A
notícia do fim da greve dos funcionários da USP veio com uma ressalva. A de que
poderá ser retomada após o término das férias do calendário escolar. Para quem,
como eu, cresceu dentro de uma fábrica e presenciou a greve dos 300 mil, em
1957, soa estranho que alguém pare para descansar da paralisação e a ela
retornar após o merecido descanso.
As
greves universitárias do período pós-ditatorial fluem no cenário adverso da
peculiar impotência do paredismo de classe média. Não incidem sobre atividades
produtivas. Nenhuma riqueza deixa de ser criada, ninguém lamentará que alunos
deixem de estudar, funcionários deixem de funcionar, professores deixem de
ensinar. As perdas são invisíveis. Quem se importará com os enormes danos que
bibliotecas fechadas durante meses causam a estudantes de pós-graduação que tem
teses para concluir e prazos rígidos para cumprir na Universidade e nas
agências de fomento que lhes concedem bolsas de estudo?
Prazos
que a greve não modificará. Em nossa cultura alienada, que de vários modos
valoriza a ignorância, estudar não é necessariamente um bem. Para muitos é um
castigo. Concretamente, ninguém perde com paralisações em setores que não
produzem diretamente mais-valia, para irmos ao vocabulário que dá sentido às
verdadeiras greves, as fabris. Ao contrário, são setores que vivem à custa de
uma parcela da distribuição da mais-valia extorquida dos trabalhadores do setor
produtivo.
As três universidades públicas paulistas são mantidas às custas de
uma proporção não pequena da arrecadação do ICMS, recolhido sempre que alguém
compra alguma mercadoria de alguém que não seja propriamente bandido e
sonegador e que, portanto, emite nota fiscal para pagar o devido imposto. Os
favelados da favela de São Remo, encravada em terreno da USP, e os favelados da
favela do Jaguaré, a quatro quarteirões da Cidade Universitária, são
comantenedores da Universidade de São Paulo.
Quando,
a duras penas, compram um quilo de feijão ou de arroz ou um litro de leite para
refeição da família e das crianças, pagam parte do ICMS que mantém a
Universidade e assegura à pequena burguesia que a frequenta o ensino de
primeiro mundo que seus filhos nunca terão. A USP é agora mesmo anunciada como
a ocupante do 10º lugar, a Unicamp do 12º e a Unesp do 36º no ranking das
Universidades do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Da Cidade Universitária não se vê a favela que se espalha pelo
morro do Jaguaré, no entanto tão perto, e a miséria dos exíguos barracos de
chão de terra batida, com a bacia da privada encravada num canto do cômodo
único, com a mesa de caixote e a cama coletiva lado a lado. De lá, porém, se vê
perfeitamente o próspero cenário dos muitos carros estacionados na USP, do vai
e vem dos beneficiários do ensino público gratuito, democrático e laico, da
alimentação subvencionada, do transporte gratuito, das bolsas de estudo e até
das moradias gratuitas para muitos. Não se trata aqui de fazer a crítica fácil
a quem se deixa manipular ou arrebanhar para causas que tem sua razão. Trata-se
de tentar desvendar o nó que se esconde por trás das tensões que aos poucos vão
consumindo a Universidade.
A facilidade com que alunos são mobilizados para causas que não
são as suas, as dos funcionários ou as dos professores, apenas sugere as
peculiaridades da crise de gerações entre nós nos dias atuais. Antes da
ditadura, as novas gerações tinham uma causa e uma esperança, a da definição de
um projeto de nação para todos, confirmação de uma história social em
andamento.
Na
ditadura, o projeto foi truncado e reprimido, quem o defendia foi perseguido,
quem insistia foi preso, cassado, banido ou morto. A crise de gerações ganhou
outro contorno, o da vítima, o da generosa disponibilidade até para dar a vida
em nome do sonho de uma pátria livre e soberana, justa e democrática. Com o fim
da ditadura, o sonho aparentemente acabou, perdeu conteúdos, cedeu lugar aos
arranjos e conveniências de poder, à busca de privilégios corporativos. As
novas gerações já não têm uma causa. Tudo já está pré-formatado para elas pelos
outros, pelos que não tendo causa própria se apossam do direito dos jovens de
terem sua própria causa, suas próprias perguntas e suas próprias respostas.
No
afã autoritário do mando e da imposição, cada um a seu modo, professores e
funcionários usurparam o que é próprio das novas gerações, que é recriar o
mundo segundo seu modo de vê-lo e seu modo de querê-lo. Hoje, os estudantes dos
movimentos grevistas nas universidades públicas, os dos cadeiraços, das ofensas
e ameaças aos professores, querem o mundo e a sociedade ultrapassados de uma
geração vencida, a geração fracassada que levou o Brasil ao abismo do mensalão
e do petrolão, da Operação Lava Jato, da corrupção descarada, do poder pelo
poder. Não lhes ensinaram a ver suas próprias contradições nem a reconhecer sua
missão no mundo. Apenas a gritar sem falar, calar sem ouvir, espernear sem
caminhar.
Servidores da USP decidiram encerrar uma greve que já durava mais
de dois meses. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores da USP, o corte de salário
de parte dos grevistas foi o principal motivo para o fim do movimento.