terça-feira, 8 de março de 2011

Racismo e mercado - entrevista com Walter Willians

Entrevista - Walter Williams - Páginas Amarelas, Revista Veja, Edição 2207 - 9 de março de 2011

"Walter Williams é um radical. Na juventude, preferia o incendiário Malcolm X ao pacifista Martin Luther King. Hoje, aos 74 anos, Williams admira os dois líderes negros, repudia a violência e se define como um libertário radical, como os americanos se referem aos que se opõem ao excesso de ativismo do estado e propugnam mais liberdade individual. Fiel ao seu ideário, é contra ações afirmativas e cotas raciais, e diz que o melhor instrumento para vencer a desigualdade racial é o livre mercado: “A economia de mercado é o grande inimigo da discriminação”. Criado pela mãe na periferia de Filadélfia, Williams acaba de publicar uma autobiografia em que narra sua trajetória da pobreza à vida de professor universitário (desde 1980, leciona economia na Universidade George Manson, na Virgínia). Com 1,98 metro de altura, voz de barítono, bom humor, ele demonstra muita coragem nesta entrevista).

- Quem lê sua autobiografia fica com a impressão de que ser negro nos Estados Unidos das décadas de 40 e 50 era melhor do que ser negro hoje?

Claro que os negros estão muito melhor agora, mas não em todos os aspectos. Hoje, se os negros americanos fossem uma nação à parte, seriam a 15ª mais rica do mundo. Entre os negros americanos, há gente riquíssima, como a apresentadora Oprah Winfrey. Há famosíssimos como o ator Bill Cosby, que, como eu, vem de Filadélfia. Colin Powell, um negro, comandou o Exército mais poderoso do mundo. O presidente dos Estados Unidos é negro. Tudo isso era inimaginável em 1865, quando a escravidão foi abolida. Em um século e meio, fizemos um progresso imenso, ao contrário do que aconteceu no Brasil ou no Caribe, onde também houve escravidão negra. Isso diz muito sobre os negros americanos e sobre os Estados Unidos.

- Em que aspectos a vida dos negros hoje é pior?

Cresci na periferia pobre de Filadélfia entre os anos 40 e 50. Morávamos num conjunto habitacional popular sem grades nas janelas e dormíamos sossegados sem barulho de tiros nas ruas. Sempre tive emprego, desde os 10 anos de idade. Engraxei sapatos, carreguei tacos no clube de golfe, trabalhei em restaurantes, entreguei correspondência nos feriados de Natal. As crianças negras de hoje que vivem na periferia de Filadélfia não têm essas oportunidades de emprego. No meu próximo livro, Raça e Economia, que sai no fim deste mês, mostro que em 1948 o desemprego entre adolescentes negros era de 9,4%. Entre os brancos, 10,4%. Os negros eram mais ativos no mercado de trabalho. Hoje, nos bairros pobres de negros, por causa da criminalidade, boa parte das lojas e dos mercados fechou as portas. Outra mudança dramática é a queda na qualidade da educação oferecida às crianças negras e pobres. Atualmente, nas escolas públicas de Washington, um negro com diploma do ensino médio tem o mesmo nível de proficiência em leitura e matemática que um branco na 7ª série. Os negros, em geral, estão muito melhor agora do que há meio século. Mas os negros mais pobres estão pior.

- O estado de bem-estar social, com toda a variedade de benefícios sociais criados nas últimas décadas, não ajuda a aliviar a situação de pobreza dos negros de hoje?

Todos os economistas, sejam eles libertários, conservadores ou liberais, concordam que sempre cai a oferta do que é taxado e aumenta a oferta do que é subsidiado. Há anos, os Estados Unidos subsidiam a desintegração familiar. Quando uma adolescente pobre fica grávida, ela ganha direito a se inscrever em programas habitacionais para morar de graça, recebe vale-alimentação, vale-transporte e uma série de outros benefícios. Antes, uma menina grávida era uma vergonha para a família. Muitas eram mandadas para o Sul, para viver com parentes. Hoje, o estado de bem-estar social premia esse comportamento. O resultado é que nos anos da minha adolescência entre 13% e 15% das crianças negras eram filhas de mãe solteira. Agora, são 70%. O salário mínimo, que as pessoas consideram uma conquista para os mais desprotegidos, é uma tragédia para os pobres. Deve-se ao salário mínimo o fim de empregos úteis para os pobres. A obrigação de pagar um salário mínimo ao frentista no posto de gasolina levou à automação e ao self-service. O lanterninha do cinema deixou de existir não porque adoramos tropeçar no escuro do cinema. É por causa do salário mínimo. Na África do Sul do apartheid, os grandes defensores do salário mínimo eram os sindicatos racistas de brancos, que não aceitavam filiação de negros. Eles não escondiam que o salário mínimo era o melhor instrumento para evitar a contratação de negros, que, sendo menos qualificados, estavam dispostos a trabalhar por menos. O salário mínimo criava uma reserva de mercado para brancos.

- As ações afirmativas e as cotas raciais não ajudaram a promover os negros americanos?

A primeira vez que se usou a expressão “ação afirmativa” foi durante o governo de Richard Nixon (1969-1974). Os negros naquele tempo já tinham feito avanços tremendos. Um colega tem um estudo que mostra que o ritmo do progresso dos negros entre as décadas de 40 e 60 foi maior do que entre as décadas de 60 e 80. Não se pode atribuir o sucesso dos negros às ações afirmativas.

- As ações afirmativas não funcionam?

Os negros não precisam delas. Dou um exemplo. Houve um tempo em que não existiam jogadores de basquete negros nos Estados Unidos. Hoje, sem cota racial nem ação afirmativa, 80% são negros. Por quê? Porque são excelentes jogadores. Se os negros tiverem a mesma habilidade em matemática ou ciência da computação, haverá uma invasão deles nessas áreas. Para isso, basta escola, boas escolas, grandes escolas. Há um aspecto em que as ações afirmativas são até prejudiciais. Thomas Sowell, colega economista, tem um estudo excelente sobre o assunto. Mostra como os negros se prejudicam com a política de cotas raciais criada pela disputada escola de engenharia do Instituto de Tecnologia de Massa-chusetts (MIT), uma das mais prestigiosas instituições acadêmicas dos Estados Unidos. Os negros recrutados pelo MIT estão entre os 5% melhores do país em matemática, mas mesmo assim precisam fazer cursos extras por alguns anos. Isso acontece porque os brancos do MIT estão no topo em matemática, o 1% dos melhores do país. Os negros, mesmo sendo muito bons, estão abaixo do nível de excelência do MIT. Mas eles podiam muito bem estudar em outras instituições respeitáveis, onde estariam na lista dos candidatos a reitor e sem necessidade de cursos especiais. Por causa de ações afirmativas, muitos negros estão hoje em posição acima de seu potencial acadêmico. Se você está aprendendo a lutar boxe e sua primeira luta é contra o Mike Tyson, você está liquidado. Você pode ter excelente potencial para ser boxeador, mas não dá para começar contra Tyson. As ações afirmativas, nesse sentido, são cruéis. Reforçam os piores estereótipos raciais e mentais.

- O senhor já teve alguma experiência pessoal nesse sentido?

Quando eu dava aula na Universidade Temple, em Filadélfia, tive uma turma com uns trinta alunos, todos brancos, à exceção de um. Nas primeiras aulas, eles me fizeram uma bateria de perguntas complexas. Você pode achar que era paranoia minha, mas eu sei que o objetivo deles era testar minhas credenciais. A cada resposta certa que eu dava, eu podia ver o alívio no rosto do único aluno negro da classe. De onde vinha esse sentimento, esse temor do aluno negro de que seu professor, sendo negro, talvez não fosse suficientemente bom? Das ações afirmativas. Não entrei na universidade via cotas raciais. Por causa delas, a competência de muitos negros é vista com desconfiança.

- Num país como o Brasil, onde os negros não avançaram tanto quanto nos Estados Unidos, as ações afirmativas não fazem sentido?

A melhor coisa que os brasileiros poderiam fazer é garantir educação de qualidade. Cotas raciais no Brasil, um país mais miscigenado que os Estados Unidos, são um despropósito. Além disso, forçam uma identificação racial que não faz parte da cultura brasileira. Forçar classificações raciais é um mau caminho. A Fundação Ford é a grande promotora de ações afirmativas por partir da premissa errada de que a realidade desfavorável aos negros é fruto da discriminação. Ninguém desconhece que houve discriminação pesada no passado e há ainda, embora tremendamente atenuada. Mas nem tudo é fruto de discriminação. O fato de que apenas 30% das crianças negras moram em casas com um pai e uma mãe é um problema, mas não resulta da discriminação. A diferença de desempenho acadêmico entre negros e brancos é dramática, mas não vem da discriminação. O baixo número de físicos, químicos ou estatísticos negros nos Estados Unidos não resulta da discriminação, mas da má formação acadêmica, que, por sua vez, também não é produto da discriminação racial.

- Qual o meio mais eficaz para promover a igualdade racial?

Primeiro, não existe igualdade racial absoluta, nem ela é desejável. Há diferenças entre negros e brancos, homens e mulheres, e isso não é um problema. O desejável é que todos sejamos iguais perante a lei. Somos iguais perante a lei, mas diferentes na vida. Nos Estados Unidos, os judeus são 3% da população, mas ganham 35% dos prêmios Nobel. Talvez sejam mais inteligentes, talvez sua cultura premie mais a educação, não interessa. A melhor forma de permitir que cada um de nós — negro ou branco, homem ou mulher, brasileiro ou japonês — atinja seu potencial é o livre mercado. O livre mercado é o grande inimigo da discriminação. Mas, para ter um livre mercado que mereça esse nome, é recomendável eliminar toda lei que discrimina ou proíbe discriminar.

- O senhor é contra leis que proíbem a discriminação?

Sou um defensor radical da liberdade individual. A discriminação é indesejável nas instituições financiadas pelo dinheiro do contribuinte. A Universidade George Manson tem dinheiro público. Portanto, não pode discriminar. Uma biblioteca pública, que recebe dinheiro dos impostos pagos pelos cidadãos, não pode discriminar. Mas o resto pode. Um clube campestre, uma escola privada, seja o que for, tem o direito de discriminar. Acredito na liberdade de associação radical. As pessoas devem ser livres para se associar como quiserem.

- Inclusive para reorganizar a Ku Klux Klan?

Sim, desde que não saiam matando e linchando pessoas, tudo bem. O verdadeiro teste sobre o nosso grau de adesão à ideia da liberdade de associação não se dá quando aceitamos que as pessoas se associem em torno de ideias com as quais concordamos. O teste real se dá quando aceitamos que se associem em torno de ideais que julgamos repugnantes. O mesmo vale para a liberdade de expressão. É fácil defendê-la quando as pessoas estão dizendo coisas que julgamos positivas e sensatas, mas nosso compromisso com a liberdade de expressão só é realmente posto à prova quando diante de pessoas que dizem coisas que consideramos absolutamente repulsivas.

- O senhor exige ser chamado de “afro-americano”?

Essa expressão é uma idiotice, a começar pelo fato de que nem todos os africanos são negros. Um egípcio nascido nos Estados Unidos é um “afro-americano”? A África é um continente, po-voado por pessoas diferentes entre si. Os vários povos africanos estão tentando se matar uns aos outros há séculos. Nisso a África é idêntica à Europa, que também é um continente, também é povoada por povos distintos que também vêm tentanto se matar uns aos outros há séculos.

- A presença de Obama na Casa Branca não ajuda os negros americanos?

Na autoestima, talvez. Mas não por muito tempo, o que é lamentável. Em 1947, quando Jackie Robinson se tornou o primeiro negro a jogar beisebol na liga profissional, ele tinha a obrigação de ser excepcional. Hoje, nenhum negro precisa ser tão bom quanto Robinson e não há perigo de que alguém diga “ah, esses negros não sabem jogar beisebol”. No caso de Obama, vale a mesma coisa. Por ser o primeiro negro, ele não pode ser um fracasso. O problema é que será. Aposto que seu governo, na melhor das hipóteses, será um desastre igual ao de Jimmy Carter. Vai ser ruim para os negros."

SILÊNCIOS QUE FALAM - Fernando Henrique Cardoso

Silêncios que falam

(Publicado em 06 de março de 2011 no jornal O Estado de S.Paulo)

"Desde quando vivi de muito perto a experiência da "revolta dos estudantes" de maio de 1968 em Paris, comecei a duvidar das teorias que aprendera sobre as mudanças sociais no mundo capitalista. Estas estavam baseadas na visão da História como uma sucessão de lutas entre as classes sociais visando ao controle do Estado para, por intermédio dele, seja manter a dominação de classes, seja destruir todas elas e construir a "sociedade do futuro" sem classes e, portanto, sem que os partidos tivessem função relevante. A qual seria crucial, na visão dos revolucionários do século 20 de inspiração leninista, apenas na "transição", quando se justificaria até mesmo a ditadura do proletariado, exercida pelo partido.

Pois bem, nas greves estudantis da Universidade de Paris, em Nanterre e na Sorbonne (assim como nos câmpus universitários americanos, com outras motivações), que acabaram por contaminar a França inteira e repercutiram pelo mundo afora, vi, perplexo, que as palavras de ordem não falavam em "anti-imperialismo" e só remotamente mencionavam os trabalhadores, mesmo quando estes, atônitos, entravam nos auditórios estudantis "ocupados" pelos ativistas jovens. Falava-se em liberdade, em ser proibido proibir, em amor livre, em valorizar o indivíduo contra o peso das instituições burocratizadas, e assim por diante. É verdade que nas passeatas havia bandeiras negras (dos velhos anarquistas) e vermelhas (dos bolcheviques). Faltavam os símbolos do novo e mais, na confusão ideológica geral, pouco se sabia sobre o que seria novo nas sociedades, isto é, nas estruturas sociais, do futuro. Por outro lado, o estopim da revolta não foram as greves trabalhistas, que ocorreram depois, nem choques no plano institucional, mas pequenos-grandes anseios de jovens universitários que, como num curto-circuito, incendiaram o conjunto do país.

Só que, logo depois, De Gaulle, vendo seu poder posto à prova, foi buscar apoio nos paraquedistas franceses sediados na Alemanha e, com a cumplicidade do Partido Comunista, restabeleceu a antiga e "boa" norma. Por que escrevo essas reminiscências? Porque desde então o mundo mudou muito, principalmente com a revolução informática. Crescentemente as "ordens estabelecidas" desmoronam sem que se perceba a luta entre as classes. Foi assim com o desmoronamento do mundo soviético, simbolizado pela queda do Muro de Berlim. Está sendo assim hoje no norte da África e no Oriente Médio. Cada vez mais, em silêncio, as pessoas se comunicam, murmuram e, de repente, se mobilizam para "mudar as coisas". Neste processo, as novas tecnologias da comunicação desempenham papel essencial.

Até agora, ficaram duas lições. Uma delas é que as ordens sociais no mundo moderno se podem desfazer por meios surpreendentes para quem olha as coisas pelo prisma antigo. A palavra, transmitida a distância, a partir da soma de impulsos que parecem ser individuais, ganha uma força sem precedentes. Não se trata do panfleto ou do discurso revolucionário antigo nem mesmo de consignas, mas de reações racionais-emocionais de indivíduos. Aparentemente isolados, estão na verdade "conectados" com o clima do mundo circundante e ligados entre si por intermédio de redes de comunicação que se fazem, desfazem e refazem ao sabor dos momentos, das motivações e das circunstâncias. Um mundo que parecia ser basicamente individualista e regulado pela força dos poderosos ou do mercado de repente mostra que há valores de coesão e solidariedade social que ultrapassam as fronteiras do permitido.

Mas ficou também a outra lição: a reconstrução da ordem depende de formas organizacionais, de lideranças e de vontades políticas que se expressem de modo a apontar um caminho. Na ausência delas, volta-se ao antigo - caso De Gaulle - ou, na iminência da desordem generalizada, há sempre a possibilidade de um grupo coeso e nem sempre democrático prevalecer sobre o impulso libertário inicial. Noutros termos: recoloca-se a importância da pregação democrática, da aceitação da diversidade, do direito "do outro".

Talvez seja este o enigma a ser decifrado pelas correntes que desejem ser "progressistas" ou "de esquerda". Enquanto não atinarem ao "novo" nas circunstâncias atuais - que supõe, entre outras coisas, a reconstrução do ideal democrático à base da participação ampliada nos circuitos de comunicação para forçar maior igualdade -, não contribuirão para que a cada surto de vitalidade em sociedades tradicionais e autocráticas surjam de fato formas novas de convivência política. Agora mesmo, com as transformações no mundo islâmico, é hora de apoiar em alto e bom som os germens de modernização, em vez de guardar um silêncio comprometedor. Ou, pior, quebrá-lo para defender o indefensável, como Hugo Chávez ao dizer "que me conste, Kadafi não é assassino". Ou como Lula, que antes o chamou de "líder e irmão"! Para não falar dos intelectuais "de esquerda" que ainda ontem, quando eu estava no governo, viam em tudo o que era modernização ou integração às regras internacionais da economia um ato neoliberal de vende-pátria. Exigiam apoio a Cuba, apoio que não neguei contra o injusto embargo à ilha, mas que não me levou a defender a violação de direitos humanos. Será que não se dão conta de que é graças ao maior intercâmbio com o mundo - e principalmente com o mundo ocidental - que hoje as populações do norte da África e do Oriente Médio passam a ver nos valores da democracia caminhos para se libertarem da opressão? Será que vão continuar fingindo que "o Sul", nacional-autoritário, é o maior aliado de nosso desenvolvimento, quando o governo petista busca, também, maior e melhor integração do Brasil à economia global e ao sistema internacional, sem sacrifício dos nossos valores mais caros?

Há silêncios que falam, murmuram, contra a opressão. Mas há também silêncios que não falam porque estão comprometidos com uma visão que aceita a opressão. Não vejo como alguém se possa imaginar "de esquerda" ou "progressista" calando no momento em que se deve gritar pela liberdade."

(Fernando Henrique Cardoso é Sociólogo e foi Presidente da República)