sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A Petrobrás, o público e o privado

A Petrobrás é apenas a ponta do iceberg de um fenômeno muito mais complexo do que parece. O pano de fundo do escândalo (não só da maior empresa brasileira, mas de todas as outras, quer públicas quer de economia mista), é o desrespeito que os petistas e satélites fazem aos conceitos de "público" e "privado". A separação das duas instâncias foi uma das maiores conquistas da modernidade. Não reconhecer as especificidades civilizatórias daquelas dimensões pode acarretar as seguintes situações:

1°) Uma absorção do público pelo privado gerando um ambiente de corrupção;

2°) Uma absorção do privado pelo público produzindo um quadro de totalitarismo.

O PT conseguiu a façanha de desenhar uma conjuntura onde as duas situações acima poderiam acontecer simultaneamente. Privatizou o público (com a transformação do erário em fonte de financiamento de suas atividades, além de serventia, não desprezível, de enriquecimento de seus maiorais), e publicizou o privado (politizando todas as dimensões da vida pessoal, desde a família até o pensamento, passando pela sexualidade e preferências estéticas, configurando o complexo conhecido como o "politicamente correto". Trabalham, enfim, com duas pinças, produzindo a dissolução da solidariedade social, numa concretização insólita da chamada anomia, ou perda de referências.    

Talvez seja essa a grande singularidade do gramscismo à brasileira. Qual o veneno que dissolve a matéria das vítimas, antes dela ser sugada pela traiçoeira aranha no seu banquete particular, o petismo liquefaz as instituições visando conseguir, adiante, uma nova e teratológica ordem social. Reconhecer a validade de regras é algo que não lhes passa pela cabeça. Sua visão das normas constitucionais é Lassaliana. A lei maior é tão somente um pedaço de papel.   

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Iracema...


"Além, muito além daquela serra, que ainda azula 
no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que 
tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna 
e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu 
sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como 
seu hálito perfumado.

Mais rápida que a ema selvagem, a morena 
virgem corria o sertão e as matas do Ipu, 
onde campeava sua guerreira tribo da 
grande nação tabajara, o pé grácil e nu, 
mal roçando alisava apenas a verde pelúcia 
que vestia a terra com as primeiras águas.

Um dia, ao pino do sol..."

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Modus in rebus - Horácio


Horácio, grande poeta romano, recomendou moderação a todos: "Est modus in rebus", disse ele em um de seus textos (Livro I, Sátira 1).  Acrescentou, ainda: "sunt certi denique fines". Traduzido para o bom português a frase ficaria assim: Há uma justa medida em todas as coisas; existem, afinal, certos limites.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Mais uma façanha de Dilma (editorial do jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, de 10/11/2014)

"Ao tomar posse de seu primeiro mandato, em 1.º de janeiro de 2011, a presidente Dilma Rousseff disse que "a luta mais obstinada" de seu governo seria "pela erradicação da pobreza extrema". A dois meses do fim desse mandato, descobre-se que o total de brasileiros considerados miseráveis subiu 3,68%, de 10,081 milhões para 10,452 milhões, entre 2012 e 2013. Foi a primeira alta desde que o PT chegou ao poder, em 2003. Dilma, portanto, foi incapaz de cumprir seu principal compromisso como administradora - justamente aquele que ela invocou nos palanques para diferenciá-la dos candidatos de oposição - e nada indica que ela terá melhor desempenho no segundo mandato, pois a situação econômica atual é bem pior do que a de quatro anos atrás.

Os números sobre a miséria constam de estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Esse levantamento deveria ter sido divulgado em outubro, mas o Ipea, vinculado à Secretaria de Assuntos Estratégicos, decidiu adiar a publicação, sob a alegação de que a legislação eleitoral proibia a divulgação de dados que pudessem favorecer candidatos.

O governo não teve esse mesmo pudor na campanha de 2010, quando o lulopetismo tentava levar o "poste" Dilma à Presidência. Naquela ocasião, o Ipea divulgou dados retumbantes sobre a redução da miséria na gestão de Lula, usados à vontade na propaganda eleitoral para favorecer a candidata petista. Mesmo na última campanha, Dilma foi à TV, em cadeia nacional, para trombetear que, "em uma década, foram retirados 36 milhões de brasileiros da miséria" - e ela acabou corrigida pelo próprio Ipea, que informou que a queda havia sido de 8,4 milhões.

Por fim, não há nada na lei eleitoral que impeça órgãos do Estado de divulgar seus dados regulares durante a campanha. Torna-se então evidente que o zelo do governo nada mais foi do que uma manobra para escamotear números que revelavam as imposturas de sua propaganda - o que gerou uma crise no Ipea, levando dois diretores a pedirem demissão. Numa eleição tão apertada como a que reconduziu Dilma à Presidência, era preciso impedir que o eleitor tivesse conhecimento de qualquer informação que desmentisse a retórica petista.

De acordo com o Ipea, a proporção de extremamente pobres passou de 5,29% para 5,50% da população. A linha de extrema pobreza baseia-se em uma estimativa do valor de uma cesta de alimentos com o mínimo de calorias para suprir as necessidades de uma pessoa, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação e a Organização Mundial da Saúde. Ou seja, o Brasil ainda tem mais de 10 milhões de pessoas que não conseguem se alimentar de forma minimamente adequada.

Por esse critério, ressalta o Ipea, o número de pessoas em situação de pobreza - cuja linha é o dobro da linha de extrema pobreza - caiu de 15,93% para 15,09%. No entanto, se fosse levado em conta o critério do programa Brasil sem Miséria, que estabelece a renda per capita de R$ 77 mensais como linha de extrema pobreza, o porcentual de pobres no País seria menor, mas também teria apresentado crescimento - de 8,9% para 9%. Também por esse critério, o número de extremamente pobres seria de 8,05 milhões - um salto de 3,6% para 4% da população, ou 870.784 pessoas a mais.

Tal situação é particularmente constrangedora quando se recorda que o combate à pobreza é cantado pelos petistas como a grande marca de seus governos. Mas o fôlego dos programas de distribuição de renda só se mantém se houver renda a ser distribuída - algo que a desastrosa gestão econômica de Dilma comprometeu.


Para reverter o quadro, Dilma deveria recordar o que ela mesma disse quando tomou posse em 2011. Primeiro, afirmou que "a superação da miséria exige prioridade na sustentação de um longo ciclo de crescimento". Depois, reconheceu que "a inflação desorganiza a economia e degrada a renda do trabalhador", razão pela qual jurou que não permitiria, "sob nenhuma hipótese", que "essa praga volte a corroer nosso tecido econômico e a castigar as famílias mais pobres".

Reforma política e lobby (Professor Roberto Romano)

(Publicado no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, em 10/11/2014)


"Não é preciso ter a finura de Marcel Proust para evocar as trapaças do tempo que toldam a memória e fragilizam a vontade. Santo Agostinho tem duras páginas sobre a nossa desgraça na finitude, mortal fuga do Eterno. Dele fomos expulsos pelo erro que nos trouxe a mentira e o declínio até o Apocalipse. Em plano bem menor, os escândalos da vida econômica e política escondem armadilhas que dominam a consciência pública, distorcida pela falsidade cronológica. Temos notícias dos crimes e delitos de modo diacrônico: toda manhã os jornais trazem os "malfeitos". Retomados, tais fatos entorpecem os sentidos. Após alguns anos poucos indivíduos ouvem, olham, sentem, inalam a podre desolação imperante nas instituições pervertidas pelos interesses ilegais.

Sistemática, a vida coletiva pervertida tem outro lado, o sincrônico: no instante em que uma quadrilha assalta certa repartição ou instituto, outra age de modo igual em parte distante ou próxima do poder. A máquina de moer princípios éticos opera em dois registros temporais. A cidadania distraída sempre retoma a cantilena da indignação quando estoura um escândalo, mas não busca o fio que une os atentados aos dinheiros públicos.

Como arrancar, na luz diurna, bilhões destinados às políticas públicas? Ninguém pode fazer tal milagre isoladamente. Para o sucesso toda uma rede é armada, técnicas precisam ser movidas, hábitos comuns reúnem os meliantes. A corrupção não é singular, mas necessariamente coletiva. Estudos analisam os atos de quem rouba o erário. A intelecção dos agentes corruptos une as trocas de favores, "amizades", apadrinhamentos, interesses sociais e políticos (J. Boissevain, Friends of Friends: Networks, Manipulators and Coalitions, 1974).

Para corromper normas e projetos são inventadas novas e sutis formas de acesso às informações, às pessoas, às influências. Uma estrutura triádica, no entanto, sempre opera no setor escuro da vida política: existem os clientes, postos nos dois lados do balcão, e os agenciadores (os brokers), que distribuem cargos e recursos, garantem fidelidade aos pactos. 

Combater a corrupção requer controlar os "clientes" e quem os favorece. O caso Alberto Youssef é claro: ele serviu como broker (corretor) para corrompidos nos dois polos, o público e o privado. Não basta punir um ou dois integrantes da rede, os três devem receber sanção negativa. A tarefa requer forças que vão além de polícia, Justiça, controladorias. Todos os que pagam impostos deveriam agir como fiscais dos cofres públicos. É mais fácil, entretanto, abrir o jornal, ligar a TV ou o computador e assumir o rito inútil da indignação que leva... à hipnose e ao esquecimento.

Com o moderno Estado foi inoculado na massa dos contribuintes o dogma de que existem funções explicitamente públicas, desempenhadas por pessoas cujos poderes são limitados pela ordem jurídica. Nessa forma de pensar, apadrinhamentos, favores recíprocos, apoios financeiros para eleger parlamentares e governantes permanecem na penumbra, raramente surgem na cena para "desacreditar a ordem legal". Mas todos sabem e ninguém confessa: as ligações perigosas entre clientes e brokers definem a política "realista" que gera as referidas trocas de dinheiro, clientela, sufrágios eleitorais (Della Porta, D. e Mény, Démocratie et Corruption en Europe, 1995).

No Antigo Regime o rei distribuía favores aos nobres e clérigos para manter o trono. Na época já existiam os "padrinhos", os clientes e os brokers, que abriam a via para os cargos e dinheiros públicos. As revoluções modernas instauraram o regime parlamentar. Nele desapareceriam os benefícios do monarca. Pobre ilusão, pois os parlamentos reforçam "as técnicas do favor e, com elas, o apadrinhamento e a clientela também se modernizaram. 

Nem a politização, nem a burocratização acabam com elas"(F. Monier, Patronage et Corruption Politiques dans l'Europe Contemporaine, 2012). Os elos entre as formas privadas (e públicas) para o enriquecimento de políticos e líderes econômicos foram instaurados na própria gênese do Estado parlamentar.

As empresas dependiam do quadro normativo e fiscal do Estado, concessões e contratos governamentais iniciam sua era dourada. E os políticos passam a precisar dos empresários para seus assuntos eleitorais. Ambos buscavam informações para suas estratégias específicas. Na Inglaterra uma "private law" da House of Commons devia ser votada sempre que iniciativas no campo ferroviário eram empreendidas. 

O lobby tem papel relevante. Desde 1830 os empresários do ramo se introduzem no Parlamento, em 1860 eles já eram 200. Ali uniam o papel de representantes de empresas e do eleitorado. Surgem os agentes parlamentares e o lobby profissional. Tais agentes operam com parlamentares, intermedeiam o trato entre firmas, governo, deputados. Em 1867 aparecem as United Railway Companies e várias associações visando ao lobby. Elas controlam o Board of Trade, aprovam ou impedem leis entre 1870 e 1880. Na França ocorre algo similar. Desde 1870 os deputados pertencentes à centro-direita ocupam 50 cargos administrativos em grande empresas do país: finanças, ferrovias, mineração, indústria pesada, comércio, seguros (J. I. Engels, in Patronage et Corruption, citado acima). Só no século 20 começa, na Europa e nos EUA, o controle efetivo dos tratos entre empresas privadas e governos.

O que ocorre no Brasil, portanto, deve ser visto em perspectiva temporal: aqui ainda se pratica a simbiose de empresários e políticos com vista a levar recursos públicos para os cofres das firmas privadas e para os partidos que assumem nas administrações e nos parlamentos (municipais, regionais, nacional) a função de lobistas, truque que tem o nome de "bancada X ou Y" do Congresso. 

Financiamento público de campanhas políticas sem regulamentar o lobby e impedir que líderes operem como brokers nos três Poderes é mover o sorvedouro orçamentário de uma fonte para colocá-lo em outra, menos visível, mais tirânica".


*Roberto Romano é professor da Unicamp