Hanson em livros como “Porque o Ocidente venceu?”. Mas a superioridade auto-atribuída pelos ocidentais não vai além da imagem idealizada. Na realidade, mesmo a Grécia entra no movimento geral das éticas mediterrâneas. Ela muito aprendeu com o Egito e demais impérios do Oriente Médio e do Mediterrâneo.

Mais adiante, a partir do século XIV (era cristã) a ética européia foi se transformando, a cada século mais rapidamente, no trato com as do Oriente Médio, da África, das Américas, do Extremo Oriente. O mesmo ocorre com as últimas diante da européia. No século XX as trocas entre as éticas regionais do planeta se tornaram a cada passo mais aceleradas, devido, sobretudo, às tecnologias da comunicação. Do telégrafo à Internet, o comércio espiritual entre as éticas se complexificou, tornando-se sempre mais amplo, emaranhado, contraditório. Os movimentos retrógrados, que insistem em conservar valores e hábitos inadequados à nova configuração do planeta, tendem a se definir como quistos que apenas preparam o isolamento de seus praticantes, ou seja, elas trazem a morte próxima ou lenta de sua cultura, formas políticas, econômicas, religiosas, estéticas e tecnológicas.

Sigo o pensamento do etnólogo André Leroi-Gourhan. Para ele, a cultura técnica – base da ordem ética – para se reproduzir, exige das sociedades duas forças aparentemente contrárias: a primeira é a capacidade de inventar instrumentos, valores, hábitos; a segunda reside na aptidão para emprestar de outras sociedades instrumentos, valores, hábitos. Quem não consegue emprestar é incapaz de inventar e vice-versa.

É o que vemos no planeta, sobretudo após o século XVI. Os europeus emprestaram da China, da Índia, do Japão ciências e técnicas em todos os domínios da vida. E inventaram, a partir daí, novas técnicas, ciências, hábitos. No campo estético tomemos, no século XVIII, no rococó, a quantidade de formas e traços conhecidos como “chinoiserie”, ou seja, empréstimos do Japão e da China, nas artes plásticas. No século XX, temos o movimento amplo chamado Art Nouveau. Ele é uma síntese de elementos orientais e do Ocidente.

O mesmo pode ser dito de toda a cultura e da ética. Gourhan mostra, após muitas pesquisas sobre a origem e a vigência da tecnologia desde os nossos alvores como humanidade, que nosso corpo é produto de nossa técnica, que desde o princípio vivemos em tecnosfera.

Moldamos nosso corpo inteiro, dos pés à caixa craniana, o que possibilitou as técnicas de manipulação e a linguagem. Mas o principal é que o nosso corpo, base da ética, se prolonga no universo dos objetos técnicos que produzimos, mas não criamos. É bom recordar a diferença entre “criação” e “produção”. No pensamento judaico-cristão, existe a ideia de um ser onipotente que gera a natureza do nada. No pensamento grego, a natureza já está ao dispor dos deuses, que a controlam, e dos homens que imitam os deuses, ou desafiam os deuses como Prometeu. Assim, nesta forma de raciocinar, não existe criação, mas produção a partir e, não raro, contra a natureza que deve ser submetida pelos nossos atos técnicos. Se não existe criação absoluta, também não existe autoctonia técnica plena. Cada sociedade inventa sua técnica (e nela, a sua ética) emprestando traços de outras sociedades. Só é capaz de inventar, retomo, quem se tornou competente para emprestar.

Ou seja, a técnica é um movimento perene de Krisis, de decisão, escolha, teste. O mesmo para a ética. Uma cultura presa em si mesma, sem choques com outras, nada acrescenta, nada inventa no seu trato com a natureza e consigo mesma. Daí, o fato de que a crise, longe de ser algo nocivo, é essencial para a sobrevivência correta, a expansão e o desenvolvimento da técnica e da ética. Outra noção de Krisis dá bem a medida da coisa: para os médicos dos tratados hipocráticos (outra fonte rica das elaborações éticas do Ocidente), a crise da doença é o momento em que ainda não foi vencida a moléstia (a morte pode vir) e já surgem sinais de recuperação da saúde. A crise, portanto, pode seguir para a morte ou para a vida. Tudo depende da perícia técnica do médico, da cooperação do adoecido, das forças que se chocam no seu corpo. Ocorre com a crise o mesmo que se passa no plano do remédio. Os médicos gregos nomeiam como Pharmakon os medicamentos, que podem ser remédios ou venenos, muitas vezes dependendo da dose, do saber técnico no seu emprego, do corpo adoecido. Assim também na ética: ficar muito tempo na indecisão sem usar medidas técnicas para sair da crise, significa aceitar o desaparecimento. Mas não se deve ser precipitado, pois apressar o fim da crise antes do tempo pode ser desastroso. Esta é a lição política ensinada pelos médicos aos teóricos da política, de Aristóteles até Maquiavel. Trata-se da noção do Kayrós, o tempo oportuno. Quem deseja solucionar uma crise ética ou política deve saber qual o instante certo para decidir as coisas. Um minuto antes, um minuto depois, pode ser a ruína de uma sociedade ou Estado. O comércio praticado entre as éticas, desde a era antiga até a moderna, supõe a noção de crise, de tempo oportuno, de empréstimo e invenção. Falar em “choques” ou “guerra” de culturas e de éticas significa tomar as coisas pela rama, ignorar o principal, a perene crise de todas as formas culturais, aceleradas na modernidade.

O Brasil… bem, o Brasil é o amálgama de uma ética absolutista europeia com elementos dinâmicos da modernidade. Nossa ética se enquistou no absolutismo que ignora e mesmo combate a democracia real (pensemos no privilégio de foro, excrescência do século XVII em pleno século XXI brasileiro), no menosprezo pelas técnicas de ponta, na desconfiança diante das conquista políticas mundiais, bastando ver o ódio votado aqui à liberdade de imprensa, no veto à existência de uma oposição efetiva, no conúbio entre o público e o privado. Emprestamos apenas alguns elementos do processo de mundialização técnica e ética. Somos ainda incapazes de inventar novas éticas, o que não nos assegura um futuro invejável, apesar de todas as nossas potencialidades e riquezas. Se continuarmos ignorando a geração técnica, se não investirmos em inovação em nossas indústrias e direção de empresas, se persistirmos em viver sob uma forma de governo anacrônica (o absolutismo dos operadores do Estado, que se julgam e agem como se não devessem prestar contas a ninguém, sobretudo ao “cidadão comum”), setores vitais de nossa sociedade e de nossa ética serão ainda mais fossilizados, no mesmo passo em que outras sociedades agilizam e aproveitam com sentido certo de tempo oportuno as suas crises, assumem novos rumos, inventam novos valores e geram novos horizontes.

Imil – OS CONSTANTES CASOS DE CORRUPÇÃO NO PAÍS SÃO FRUTO DE FALHAS INSTITUCIONAIS? É POSSÍVEL CORRIGIR ESSAS FALHAS APRIMORANDO AS INSTITUIÇÕES?

Romano – São fruto de nossa ética, na qual a postura de governados e governantes permite a diferença entre “ser do poder”e “ser gente comum”. Tal resquício do absolutismo torna possível uma classe especial de seres, os poderosos, que tudo fazem em detrimento dos cofres públicos e em favor de seus bolsos. Vivemos até data recente com a admiração popular diante de personagens que, se dizia, “roubam, mas fazem”. Esta complacência, ou cumplicidade das massas, é algo preparado com muita técnica e ardilosidade, e tem como datas principais as mesmas que indicam o nascimento do Estado absoluto. Neste último, as fontes públicas de recurso se concentram nas mãos dos governantes, que as direcionam no interesse do governo, sem ouvir os que pagam impostos. Estes, por sua vez, não têm direitos a reclamar nas políticas públicas.

Mesmo porque a essência do poder absolutista reside na razão de Estado que é co-natural ao segredo de Estado. Os impostos, a polícia, as guerras, a administração, tudo é razão e segredo de Estado no absolutismo. Certa feita o rei francês pediu um aumento de imposto à Assembléia dos Estados (nobreza, clero, terceiro estado). Sua desculpa era a guerra. Os representantes do terceiro estado pediram para inspecionar as contas reais. O clero, setor mais influente na época, em seu voto disse que as finanças do rei eram como o Santíssimo Sacramento no cofre sagrado. Apenas os que tinham poder divino poderiam saber o que nelas se escondia… Segredo e razão de Estado são sinônimos, em todos os sentidos. E o governante absolutista distribuía privilégios para se manter no comando do Estado. Dentre os privilégios, contemos os recursos financeiros, as terras etc. O clero e os nobres eram os mais agraciados com tais privilégios, pagos à custa dos contribuintes. Rei, clero, nobres, nenhum deles julgava ter de prestar contas de seus atos e dos dinheiros. Ora, quando as revoluções modernas, republicanas e democráticas, já tinham sido efetivadas (a inglesa ainda no século XVII, a norte-americana e a francesa no XVIII), no Brasil do século XIX se reitera o absolutismo sob comando do príncipe Dom João, mantendo-se os fundamentos do privilégio, do segredo, da irresponsabilidade no manejo dos recursos públicos.

Aliás, fugido de Napoleão, que bem ou mal representava um avanço democrático quando comparado ao Antigo Regime absolutista, Dom João fez do Brasil um país refratário às “doutrinas infernais” da república, da democracia etc. Foi assim que o Príncipe fez o Banco do Brasil, que imprimiu papéis sem lastro e foi obrigado a fechar. O governante viu apenas as suas necessidades, sem cuidar nem um pouco da accountability.

A justificativa do Poder Moderador, na Carta de 1824, encontra-se nesta ressurreição, nos trópicos, do absolutismo. Com o Império, concentraram-se na Corte os impostos, que os distribuía pelas províncias e municípios conforme a sua obediência aos ditames do poder imperial. Assim, cidades ficaram séculos sem serviços públicos elementares. É quando os poderosos regionais se unem em oligarquias para arrancar meios do poder central, oferecendo como troca o controle das populações e apoio aos projetos do governo. Algo mais grave ocorre ainda no plano ético. Como as cidades são desprovidas de recursos, os fazendeiros (candidatos a oligarcas) que têm lugar nas Câmaras de Vereadores e nas Prefeituras, emprestam o seu próprio dinheiro (além da mão de obra escrava que lhes pertencia e dos materiais, comprados no Rio ou São Paulo) aos cofres municipais para obras públicas. O fato surge aos olhos dos cidadãos como um favor prestado à coletividade. Mas breve surge a contrapartida.

A professora Maria Sylvia Carvalho Franco mostra que, tempos após a instauração de tal prática, os vereadores e prefeitos imaginaram o processo como rua de mão dupla: “se quando o município precisa, eu empresto, quando eu preciso…”. Temos aí o uso de confundir o dinheiro público com o privado, usando o primeiro para ascender socialmente, comprar postos de mando, alianças políticas, etc. Em “Homens Livres na Ordem Escravocrata”, todo o sistema é exposto com detalhes e provas. Importa sublinhar que a passagem do “favor” ao uso do dinheiro público, ocorre com aprovação ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a origem do “‘é dando que se recebe” e do “rouba, mas faz”.

Mantida a concentração do poder no palácio presidencial, em detrimento dos Estados e municípios, mantido o sistema concentrador de impostos no poder “federal”, as populações não têm outra escolha senão votar nos poderosos regionais, os oligarcas, que trazem obras para as cidades. Ou seja, elas aprendem uma ética contrária à república e à democracia. Nem os proprietários do poder central, nem os oligarcas, imaginam ter obrigação de prestar contas de recursos aos contribuintes. Mas exigem cada vez mais impostos para prestar “serviços” ineficientes na saúde, educação, segurança, cultura, ciência e técnica. Eles julgam ter direito a colocar no bolso próprio, ou de seu partido, parte do butim, para manter os “favores”, ou seja, a realização de obras públicas nas urbes.

E agora vem a pior parte: desafio qualquer pessoa a lançar um candidato ético, respeitador dos dinheiros públicos, em qualquer eleição brasileira. Se ele provar que trará, ou trouxe, obras públicas para os eleitores, será eleito tantas vezes quanto possível o que trouxer obras públicas. Caso contrário, receberá parcos votos.
O eleitor que, diante dos jornais, rádio ou TV diz ter nojo da corrupção política, não sabe ou não quer saber o que os políticos “eficientes”devem fazer, no Congresso, para conseguir os recursos. O mínimo é praticar o “é dando, que se recebe, o toma lá dá cá”. Ou seja, a corrupção é tridimensional: existe o corruptor de obras públicas, o corrompido dos poderes, o eleitor… Sem uma efetiva democratização que obrigue os gestores a prestar contas, sem uma abolição dos privilégios (em especial o de foro), sem uma federalização que permita maior autonomia (sobretudo financeira) aos Estados e Municípios, a fábrica da corrupção ética e financeira estará funcionando em pleno vapor. Tenho alguns escritos sobre o problema. Em especial, gostaria de indicar um texto meu saído na Revista de Economia Mackenzie, cujo título é “Impostos e Razão de Estado”.

Imil – QUAL É O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA MUDANÇA DESSE QUADRO?

Romano – O Judiciário está inserido na estrutura do Estado brasileiro, ou seja, mesmo que boa parte de seus integrantes queira exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e democráticos, a instituição é homóloga à dos outros setores, com agravantes. O Executivo e o Legislativo seguem regras de transparência e são submetidos à opinião pública, à imprensa, ao voto. Quando perdem seus cargos, perdem a remuneração e, quando seus processos judiciais não recebem o sinal do segredo de justiça, sua vida inteira se transforma em objeto de análise pública. Não é assim com os magistrados. Quando perdem seu cargo, guardam seu pagamento, são julgados pelos pares em plano sigiloso e, quando fica evidente a sua ausência de ortodoxia ética no cargo, não recebem punição a tempo e a hora.

O debate nacional ao redor do CNJ, as tentativas de enfraquecer o trabalho da Corregedoria daquela instituição que deveria controlar a prática dos juízes, tudo mostra que dos três poderes o judiciário é o mais arredio aos elementos democráticos da transparência e da accountability. Existem exceções, com certeza, mas a regra não é passível de aplausos unânimes.

Modo geral, os que operam no campo do direito manifestam um alto teor de corporativismo e, em muitos casos, de desprezo pelos “estranhos”, os “leigos”, os “cidadãos”comuns. Eles esquecem que, num mundo altamente dividido em especializações, o jurista também é leigo para o médico, o engenheiro, o arquiteto, o economista, o físico, o químico, o administrador de empresas, etc. Existem questões que vão além das especialidades. Tais questões não admitem donos da verdade nem ditadores da ciência, seja ela jurídica. Muitos operadores do direito, aqui incluindo advogados e promotores além de juízes, não admitem o ponto. Além disso, o judiciário não tem exercido o papel que lhe cabe de morigerar os outros poderes. Haja vista a facilidade com a qual é aplicado o privilégio de foro, sem um questionamento protocolar: ele fere o princípio da igualdade de todos perante a lei. Quando os que praticam improbidade com os recursos públicos fogem do juiz natural, o da primeira instância, e são supostamente colocados sob o julgamento dos tribunais superiores (quantas penalidades foram mesmo aplicadas até hoje?) temos a ruptura com o regime ordenado na Constituição e referendado pela cidadania. Esta última recusou a forma da monarquia (com tudo o que ela implica no Brasil de privilégios, lembremos que mesmos em países monárquicos do mundo atual, os políticos não gozam dos privilégios que lhes são outorgados aqui), mas a justiça passa ao largo, aceitando um ordenamento evidentemente injusto, escandaloso, inconstitucional. O privilégio de foro não cria a corrupção, mas a reforça e torna os ímprobos mais arrogantes, sem tomarem sequer nos dias de hoje a cautela de esconder suas manobras fraudulentas. O que se praticava dissimuladamente tempos atrás, se comete hoje em plena praça pública.

Imil – QUAL É O IMPACTO DOS CONSTANTES CASOS DE CORRUPÇÃO NO ALTO ESCALÃO DO GOVERNO?

Romano - Acho mais adequado perguntar sobre o impacto da corrupção sobre o Estado e a sociedade como um todo. O primeiro e mais deletério é o sumiço da fé pública. E sem tal elemento não existe Estado de direito. Se não é possível confiar nos gestores do Estado (nos três poderes), não há motivo para obedecer a lei, pagar impostos, servir militarmente, viver segundo as regras civilizadas. Investir recursos privados em setores que dependem da administração pública, quando é sabido que tais recursos irão parar nos cofres dos partidos e dos indivíduos que operam na política, é tarefa que beira a falta de sentido.

As pesquisas que indicam a perda progressiva de fé da cidadania no sistema democrático deveria ser um alerta aos que ainda buscam um modo de vida pautado pelos valores da democracia. Mas quantos, na camada política, valorizam a república, a democracia, a responsabilidade, o respeito às leis vigentes? Quando legisladores quebram a lei, como ocorre com frequência terrível no Brasil, perde sentido se falar em Estado, ou mesmo Estado de Direito.

A violência que grassa em nossa sociedade (basta ver o trânsito, 40 mil morte por ano, mais do que em muitas guerras tremendas ocorridas nos últimos anos no planeta), mostra os efeitos da corrupção de maneira clara. Basta dizer que os assassinos do trânsito, como os ímprobos, escapam das malhas da justiça de modo fácil. É bom recordar o dito de Diógenes: “A lei é uma teia de aranha que prende os insetos pequenos, e não resiste à força dos grandes”, pois nela fazem buracos confortáveis. Pelo que ocorre no Brasil, haja conforto!

Imil – COMO O SENHOR AVALIA A BAIXA ADESÃO DA POPULAÇÃO NAS MANIFESTAÇÕES CONTRÁRIAS À CORRUPÇÃO?

Romano - Nosso sistema leva a população a aceitar “favores” dos que operam o Estado. Se ela não identifica favores nos oligarcas, os encontra em ações governamentais. Antes, valia como arma política de controle o bico de pena. Hoje, o cartão magnético do Bolsa Família e outros mais. E os setores da classe média e dos mais bem aquinhoados temem perder algo conquistado após muito desespero, ou seja, a inflação razoavelmente baixa e a estabilidade econômica.

Imil – EXISTE NO PAÍS UM CLIMA DE OTIMISMO, COPA DO MUNDO, OLIMPÍADAS, UMA CRISE ECONÔMICA QUE PARECE DISTANTE...TAL QUADRO DIFICULTA O EXERCÍCIO E A REPERCUSSÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO NO PAÍS?

Romano - Não podemos pensar que apenas a conjuntura poderia explicar semelhante apatia popular diante da corrupção. Devemos, antes de tudo, dizer que o alheamento não é absoluto, pois cerca de dois milhões de pessoas se movimentaram para conseguir a lei da Ficha Limpa. Esta, apesar de tudo, marca o desejo dos cidadãos de combater o processo corrosivo que anula o Estado de direito entre nós.

Para compreender o motivo da suposta passividade do povo brasileiro diante da corrupção, precisamos refletir sobre o peso da inflação na vida nacional, de 1954 até o Plano Real. Um processo inflacionário como o vivido em nossa terra corrompe valores, quebra resistências éticas, abre caminho para o desespero de indivíduos, grupos, classes.

Permitam que eu cite um dos autores mais relevantes na análise política e antropológica do século XX, Elias Canetti. Em sua obra lúcida e profunda chamada “Massa e poder”, existe um capítulo fundamental intitulado “A inflação como fenômeno de massa”. Em outros livros e textos ele comenta o impacto da inflação na ordem social e política. Tanto sua autobiografia (“Die Fackel im Ohr” ou “A tocha no ouvido”), quanto “Auto-da-fé” (“Die Blendung”) trazem situações vividas durante o tremendo processo inflacionário de Weimar. Como seu contemporâneo Georg Simmel, que publicou um monumento teórico chamado “Filosofia do Dinheiro” (“Philosophie des Geldes”, 1900, existe tradução inglesa da obra, “The Philosophy of Money”), Canetti presta atenção ao papel do dinheiro na ordem cultural moderna e na geração da identidade psicológica das pessoas.

Ele parte de um fato incontestável: “Pode-se afirmar que nas nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações”. Canetti mostra como há um nexo entre o corpo do homem, a sua mão sobretudo, e a moeda. Com o enfraquecimento deste vínculo, após o papel moeda (embora o padrão ouro ainda garanta a confiabilidade de uma economia), ainda permaneceu um ponto de estabilidade e confiança nos governos democráticos. Trata-se da cifra que indica o “milhão”. Como designação de um número, o “milhão” tanto pode referir-se ao dinheiro como aos homens. E Canetti nos reconduz à íntima passagem entre a inflação verbal e a econômico-política. Milhão: “O caráter duplo da palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é característico dos discursos de Hitler. Em geral, ele se refere aos milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich que ainda precisam ser redimidos”.

Importa sublinhar: no mundo atual, massa e milhão relacionam-se imperativamente. No processo inflacionário, entretanto, “a unidade monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma na massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida que aumenta a massa. Os milhões, que tanto se quis possuir, estão repentinamente em nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se chamam assim.

Na inflação, ocorre um elemento perverso e perversor: “O que cresce toma-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco é agora dez mil, depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem individual com seu dinheiro é abolida desta forma”. O homem, que antes confiava na sua moeda ou bilhete, não “pode evitar sentir seu rebaixamento como um rebaixamento dele próprio. (…) A inflação não abala apenas tudo externamente; nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; em virtude da inflação, ele mesmo, o homem, diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada”.

A inflação, desse modo, pensa Canetti, é uma “desvalorização dupla (…), o indivíduo sente-se desvalorizado, porque a unidade na qual confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar para baixo. A massa sente-se desvalorizada. (…) Como pouco se vale sozinho, igualmente pouco se vale unido aos demais. Quando os milhões aumentam, todo um povo de milhões se converte em nada”.
A massa, entretanto, não se esquece de sua desvalorização. “A tendência natural, a partir daí, é a de encontrar algo que valha ainda menos do que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da mesma forma como se foi desprezado antes.” A massa, digamos, busca um bode expiatório onde descarregar o sentimento de ser nada. Canetti aponta para o vínculo entre a inflação alemã e os milhões de judeus, supostamente inferiores aos arianos empobrecidos pela inflação, mortos nos campos de extermínio.
A lição trazida pelo processo inflacionário de Weimar não foi aprendida o bastante pelas sociedades ocidentais. O descontrole da economia traz inflação e, com ela, massas dispostas a seguir os mais diversos Messias, cobrando de supostos culpados toda a insegurança e humilhação vividas. Basta ver o que se passa na suposta União Européia nos últimos tempos. Recomendaria modestamente a leitura de um livro relevante para os nossos políticos, magistrados, universitários, jornalistas. Penso no volume publicado por Bernd Widdig (“Culture and inflation in Weimar Republic”), onde inclusive existe um capítulo inteiro dedicado às análises de Elias Canetti.
No caso brasileiro a população, desacostumada aos procedimentos democráticos (no século XIX, os nossos governantes dificilmente poderiam ser postos entre os campeões da democracia), algo piorado por dois regimes de exceção no século XX, e também afeita aos favores que espera dos que operam o Estado, não teve oportunidade de exercitar ativamente a crítica e a cidadania. Se na Alemanha, onde o nível da participação política das multidões foi elevado, sobretudo após 1848 (a era das revoluções) aconteceu um descontrole econômico e político desastroso como a inflação, conduzindo à fé cega num redentor, no caso Adolf Hitler, não é de espantar que no Brasil tenham medrado arremedos messiânicos como o de Jânio Quadros, José Sarney (recordemos a histeria dos “fiscais do presidente” que invadiam supermercados, prendiam gerentes, penetravam em fazendas na caça aos bois gordos, com base na lei delegada etc), Fernando Collor… A cada nova onda de fé no salvador presidencial, seguia uma onda de humilhação, perda da autoestima, desespero diante do presente e do futuro.

Com o Plano Real, se estabelece a racionalidade política que atenuou a inflação, conduzindo-a a níveis suportáveis. De imediato, veio a popularidade imensa de Fernando Henrique Cardoso que o levou ao Planalto e o elegeu novamente. Na mesma onda de fé no Salvador, foi eleito Luis Inácio da Silva que, à diferença de Fernando Henrique Cardoso, não apenas se adequou ao papel de redentor, como o exacerbou com poderosa ajuda de Duda Mendonça e João Santana. “Nunca antes neste país”, é o slogan que une a salvação da economia à pessoa do Presidente providencial. “Marolinha” é o modo pelo qual o próprio governante procurou exorcizar um impasse do qual ainda desconhecemos o real perigo. E apesar dos exorcismos, a inflação cresce a olhos vistos.

A apatia que hoje se observa nas massas urbanas brasileiras tem várias faces, sendo que a primeira é justamente a segurança econômica, da qual fala a propaganda oficial necessariamente. Protestar contra a corrupção parece ser algo menor, se comparado ao pesadelo vivido antes do Plano Real. Acrescente-se que a mesma propaganda “sequestrou” o peso dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique na construção daquela segurança: “nunca, antes neste país…”. A segunda face, mais triste, é o conúbio dos eleitores com os corruptos que lhes fazem “favores” pessoais ou coletivos (trazem obras para as cidades etc). A terceira é o controle quase absoluto do governo federal sobre as obras públicas no país inteiro, facilmente transformando-as em instrumento político eleitoral. E temos várias outras faces. Mas digamos, para encerrar esta longa resposta, que um povo que viveu sob a inflação e foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega total a um líder populista. E tal fato traz muitas preocupações com o futuro da democracia.”


(Roberto Romano é professor da UNICAMP)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

"O texto ensolarado... por Augusto Nunes

(Publicado no blog do Augusto Nunes, em 23-11-2011)

O texto ensolarado de Reinaldo Azevedo reduziu a cinzas os vampiros de chanchada


"Já registrei neste espaço que meu amigo e vizinho Reinaldo Azevedo é o Pelé da internet. Brilha em qualquer campo, coleciona lances de gênio com a naturalidade de quem bate um lateral, faz um gol de placa por jogo. Ou mais. Seja qual for o adversário, está sempre inspirado. E entra em estado de graça quando enfrenta seleções que representam as muitas nações do continente dos canalhas. Escaladas pelo critério da sordidez, aparecem de tempos em tempos ─ sempre agressivas, ressentidas, brutais ─ para outra derrota desmoralizante. Foi assim nesta quarta-feira. Desta vez, o cracaço liquidou o jogo com a obra-prima batizada de “Meus heróis não morreram de overdose. Alguns dos meus amigos de infância é que morreram no narcotráfico! E foi uma escolha“.

O texto ensolarado de Reinaldo devassou as catacumbas da USP que abrigam o barracão da Acadêmicos da Vigarice. Surpreendidas nos sarcófagos pela luminosidade intensa, as criaturas das trevas foram reduzidas a cinzas como vampiros de chanchada. Órfãos de todas as ditaduras, gigolôs de presos políticos assassinados, torturadores desempregados, professores com QI de ministro, estudantes com doutorado em cretinice, aduladores de platéias infantilizadas, cafetões de bolsas de estudos, nostálgicos do século 18, velhotes com tênis nos pés e fraque no cérebro, jovens envelhecidos já no berçário por rugas mentais, colunistas que recitam a Teoria do Bom Ladrão num deserto de leitores ─ nenhuma dessas abjeções multiplicadas pela Era da Mediocridade escapou da devastação.

Pela cacofonia que produzem, eles poderiam parecer ameaçadores. Ficou evidente que só conseguem matar de rir. Amparado na decência, no brilho intelectual e na verdade, Reinaldo Azevedo mostrou que os integrantes da Acadêmicos da Vigarice são muitos, mas não valem nada."