Das crises que se sucederam desde a queda do Estado Novo, nenhuma
foi tão intensa e longa como a atual. Desencadeada com a eleição de Dilma
Rousseff em 2014, não se encerrou com a posse definitiva de Michel Temer, e já
ingressou em seu terceiro ano. Seu desfecho e seus efeitos sobre a
sobrevivência da democracia representativa e das liberdades públicas são
imprevisíveis.
O atual
processo de deterioração da institucionalidade política começou como uma crise
da Presidência e, tal um zika vírus, foi provocando degeneração ao longo do
sistema nervoso central da República. No âmbito da Presidência, a crise
manifestou-se numa combinação de ativismo e paralisia, pois, embora incapaz de
montar seu próprio Gabinete e dar rumo e consistência às ações de seu governo,
a presidente Dilma adotou um ativismo decisório que provocou falência múltipla
dos órgãos governamentais do Executivo.
Os demais
Poderes e suas instituições continuaram funcionando – mal, segundo alguns –,
cada um afetado por suas próprias limitações, que continuaram produzindo
inevitáveis atritos, próprios da separação entre Poderes. Para além dos
eventuais atritos – a exemplo da assim chamada judicialização da política –, o
sistema político sobreviveu à destituição da chefe do Executivo sem maiores
abalos na ordem legal, apesar da relação conflituosa entre o Legislativo –
especialmente a Câmara dos Deputados – e o Executivo.
Atribuir
a queda do governo Dilma a uma paralisia decisória é um erro crasso. O que de
fato ocorreu foi um ativismo decisório das instituições básicas de nosso
sistema político, refletido em ações unilaterais precipitadas, inconsistentes e
frequentemente contraditórias. Exemplo cabal é o da presidente, tentando
corrigir o fracasso de sua receita econômica criativa, dobrando a dose sucessivamente
até levar o doente à UTI.
Outro é o
festival de retaliações protagonizado por Dilma e Eduardo Cunha. Seu resultado
– com a reviravolta da bancada petista a favor da cassação de Cunha por falta
de decoro, e o troco de Cunha, admitindo o processo de impeachment da
presidente – foi a ruptura dos limites institucionais. Isso deu salvo-conduto
ao ativismo político à sombra das instituições. Não é que as instituições
tivessem deixado de funcionar ou se bloqueassem mutuamente. O mais grave é que
sua missão fundamental – determinar normas que estabelecem os limites da
legitimidade das decisões de suas instâncias e coibir a manifestação de
interesses e a prevalência de escolhas morais e políticas unilaterais – foi
posta em segundo plano.
Liberados
das amarras da letra da lei, entre 15 de novembro e 17 de dezembro de 2015,
Teori Zavascki decidiu unilateralmente mandar prender um senador da República
sem autorização prévia do Senado e sem flagrante delito; Luiz Fachin propôs-se
a elaborar, “em relação ao exame da constitucionalidade, e da recepção, no todo
ou em parte, da lei de 1950, um rito que vai do começo ao final do julgamento
do Senado”; e Roberto Barroso, sem mais aquelas, desfigurou inteiramente – para
usar um termo ao gosto do ativismo generalizado que hoje grassa – as
prerrogativas constitucionais do Legislativo.
Passado um ano, já ninguém se surpreende quando, com base apenas
em suas convicções morais, um grupo de procuradores usa recursos públicos para
divulgar suas conclusões pessoais sobre investigações ainda em curso, ou para
dar ultimatum aos
legisladores. Ou, o que é pior, deixa claro que o Legislativo não tem o direito
de contrariar a opinião deles sobre o que é melhor para o País.
Tampouco
surpreende que, longe de tentar a via das mútuas concessões, parte
significativa do Legislativo entre numa queda de braço com o Judiciário – por
mais que coberto de razões; que um líder de partido no governo peça a renúncia
do presidente da República, membros do Executivo envolvam a Presidência em
questiúnculas ou que um ministro “grampeie” o chefe de Estado e ainda seja
tratado como herói.
Agentes
institucionais, nos mais altos escalões da República, julgam lícito atuar como
ativistas justiceiros, em nome de suas convicções morais ou políticas. Já não
se importam com a letra da lei, nem pestanejam diante das consequências dos
seus atos, destituindo o sistema político de sua pedra angular, a segurança
jurídica e política.
Quando o
conflito aberto entre as instituições básicas do sistema político torna impossível
garantir que não haverá alguém, imbuído do poder de assinar uma liminar, capaz
de cassar os efeitos da chamada PEC do Teto, ou reentronizar no poder Dilma
Rousseff, então a democracia representativa, e as liberdades que ela garante,
continuarão em risco.
Ainda
existe alternativa entre cumprir a agenda de reformas – do gasto público, da
Previdência, da legislação do trabalho, da remoção dos entraves seculares à
dinamização das exportações e ao investimento estrangeiro –, para cuja
aprovação o Executivo tem contado com amplo apoio no Congresso e na elite
dirigente, ou, então, assistir à desmoralização irremediável da classe política
e do Judiciário, incapazes de conter o ativismo irresponsável de muitos de seus
membros. É preciso pôr um paradeiro nas pautas-bomba, que hoje são
inaceitáveis, com ou sem razão, tanto para o Judiciário quanto para o
Legislativo ou para o Executivo, a fim de que, mediante concessões mútuas, seja
possível, pelo menos, remendar o mito da separação entre Poderes, sobre o qual
se assentam a nossa República e a nossa liberdade.
Com os demais Poderes sob suspeição mútua, e
como só o poder se opõe ao poder (Montesquieu), talvez um pouco de ativismo
presidencial, com apoio em sua sólida base parlamentar, ouse vetar liminarmente
– até que “prevaleça o bom senso” – qualquer tentativa de impor uma pauta que,
caso aprovada, levará fatalmente à derrocada do regime e, com ele, de nossa
liberdade.
Das crises que se sucederam desde a queda do Estado Novo, nenhuma
foi tão intensa e longa como a atual. Desencadeada com a eleição de Dilma
Rousseff em 2014, não se encerrou com a posse definitiva de Michel Temer, e já
ingressou em seu terceiro ano. Seu desfecho e seus efeitos sobre a
sobrevivência da democracia representativa e das liberdades públicas são
imprevisíveis.
O atual
processo de deterioração da institucionalidade política começou como uma crise
da Presidência e, tal um zika vírus, foi provocando degeneração ao longo do
sistema nervoso central da República. No âmbito da Presidência, a crise
manifestou-se numa combinação de ativismo e paralisia, pois, embora incapaz de
montar seu próprio Gabinete e dar rumo e consistência às ações de seu governo,
a presidente Dilma adotou um ativismo decisório que provocou falência múltipla
dos órgãos governamentais do Executivo.
Os demais
Poderes e suas instituições continuaram funcionando – mal, segundo alguns –,
cada um afetado por suas próprias limitações, que continuaram produzindo
inevitáveis atritos, próprios da separação entre Poderes. Para além dos
eventuais atritos – a exemplo da assim chamada judicialização da política –, o
sistema político sobreviveu à destituição da chefe do Executivo sem maiores
abalos na ordem legal, apesar da relação conflituosa entre o Legislativo –
especialmente a Câmara dos Deputados – e o Executivo.
Atribuir
a queda do governo Dilma a uma paralisia decisória é um erro crasso. O que de
fato ocorreu foi um ativismo decisório das instituições básicas de nosso
sistema político, refletido em ações unilaterais precipitadas, inconsistentes e
frequentemente contraditórias. Exemplo cabal é o da presidente, tentando
corrigir o fracasso de sua receita econômica criativa, dobrando a dose sucessivamente
até levar o doente à UTI.
Outro é o
festival de retaliações protagonizado por Dilma e Eduardo Cunha. Seu resultado
– com a reviravolta da bancada petista a favor da cassação de Cunha por falta
de decoro, e o troco de Cunha, admitindo o processo de impeachment da
presidente – foi a ruptura dos limites institucionais. Isso deu salvo-conduto
ao ativismo político à sombra das instituições. Não é que as instituições
tivessem deixado de funcionar ou se bloqueassem mutuamente. O mais grave é que
sua missão fundamental – determinar normas que estabelecem os limites da
legitimidade das decisões de suas instâncias e coibir a manifestação de
interesses e a prevalência de escolhas morais e políticas unilaterais – foi
posta em segundo plano.
Liberados
das amarras da letra da lei, entre 15 de novembro e 17 de dezembro de 2015,
Teori Zavascki decidiu unilateralmente mandar prender um senador da República
sem autorização prévia do Senado e sem flagrante delito; Luiz Fachin propôs-se
a elaborar, “em relação ao exame da constitucionalidade, e da recepção, no todo
ou em parte, da lei de 1950, um rito que vai do começo ao final do julgamento
do Senado”; e Roberto Barroso, sem mais aquelas, desfigurou inteiramente – para
usar um termo ao gosto do ativismo generalizado que hoje grassa – as
prerrogativas constitucionais do Legislativo.
Passado um ano, já ninguém se surpreende quando, com base apenas
em suas convicções morais, um grupo de procuradores usa recursos públicos para
divulgar suas conclusões pessoais sobre investigações ainda em curso, ou para
dar ultimatum aos
legisladores. Ou, o que é pior, deixa claro que o Legislativo não tem o direito
de contrariar a opinião deles sobre o que é melhor para o País.
Tampouco
surpreende que, longe de tentar a via das mútuas concessões, parte
significativa do Legislativo entre numa queda de braço com o Judiciário – por
mais que coberto de razões; que um líder de partido no governo peça a renúncia
do presidente da República, membros do Executivo envolvam a Presidência em
questiúnculas ou que um ministro “grampeie” o chefe de Estado e ainda seja
tratado como herói.
Agentes
institucionais, nos mais altos escalões da República, julgam lícito atuar como
ativistas justiceiros, em nome de suas convicções morais ou políticas. Já não
se importam com a letra da lei, nem pestanejam diante das consequências dos
seus atos, destituindo o sistema político de sua pedra angular, a segurança
jurídica e política.
Quando o
conflito aberto entre as instituições básicas do sistema político torna impossível
garantir que não haverá alguém, imbuído do poder de assinar uma liminar, capaz
de cassar os efeitos da chamada PEC do Teto, ou reentronizar no poder Dilma
Rousseff, então a democracia representativa, e as liberdades que ela garante,
continuarão em risco.
Ainda
existe alternativa entre cumprir a agenda de reformas – do gasto público, da
Previdência, da legislação do trabalho, da remoção dos entraves seculares à
dinamização das exportações e ao investimento estrangeiro –, para cuja
aprovação o Executivo tem contado com amplo apoio no Congresso e na elite
dirigente, ou, então, assistir à desmoralização irremediável da classe política
e do Judiciário, incapazes de conter o ativismo irresponsável de muitos de seus
membros. É preciso pôr um paradeiro nas pautas-bomba, que hoje são
inaceitáveis, com ou sem razão, tanto para o Judiciário quanto para o
Legislativo ou para o Executivo, a fim de que, mediante concessões mútuas, seja
possível, pelo menos, remendar o mito da separação entre Poderes, sobre o qual
se assentam a nossa República e a nossa liberdade.
Com os demais Poderes sob suspeição mútua, e
como só o poder se opõe ao poder (Montesquieu), talvez um pouco de ativismo
presidencial, com apoio em sua sólida base parlamentar, ouse vetar liminarmente
– até que “prevaleça o bom senso” – qualquer tentativa de impor uma pauta que,
caso aprovada, levará fatalmente à derrocada do regime e, com ele, de nossa
liberdade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário