sexta-feira, 16 de abril de 2021

Os sabichões do Supremo

 Nas histórias em quadrinhos do Brucutu há uma hilariante coleção de personagens: o rei Guz, a rainha Umpa e mais outras ridículas figuras dentre as quais se destaca  o Grande Sabichão. Este é o sábio, o feiticeiro, o factotum da aldeia. Nada escapa à sua percuciente análise do que seja o correto caminho da cura dos malefícios que eventualmente aparecem, sejam eles físicos ou espirituais. Ao contrário do que acontece no Supremo Tribunal Federal da pátria, no qual se pavoneiam onze sabichões, a tribo pré-histórica de Brucutu só tem um exemplar deste sábio. Talvez essa diferença numérica seja um indicador de potência civilizatória: mais sofisticado o grupo humano, em qualquer tempo e lugar, mais sabichões serão necessários para a manutenção da lei e da ordem, além do bem estar e segurança de todos.

Quem sabe o Brasil não esteja a necessitar de mais sabichões, para ilustrar e fortalecer seu máximo tribunal? O Sinédrio judaico possuía, naqueles tempos bíblicos, um total de 71 membros. Os pouco mais que uma dezena de magistrados, do Supremo atual, estão muito aquém daquele número. No entanto, vem recebendo tal carga de demanda que criou-se uma situação quase desumana, verdadeira exploração do outro, análoga à condição de escravo. Os sabichões do Supremo, qualquer um pode notar, aparentam evidente ar de canssaço , obrigados a ler enfadonhos relatórios uns para os outros. Possivelmente, estão remoendo dentro de si enquanto pensam na vasta coleção de processos estocados nos depósitos e gavetas de suas repartições; e sofrem antecipadamente com a torturante imagem de que algum dia precisarão ouvir a mesma xaropada; muito mais choro e ranger de dentes que horas de seda e ouro. 

quarta-feira, 15 de julho de 2020

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Harmonia e cacofonia

Ministros do Supremo Tribunal Federal, bem como presidentes do Senado e da Câmara dos deputados, não se cansam de, dia sim, dia não, proclamar as altas virtudes da separação dos poderes, a fim de justificarem suas abusivas intromissões no campo de competência do presidente da república. Tais manifestações de tão altos juízes togados criam, ao contrário da harmonia estipulada constitucionalmente, uma infernal cacofonia. Algo parecido com uma orquestra composta por vuvuzelas, caxirolas e berimbaus agrupados num bando de dimensões equivalentes ao somatório do número de magistrados das Cortes Superiores. Obedecido o critério, isso vai pra lá de meia centena de participantes, todos vuvuzelando, caxirolando e berimbausando. Nem Dante imaginou ruídos tão infernais para seus condenados. Seria esta, de fato, a mais perfeita imagem de cacofonia, com a orquestra de vuvuzelas, caxirolas e berimbaus comandada por um ensandecido Barbarícia. Somente este,  postado como maestro da turma, demônio indecente que era, portava instrumento diferente daqueles outros, ao fazer de tuba o traseiro rodopiante, conforme apontou o memorável poeta florentino.   

Harmonia, ao contrário, exige instrumentos de outra ordem. No paraíso a bem aventurança é gozada não apenas pela presença de Deus, mas pelas melodias harmoniosas que brotam do violino de Bach, e se espalham eternamente pelo éter, para gáudio das almas escolhidas, aquelas que buscaram com sinceridade cultivar a harmonia como princípio, em todas as oportunidades com as quais se depararam em vida. 


 

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Queima de pneus, morte de inocente



Ricardo Kertzman publicou em seu blog - no dia 18 de junho do corrente – o texto que segue abaixo. Pouca coisa há a acrescentar às suas considerações. Talvez, apenas, a cobrança da responsabilidade de notórios dirigentes acadêmicos e sindicais, patronos da selvageria que se viu no dia 14 de junho. 
Que os piromaníacos fazem parte da comunidade universitária da UFMG ninguém duvida. A queima de pneus resultou na torturante morte de uma mulher de 53 anos, mãe de oito filhos, que seguia para o trabalho habitual de faxineira no centro da capital mineira. 
A imprensa, ao que parece, não noticiou qualquer manifestação de solidariedade à família enlutada provinda da Reitoria nem dos sindicatos de professores e dos funcionários e, muito menos, dos inúmeros grupos de estudantes intoxicados, estes, não pela fumaça venenosa de pneus em chamas, mas pelo discurso de ódio gestado no gramscismo que impregna as salas de aulas. Os alunos, na sua trajetória pela vida poderão, para seu infortúnio, dizer, amanhã, que aprenderam muitas coisas na universidade, inclusive a matar inocentes. 
E nem precisarão pedir desculpas pela participação comissiva nem omissiva no resultado do homicídio daquela pobre vítima. Afinal, se a cúpula da instituição pouco, ou nada fez nessa direção, ficam todos desobrigados de proporcionar qualquer reparo à família enlutada, mesmo que apenas moral. Nota-se que um silêncio cúmplice une todos os partícipes. 
O Ministério Público bem poderia chamar a si a apuração da responsabilidade criminal e civil dos envolvidos, direta ou indiretamente, no trágico episódio.   

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Mulher, pobre e preta só servirá como cadáver a ser explorado sendo de esquerda (Ricardo Kertzman)   
Edi Alves Guimarães não é ninguém. Ou melhor não era, pois faleceu nesta segunda-feira, dia 17 de Junho, após quatro dias internada na UTI.

Edi era pobre, mãe de oito filhos e uma trabalhadora comum, destas que enfrentam horas e horas para ir e voltar do trabalho todos os dias.

Você nunca ouvira falar dela antes, e provavelmente jamais ouvirá outra vez. Foi morta, asfixiada pela fumaça de pneus queimados na Av. Antônio Carlos, em Belo Horizonte.

Para seu azar, e azar ainda maior da prole que aqui ficou, Edi foi assassinada por terroristas travestidos de “manifestantes”.

Por quê? Ora, porque “Xô, Bolsonaro”; “Reforma da Previdência, não” e “Moro corrupto”servem de desculpa para a esquerda brasileira matar.

Em 2014, Santiago Ilídio Andrade, de apenas 49 anos, também trabalhava quando foi assassinado por “militantes” que estavam no local.

Santiago era o cinegrafista da Band, atingido na cabeça por um foguete disparado contra policiais militares.

Em ambos os casos, os assassinos foram tratados como meros manifestantes ou militantes políticos, protestando democraticamente nas ruas.

Imagino o que não teria acontecido caso os mortos fossem petistas ou psolistas, acidentalmente abatidos por policiais ou militares das Forças Armadas.

Imagino o que não teria acontecido acaso os mortos vestissem camisetas com o Che Guevara ou Lula Livre estampados.

Toda morte violenta choca, mas algumas, para alguns, mais que as outras, pois há que se levar em conta o pedigree do(a) falecido(a).

Mulher, pobre e preta só serve como defunto a ser politicamente explorado se for de esquerda e/ou vestir camiseta e boné do MST.

Gay, pobre e preto idem. Do contrário, que o anonimato, o esquecimento e a impunidade tomem conta do infeliz.

Já passou da hora de termos uma lei que puna severamente e que equipare a terroristas esses assassinos hediondos.

Quantos não perdem a vida tentando chegar a um hospital, sitiado por pneus queimados e arruaceiros vândalos interditando ruas, avenidas e estradas?

Em muito menor grau e prejuízo, quantos não perdem nascimentos, casamentos, batizados, formaturas e viagens?

Datas que não se repetem, dinheiro que não se recupera, corpos mutilados e vidas que se perdem como se tudo fosse normal e corriqueiro como se chatear com o miado do gato vizinho.

Mas ai de quem propuser uma lei assim. Será taxado pela esquerdopatia canina como fascista, ditador, intolerante e sei lá mais o quê do jargão monotemático das bestas.

O Brasil prefere a covardia ao enfrentamento. Prefere as mortes ao embate político. Prefere matar e morrer, pois mais fácil assim.

Em mais dois ou três dias, ninguém falará (alguém falou?) mais da Edi. Afinal de contas, ela não era assim uma Brastemp, ou melhor, uma Marielle Franco.

Pobre coitada.


quarta-feira, 1 de maio de 2019

Universidades e rinocerontes


Em curiosa passagem de sua autobiografia, Paulo Duarte dizia que as universidades haviam sido invadidas pelos rinocerontes, ali pelos idos de 1970. Homem refinado e profundamente envolvido com a política e a educação, Paulo Duarte, um dos fundadores da USP, tinha credenciais suficientes para julgar os acontecimentos derivados daqueles, dos quais participara ou testemunhara. Sua atuação foi decisiva - junto com os Mesquita e seu prestigioso jornal - para a vinda das missões estrangeiras que ajudaram a instalar a jovem e pioneira universidade paulista. Outro relato a respeito desses tempos, agora sob a perspectiva de um dos mestres franceses (Claude Lévi-Strauss em seu monumental ensaio Tristes Trópicos), permite enriquecer a visão sobre a dinâmica e o ambiente da época.  

Sim, os rinocerontes invadiram as universidades. Problema maior decorrente de tal fato é a fecundidade das bestas. Multiplicaram-se prodigiosamente, ao estilo de Ionescu (felizes, quase deuses), passando a fazer parte indissociável da paisagem onde se instalaram. Agora, transitam não só pelos campi universitários mas, também, desfilam altaneiros por outros espaços das cidades. 

O governo Bolsonaro terá enormes dificuldades com essas alimárias. Qualquer ameaça, por menor que seja, de esvaziar o cocho habitual, provocará imensa resistência, em especial dos docentes, alunos e técnicos administrativos. As reações ao contingenciamento anunciado pelo Ministério da Educação servirão de alerta para o governo federal. Este poderá ter na manga alguns trunfos. Por que, não, reduzir drasticamente os gastos com os chamados Serviços de Terceiros? Limpeza, vigilância, conservação e outros, como manutenção e alimentação, bem poderiam ser executados pelos alunos das instituições públicas, em escala de rodízio. Tais atividades estariam inclusas no plano de ensino das diferentes unidades acadêmicas. Uma multidão de gente terceirizada ficaria disponível para trabalhar em outros ramos e entidades existentes na sociedade. Seria uma forma de combater parte da herança senhorial e escravocrata que nos avassala. 

Um passeio pelos campi permite construir uma imagem desse anacronismo. Enquanto milhares de alunos dessas madraçais estudam os textos sagrados do gramscismo, inumeráveis e opacas figuras, como sombras vivas, manejam suas vassouras e baldes d'água pelas salas, banheiros e corredores para que os sinhozinhos e sinhazinhas se sintam alegres e confortáveis ao longo de estafante dia de trabalho e estudo (ufa!).     

segunda-feira, 22 de abril de 2019

O STF recrudesceu

Em tempos já idos e vividos, quando um general das antigas se incomodava por qualquer dá cá esta palha do dia a dia, ele ameaçava recrudescer. Este curioso verbo é dicionarizado como "transformar em algo ou alguém mais intenso: tornar-se mais forte, exacerbar. Reviver os sintomas mais intensos e alarmantes da doença; agravar-se". 

Dois ilustres ministros do STF passaram, então, do cogitado ao executado: recrudesceram, e saíram a prender qualquer cidadão no qual enxergassem alguma conduta delitiva, principalmente, se se referisse a algum reparo às inumeráveis presepadas com as quais os onze sábios do supremo sinédrio nos brinda quase que diariamente. 

No período pascal ficaria bem lembrado o julgamento do Divino Mestre pela gangue comandada por Anás e Caifás. Pai e filho se preocupavam sobremaneira com o rumo dos negócios praticados à sombra das arcadas do templo. Pela primeira e única vez, o filho do Eterno se enfureceu e saiu a chicotear o bando de traficantes que contavam, certamente, com o apoio decisivo dos empreiteiros de então.  

A hipótese não é absurda. Naqueles tempos, palácios, estradas, termas, diques, canais, fortalezas e similares eram construídas por gente especialmente devotada a tais empreendimentos. 

A narrativa maçônica sugere a relevância dos construtores para a vida humana em termos de segurança, conforto e prática devota. Centra-se, para isso, na trajetória do arquiteto Hiran Abif, um empreiteiro dos bons e do bem, assassinado por concorrentes, ao que parece, invejosos do seu poder e competência.  

Nada mais corriqueiro, portanto, que os vínculos orgânicos que empreiteiros de todos os tipos e calibre estabeleciam com os donos do poder secular e temporal. Afinal, se obras precisam ser realizadas, é necessário que alguém as encomende e, principalmente, pague por elas. 

É claro que havia riscos no negócio. Calígula, por exemplo, que foi um grande realizador de obras monumentais durante seu curto reinado (segundo Suetônio), costumava mandar decapitar os empreiteiros que não fossem eficientes. Esse costume um tanto bárbaro, bem poderia ser recuperado em nome do interesse público. Seria um estímulo irresistível. É tentador pensar, igualmente, nos juízes escorchados por  desídia ou venalidade.

Voltando ao começo. É possível que os arroubos de virilidade, vistos no recrudescimento de dois juízes fakes do STF, sejam prenúncio de novos e arejados tempos. Quem sabe tudo não seja mais que insidiosa manobra para permitir por linhas transversas um efetivo questionamento sobre o anacronismo do próprio Supremo e de suas inconveniências?

DiasTóffoli e Alexandre Moraes estão se autoimolando em benefício da morigeração do judiciário. A incompreensão a respeito deles é a mesma que cerca Judas Iscariote, único da troupe do Divino Mestre a perceber que alguém deveria traí-Lo, para que se cumprisse a profecia. Os demais apóstolos queriam, primeiramente, obter as glórias do Paraíso. Não iriam por em risco a oportunidade ímpar de se ajeitarem entre os eleitos. Deixaram para o ecônomo o triste encargo da renúncia pessoal em prol dos demais.  

Fantasia? Talvez não... Longa vida a Tóffoli e Moraes pela notável garantia que estão dando às liberdades públicas. Mesmo que por linhas tortas, aliás, tortíssimas. Pela traição que cometeram contra a Constituição estão  contribuindo com a democracia, tal qual o Iscariote com os mistérios da Salvação. Que a dupla continue a recrudescer.


sábado, 20 de abril de 2019

Dias Tóffoli e Monteiro Lobato



Não há como não se espantar com situações onde a vida imita a arte. Monteiro Lobato, tão censurado por energúmenos esquerdistas, tinha tal peculiar capacidade de escrever, ao contrário de romancistas tradicionais. Sua prosa parece antecipar os fatos históricos e, não, o sucedê-los. Veja-se, por exemplo, o incrível e profético “O presidente negro ou o choque das raças”, publicado décadas antes da posse do presidente Obama, nos Estados Unidos.

O caso, agora, do enrolado ministro, e presidente do STF, faz lembrar, e muito, o delicioso “causo” do marido da professora, do conto O Chupim, obra prima de sátira aos costumes do engenhoso paulista, conterrâneo por acaso do espertíssimo ministro, teúdo e manteúdo da diligente patroa.

A revista digital Crusoé afirmou que o ministro Dias Tóffoli recebe uma mesada de R$ 100 mil de sua mulher, a advogada Roberta Maria Rangel. Os repasses, segundo a reportagem, saem de uma conta de Roberta no banco Itaú com destino a outra mantida em nome do casal no banco Mercantil do Brasil.

Os repasses, de acordo com a publicação, foram realizados ao menos desde 2015 e somam R$ 4,5 milhões. Dos R$ 100 mil mensais depositados pela mulher de Toffoli, diz a revista, metade (R$ 50 mil) é transferida para a ex-mulher do ministro, Mônica Ortega, e o restante é utilizado para custear suas despesas pessoais. Nada de comparável com a avareza de dona Zenóbia, que controlava até os míseros ceitis com os quais o maridão do conto de Lobato comprava um eventual maço de cigarros, vício deplorável, segundo a professora. Ainda de acordo com a reportagem, a conta é operada por um funcionário do gabinete de Tóffoli.

A revista revela que, em 2015, a área técnica do Mercantil encontrou indícios de lavagem de dinheiro nas transações efetuadas na conta do ministro, mas a diretoria do banco ordenou que as informações não fossem encaminhadas para o Coaf, órgão de inteligência financeira do Brasil. Todos os bancos são obrigados a comunicar ao Coaf transações suspeitas de lavagem de dinheiro. O ministro Dias Tóffoli,no entanto, não se manifestou sobre o caso. Essa é a parte do mundo real. A parte artística, imaginosa, se for possível assim dizer, vem no relato abaixo




O romance do chupim

Monteiro Lobato



Ouvíamos no cine a música precursora da primeira fita, quando entrou na sala um curioso casal. Ela, feiarona, na idade em que a natureza começa a recolher uma a uma todas as graças da mocidade, como a lavadeira recolhe as roupas do varal. Tirara-lhe já a frescura da pele e o viço da cor, deixando-lhe em troca as sardas e os primeiros pés de galinha. Tirara-lhe também os flexuosos meneios de corpo, a garridice amável, os tiques todos que, somados, formam essa teia de sedução feminina onde se enreda o homem para proveito multiplicativo da espécie. Quase gorda, as linhas do rosto entravam a perder-se num empaste balofo. Certa pinta da face, mimo que aos dezoito anos inspiraria sonetos, virara verruga, com um sórdido fio de cabelo no píncaro. No nariz amarelecido o pince-nez clássico da professora que se preza. Em matéria de vestuário, suas roupas escuriças, mais atentas à comodidade do que à elegância, denunciavam a transição do “moda” para “fora da moda”.

Ele, bem mais moço, tinha um ar vexado e submisso de “coisa humana”, em singular contraste com o ar mandão da companheira. O estranho do casal residia sobretudo nisso, no ar de cada um, senhoril do lado fraco, servil do lado forte. Inquilino e senhorio; quem manda e quem obedece; quem dá e quem recebe. Ela falava do alto; ele ouvia de baixo e mansinho; caso evidente em que cantava a galinha e o galo chocava os pintos.

Meu amigo apontou o homem com o beiço e murmurou:

— Um chupim.

— Chupim? — repeti interrogativamente, estranhando a palavra que ouvia pela primeira vez.

— Quer dizer, marido de professora. O povo alcunha-os desse modo por analogia com o passarinho-preto que vive à custa do tico-tico. Conheces?

Lembrei-me da cena tão comum em nossos campos do tico-tico a pajear um graúdo filho de chupim, e pus-me a observar o casal com maior interesse, mormente depois de começada a fita, relíssima salgalhada francesa. Já eles não tiravam os olhos da tela, salvo o marido, que para melhor ouvir algum comentário da esposa não se limitava a dar-lhe ouvidos, dava-lhe olhos também.

— Os chupins — prosseguiu o meu cicerone — são homens falhos, ratés da virilidade — a moral, está claro, que a outra lhes é indispensável para o bom desempenho do cargo.

— Cargo?

— Cargo, sim. Eles desempenham o cargo importantíssimo de maridos. Em troca as esposas ganham-lhes a vida e dirigem os negócios do casal, desempenhando todos os papéis normalmente atribuídos aos machos. Tais mulheres apenas fazem aos maridos a concessão suprema de engravidarem por obra e graça deles, já que é impossível a revogação de certas leis naturais.

“Quando a mulher vai à escola, fica o chupim em casa cocando os filhos, arrumando a sala ou mexendo a marmelada. Há sempre para eles uma recomendaçãozinha à hora da saída para a aula.

“— As vidraças da frente estão muito feias. Você hoje, quando as Moreiras saírem, passe um pano com gesso. (As Moreiras são as vizinhas da frente.)

“O chupim acostuma-se à submissão e acaba usando em casa as saias velhas da mulher, para economia de calças.”

— Para aí, homem de Deus! Do contrário acabas contando a história de um que chegou a dar à luz um crianço!...

A fita chegara ao fim. Surgiu o galo vermelho da Pathé, que boleou o pescoço num coricocó mudo e sumiu-se para dar lugar ao reacender das lâmpadas.

A mulher ergueu-se, espanejou-se e saiu, seguida do chupim solícito. Acompanhamo-los de perto, estudando o caso, e na rua, depois que os perdemos de vista, o meu amigo retomou o assunto.

— Em matéria de chupins conheço um caso interessante. Que segui desde os primórdios.

“Eduardinho Tavares, filho de tio e sobrinha, nascera sem tara aparente, a não ser extrema dubiedade de caráter, uma timidez de menina do tempo em que a timidez nas meninas era moda. Espécie de criatura intermediária entre os dois sexos.

“Em criança brincava de boneca, de preferência às nossas touradas, ao jogo dos ‘caviúnas’, ao ‘pegador’. Em meninote, enquanto os da sua idade descadeiravam gatos pela rua, lia Paulo e Virgínia à sombra das mangueiras, chorando sentidas lágrimas nos lances lacrimogêneos.

Fomos colegas de escola, e lembro-me que um dia lá nos apareceu Eduardo com um pagagaio de miçanga verde, obra sua. Eu, estouvado de marca, ri-me daquilo e escangalhei com a prenda, enquanto o maricas, abrindo uma bocarra de urutau, rompia num choro descompassado, como choram mulheres. Irritado, dei-lhe valentes cachações. Eduardo não reagiu; acovardou-se, humilhou-se, feito o meu carneirinho. Só procurava a mim dentre cem companheiros. Acamaradamo-nos daí por diante, o que não me impediu de o fazer armazém de pancadas. Por qualquer coisinha, uma cacholeta. Ele ria-se, meigo, e cada vez mais me rentava. Pus-lhe o apelido de Maricota. Não se zangou, gostou até, confessando achar mais graça nesse nome do que no seu.

“Hoje eu estudaria esse tipo à luz de Freud, como caso deveras notável; naquele tempo feliz de sadia ingenuidade limitava-me a tirar partido da sua submissão, transformando-o em peteca, em escravo, em coisa de que a gente põe e dispõe.

“Saídos do colégio continuamos camaradas, de modo que pude acompanhá-lo por um bom pedaço da vida afora. Nunca perdeu a timidez donzelesca. Fugia às meninas, sobretudo se eram românticas, ou acentuadamente mulheris — o meu gênero.

“Fez-se misógino.

“Por essas alturas casei-me — casei-me com a moça mais feminina da época, uma romântica escapulida a Escrich, dessas que têm medo às baratas e caem de fanico se um rato lhes corre pela sala — o meu gênero, enfim.

“Eduardo permaneceu solteiro, sempre às sopas do pai, até que este morreu e lhe deixou de herança uns prédios, mais uns títulos. Sem tino comercial, passaram-lhe a perna, comeram-lhe casas e apólices; quando o pobre rapaz abriu os olhos estava a nenhum. Recorrendo a mim para um bom conselho de arrumação de vida, vi que não dava para coisa nenhuma — e receitei-lhe a professora.

“— Casa-te. Incapaz de ação como és, tua saída única se resume em tirar partido da tua qualidade de macho. Casa com moça rica, ou, então, com mulher trabalhadeira.

“Nada valeu o conselho. Eduardo não tinha jeito para requestar mãos femininas, quer bem aneladas, quer muito calejadas. Embaraçava-o a irredutível timidez.

“Mas o diabo as arma.

“Um belo dia apareceu na terra uma professora nova, mais ou menos ao molde desta de há pouco. Tipo de mulheraça máscula, angulosa, ar enérgico, autoritária. Gostava de discutir política, entendia de cavalos, lia jornais, tinha ideias sobre a seca do Ceará e o saneamento dos sertões. Apesar de bem conservada, andava perto dos quarenta, não fazendo nenhum mistério disso. Se não se casara até então, não é que fosse infensa ao matrimônio: não achara ainda o seu tipo de homem, dizia.

“Pois não é que o raio da pedagoga vê Eduardo e se engraça dele? Examina-o fulminantemente, como quem examina um cavalo; mira-o de alto a baixo, interpela-o, dá-lhe balanço às ideias e aos sentimentos, pesa-lhe o valor monetário, pede-lhe, ou, antes, toma-lhe a mão, leva-o à igreja e casa-o consigo.

“Foi um relâmpago tudo aquilo. Em três tempos namorado, noivado, casado e metido no gineceu, o pobre moço, quando abriu os olhos, estava chupim para todo o sempre.

“Dona Zenóbia sabia avir-se com a vida. Ganhava-a folgadamente. Além da escola particular que dirigia, tinha a juros um pequeno capital que não cessava de crescer, colocado a quatro ou cinco por cento ao mês, sob garantias de toda ordem. Casada, continuou à testa dos negócios; o marido, se aparecia nominalmente nalguma transação, era proforma.

“Encaramujado em casa da professora, Eduardinho foi sonegado ao mundo e o mundo acabou esquecendo Eduardinho. Nunca mais o viram na rua, ou nas festas, sem ser pelo braço da mulher, na atitude encolhida daquele chupim do cinema.

“Um filho nasceu-lhes nesse entretempo, e começa aqui o mais engraçado da comédia.

“A tantas, dona Zenóbia deu de gabar as qualidades artísticas do esposo.

Eduardo era um grande talento literário, capaz de obras deveras notáveis.

“— Vocês — dizia ela às professoras do colégio — não sabem que tesouro perderam. Eduardo saiu-me uma verdadeira revelação. É dessas criaturas privilegiadas que possuem o dom divino da arte, mas que às vezes passam a vida inteira sem se revelarem a si próprias. Aqueles seus modos, aquela timidez: gênio puro, minhas amigas! Vocês hão de vê-lo um dia aparecer qual meteoro, alcançar a glória e cair como um bólide dentro da Academia. Está escrevendo um romance que é um suquinho! Lindo, lindo!...

“Esse romance levou meses a compor-se. Todos os dias, no quarto de hora de folga que juntava as professoras na saleta de espera, dona Zenóbia vinha com notícias da obra.

“— Está ficando que dá gosto! O capítulo acabado esta manhã parece uma coisa do outro mundo!

“E desfiava o enredo. Era o caso dum moço loucamente apaixonado por uma donzela de cabelos loiros e olhos azuis. A primeira parte do romance ia toda na pintura desse amor, lindo como não havia outro, puro poema em prosa. E dona Zenóbia revirava os olhos, em êxtase.

“As outras professoras acabaram por interessar-se a fundo pelo romance de Eduardo — Núpcias fatais —, o qual virara folhetim vocalizado aos pedacinhos, dia a dia, pela pitoresca dona Zenóbia.

“A notícia correu pela cidade e isso acabou reabilitando Eduardo da sua fama de Zé-faz-formas, pax-vóbis e mais apelidos deprimentes de que é fértil o povo.

“— Como a gente se engana! — diziam; — Parecia uma lesma de pernas, ninguém dava nada por ele e no entanto é um romancista!...

“As professoras davam à trela e o enredo das Núpcias fatais corria de boca em boca pela cidade, os lances de efeito gabados, com citação das melhores tiradas. O Popular, noticiando o aniversário do moço, consagrou-o — ‘festejado homem de letras’.

“Dona Zenóbia sabia dosar a narração de modo a manter as professoras suspensas nos lances mais comoventes. Houve um trecho que as pôs pálidas de espanto. Era assim: Lúcia fora pedida pelo rival de Lauro, o galã infeliz. O pai de Lúcia e toda a família queriam o casamento, porque o monstro era riquíssimo, tinha casa em Paris, iate de recreio e um título de conde prometido pelo papa. Já o triste do Lauro, coitado, para cúmulo de desgraça, perdera uma demanda e estava mais pobre que Jó. As cartas em que ele contava isso a Lúcia eram de chorar! Todos contra o mísero e tudo a favor do monstro...

“O pai fizera uma cena horrível.

“— Antes ver-te morta do que ligada a esse miserável... poeta!

“E a coitadinha, alanceada no mais dolorido do coração, doida de amor, chorava noite e dia, encerrada no fundo de escura cela.

“— Pobre mártir! — exclamavam com um nó na garganta as compassivas professoras. — Por que não há de sair a sorte grande para um desditoso destes? Peça ao seu marido, dona Zenóbia, que lhe faça sair a sorte, sim?

“— Não pode. Prejudicaria o desfecho e, ademais, não é estético — respondeu preciosamente dona Zenóbia.

“E assim corria o tempo.

“O romance era à moda antiga, em vários volumes, sistema Rocambole. Já tinha acontecido o diabo. A moça fugira de casa, raptada em noite de tempestade pelo cavaleiro gentil; mas o dinheiro do monstro vencia tudo: foram presos e encarcerados, ela num convento, ele num calabouço infecto.

“Mas quem pode vencer o amor? O cavaleiro conseguira, iludindo os guardas, abrir um subterrâneo que ia ter ao convento. Que tarefa ingente! Como as professoras deliraram acompanhando a obra desesperada do homem - toupeira, a escavar com as unhas em sangue a terra fria!

“Venceu, porém; alcançou o pavimento da cela onde Lúcia chorava de amor e conseguiu falar-lhe. Que lance este, quando Lúcia percebe o estranho murmúrio da voz subterrânea que a chamava! Era a redenção, afinal!

“Entendem-se e combinam a fuga. Um barqueiro esperá-los-ia em tal lugar, à meia-noite etc. etc.

“Dona Zenóbia parava nos trechos mais empolgantes, deixando a assembleia ora em lágrimas, ora em arroubos de indizível êxtase. Às vezes, quando estava de saia preta, em seus dias de azedume, não adiantava a novela um passo sequer.

“— Hoje, descanso. Eduardo está com um pouco de dor de cabeça e não escreveu uma linha...

“As professoras ficavam pensativas...

“Chegou por fim o dia da fuga, ponto culminante da obra. Dona Zenóbia, perita na arte de armar efeitos, anunciou-o de véspera.

“— É amanhã o grande dia!

“— Mas escapam, dona Zenóbia? — indagou uma torturada do romantismo, com a mão no seio palpitante.

“— Não sei...

“— Pelo amor de Deus, dona Zenóbia! Eu não posso mais! Se o monstro ganha a partida ainda esta vez, diga logo, porque eu tiro umas férias e vou para a roça esquecer este maldito romance que já me está deixando histérica.

“— Paciência, filha! Como posso saber o que lá se passa na imaginação do artista?

“— Mas peça a ele, peça por nós todas, que desta vez não deixe os espiões do monstro descobrirem os fugitivos. Pelo menos agora. Mais tarde vá, mas agora eles precisam de uns meses de recompensa. Arre, que também é demais!...

“No dia seguinte dona Zenóbia apareceu sorridente. As professoras em ânsias, ao vê-la assim, criaram alma nova.

“— Então? — exclamaram palpitantes.

“Dona Zenóbia fez um muxoxo.

“— Esperem lá. A coisa não vai a matar. Eduardo neste momento atinge o ponto culminante da obra. Deixei-o com o olhar em fogo — o fogo da inspiração! —, os cabelos revoltos, a cabeça febril. É o momento supremo do fiat! Toda obra depende deste fecho de abóbada. Como a solução do caso vem das profundas do subconsciente estético, e ainda não viera até a hora de eu sair, pedi-lhe que me comunicasse o resultado pelo telefone. Esperemos...

“As moças puseram os olhos no céu e as mãos no peito.

“— Meu Deus! — disse uma. — Estou com o coração aos pinotes! Se Lauro é preso, se os emboscados o matam... O monstro é capaz de tudo!

“Nisto vibrou a campainha do telefone. Dona Zenóbia piscou para as amigas estarrecidas e foi atender.

“Ficaram todas no ar, imóveis, trocando olhares de interrogação, enquanto no compartimento vizinho dona Zenóbia conversava com o grande artista.

“— Ele não para de chorar, Zenóbia. A meu ver é cólica o que ele tem. Desde que você saiu que é um berro só. Já fiz tudo, dei chá de erva-doce, dei banho quente — nada! Berra que nem um bezerro!

“— Você já cantou o Guarani?

“— Cantei tudo, o Guarani, o ‘Tutu já lá vem’, o ‘Somos da pátria a guarda’... Mas é pior.

“— Deu camomila?

“— A camomila acabou. Quis mandar a negrinha buscar um pacote na botica, mas não achei o dinheiro...

“— Lerdo! E aqueles dois mil-réis de ontem? Não sobrou metade? “— É que... é que comprei um maço de cigarros...

“— Sempre o maldito vício! Olhe, atrás do espelho, perto da saboneteira azul, está uma pratinha de quinhentos. Mande buscar a camomila, mas no Ferreira, que a do Brandão não presta, é falsificada. Ferva uma pitada numa xícara d’água e dê às colherinhas. Dê também um clister de polvilho. Mudou os paninhos?

“— Três vezes, já.

“— Verde?

“— Verde carregado, como espinafre.

“— Bem. Eu hoje volto mais cedo. Faça o que eu disse, e fique com ele na rede. Cante a ária da Mignon, mas não berre como daquela vez, que assusta o menino. Em surdina ouviu? Olhe: ponha já as fraldas sujas na barrela. Escute: veja se tem água no bebedouro dos pintos. A marmelada? Ora bolas! Deixe isso para amanhã. Bom, até logo!

“Dona Zenóbia largou o fone e voltou às companheiras, que continuavam suspensas.

“— Estes artistas!... — começou ela. — Que é que vocês pensam que Lauro fez?

“— Fugiu! — disse uma.

“— Deixou-se prender! — aventou outra.

“— Suicidou-se! — declarou a terceira.

“— Ninguém adivinha. Lauro rompeu o pavimento, entrou na cela e depois de uma grande cena resolveu fazer-se frade!...

“Foi um oh! geral de desapontamento. Aquele fim imprevisto decepcionara a todas. Protestaram, e dona Zenóbia, condoída, voltou atrás.

“— Estou brincando. Eduardo está hoje com uma dor de cabeça danada e eu o aconselhei a descansar um bocadinho. Ficou para outro dia o fim. Esperemos.

“O romance do chupim tem hoje onze anos. Já é menino de escola. Chama-se Lauro e, para reabilitação do sexo barbado, puxou o caráter da mãe.”

(Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes)